Era natal, um rapaz da cidade passeando a cavalo parou numa pequena aldeia para a montada descansar. Como era muito tarde decidiu pernoitar na pequena povoação. Curioso reparou numa casa em ruínas no cimo de um monte.
A velha casa ficava isolada da pequena aldeia cerca de quinhentos metros, ou seja dez minutos a andar bem. Ficava num pequeno cabeço, donde se avistava uma multifacetada paisagem incluindo a pequena povoação. Fora nova a habitação há mais de duzentos anos, agora não mais era que uma casa em ruínas, sem qualquer tipo de vida. Era excepção a presença de um visitante que lá pernoitava de tempos a tempos mas que ninguém via. O povo da aldeia chamava ao casebre “O Casal”.
Sim, era “O Casal do lobo”, assim chamado pelo tio António, devido à estória contada há muito pelas pessoas mais idosas do lugar. As gentes da região nunca subiam ao cabeço. Diziam que estava embruxado!
Vou tentar contar a estória conforme relato do tio António velhinho com mais de cem anos, questionado pelo rapaz da cidade que entrara na taberna.
--Tio António conte lá a sua versão da lenda do Casal do Lobo”.
--Rapaz, a minha não é versão, é a estória verdadeira. O que dizem para aí esses papalvos do bruxedo, é uma treta. Têm medo de lá ir, mas eu não! Não vou lá porque não tenho pernas para subir o monte, mas até há dez anos ia lá com regularidade. Ainda conheci uma das crianças da lenda, já com quase oitenta anos, tinha eu uns oito ou nove anos na altura.
--Ainda bem tio, já vi que vim ter com a pessoa certa. Conte, conte tio António.
O elegante velho de farta cabeleira branca, barba e bigode desgrenhados mas mais escuro que o cabelo, sorriu maliciosamente fazendo o jovem esperar. Enquanto fazia o seu cigarro de onça beberricou a sua aguardente lentamente. Estava o gozar o momento…
--Então foi assim. Há muito tempo, talvez para lá de cento e cinquenta anos vivia na casa do cabeço uma família feliz. Pai, mãe e seis filhos, o mais velho com dez anos o mais novo bebé. Um dia a desgraça bateu à porta daquela família, o pai foi à caça e não mais voltou. Dizem que foi morto pelos lobos, mas ninguém tem a certeza. A partir desse momento a vida complicou-se muito naquele lar e a miséria bateu forte naquela casa. A pobre mãe tudo fazia para sobreviver mas a luta era inglória. Faltava tudo, menos a lenha para pôr na lareira e se aquecerem. Mas lá foram sobrevivendo, muitas vezes à custa de alguma alma bondosa.
Naquela noite de Natal de há muitos anos, todos estavam à volta da fogueira comendo pão de milho e um pouco de galinha oferecida por alguém de bom coração, o lume forte dava luminosidade à divisão comum, as crianças olhavam fascinadas as labaredas e sonhavam com coisas boas, primeiro pensavam em comida, depois roupa e por fim a alegria de brinquedos. A mãe ainda jovem, e mulher que fora bonita, tinha agora as marcas do sofrimento patentes no seu rosto. Chorava em silêncio.
--Em dado momento devia ser meia-noite, sentiram arranhar na porta. Ficaram em pânico. A mãe levantou-se pronta para defender as suas crias, pegou numa tranca e foi à porta. --Quem está aí?
--Nada, a não ser um novo arranhar na madeira carunchosa da porta de entrada. A medo entreabriu uma greta, com a moca pronta para a luta. Mas que viu defronte dela?
Neste ponto da narração o tio António calou-se, olhando para o rapaz tentando perceber as suas reacções. Encheu mais um copo de aguardente e fez outro cigarro. Ficou em silêncio como a pensar como continuar. O rapaz impaciente não se conteve.
--E depois tio António?
--Calma rapaz, és novo ainda podes esperar, eu é que já não estarei cá muito tempo, mas ainda é o suficiente para acabar esta estória.
Entretanto meia aldeia rodeava o ancião e o jovem curioso. O velho de repente recomeçou a sua narrativa.
--Defronte da jovem mãe, um enorme animal arrastava-se e olhava com uma expressão de súplica, via-se que estava muito doente. Lá fora era só gelo e o pobre lobo branco estava moribundo. Condoída a mulher deixou a fera entrar. Esta arrastando-se foi para o pé da lareira. As crianças não tiveram medo e num acto de grande fraternidade deram um pouco da sua pouca ração, diga-se de passagem mais osso do que carne.
--A mãe dos miúdos fez então um chá de ervas que ela conhecia bem, todos beberam e foram para as suas enxergas. A mulher ficou junto ao lume, vigiando tudo e todos, ao mesmo tempo que recordava o seu grande amor, o pai dos seus filhos. Por fim de cansaço adormeceu!
Neste ponto o nosso tio António voltou a fazer uma pausa. Estava feliz por ter tanta gente a escutar a sua narração. Costumavam chamar-lhe louco varrido e outras coisas piores. Talvez porque o rapaz da cidade ouvia com toda a atenção, os outros levavam a estória mais a sério. Alguns velhos reclamaram.
--Oh António conta lá o resto!
Ele suspirou, um golo de aguardente e uma fumaça e continuou.
--De manhã, todos acordaram cedo para verem como estava o lobo branco, contudo o animal não estava lá mais. Ninguém entendeu como saíra a fera. Estava tão doente, e como abrira a porta? Esquisito… Depois olharam melhor para a sala comum e ficaram abestalhados! Em cima da velha mesa via-se comida e da melhor. Aos pés das enxergas roupa para todos e junto à lareira seis brinquedos sobressaíam. Mas do lobo branco nem sinal!
Novamente o velho se calou! E não parecia querer continuar! Mas depois de muita insistência ele declarou
--Na terra ninguém acreditou e declaravam que o casal estava embruxado! Mas não era bruxedo eu sei! Segundo me disse o tal velho, ainda eu era um miúdo. Em todos os anos que se seguiram e até eles serem todos adultos, aconteceu o mesmo.
--Oh tio António, isso são lérias! Aquilo não passou de bruxedo!
Assim falou o tio Rezinga sempre no contra. Depois todos partiram para casa menos o rapaz da cidade.
--Tio António, está tudo dito?
--És esperto jovem, não contei tudo a estes paspalhões. Se me levares a cavalo anda comigo ao Casal do lobo.
E foram, perto das ruínas esconderam-se atrás de um penedo. Por volta da meia-noite começaram a ver a claridade da lareira e a ouvir uma algazarra de crianças. Para o espanto do rapaz da cidade, um grande lobo branco arrastou-se até á porta da casa arranhando a madeira. A porta abriu-se e o lobo entrou!
Yarb, 7/12/2012
Nesta história temos, mesmo, que acreditar que ainda há milagres, e não importa quem é o elo desse mesmo milagre. " O Lobo "
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