terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Nascer de uma flor

Nascer de uma flor
É tarde,
A cidade está apática,
Ninguém sabe que fazer.
É tarde,
As portadas se fecham,
E as almas também.
É tarde,
Os adultos têm medo,
E as crianças também.
É tarde,
Recomeça o ribombar,
Tiroteio para o ar.
É tarde,
A morte anda na rua,
Com apetite insaciável.
É tarde,
O povo vegeta,
Uma menina nasce.
É tarde,
Brilha uma luz no andar,
Há um bebé a chorar.
É tarde,
Mas chegou pontual,
A menina de seu pai.
É tarde,
Mas chegou perfeita,
A menina de sua mãe.
É tarde,
Mas chegaste na hora,
Minha menina amada!
28/6/2015
José Bray
Nota: a 28 de Junho de 1976, primeiras horas da madrugada, nascia minha filha Isa. Noite de Luanda, noite de terror! Recolher obrigatório, noite de tiroteio, cidade estropiada e aterrorizada.



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Encontro no interior

Encontro no interior
O casal Rosa Pedro andava viajando sossegadamente pelas estradas secundárias do seu país natal. Não eram ricos, não tinham excesso de recursos financeiros, contudo, tinham meios para fazer uma vida desafogada.
Gostavam imenso de viajar pelo país. Faziam disso, um dos prazeres da vida. Visitavam o mundo rural com ânsia de saber. Nas vilas, aldeias, simples lugar ou casal, falavam com as pessoas, fossem crianças ou idosos, homens ou mulheres. Apreciavam os pequenos monumentos, mesmo os mais simples, por vezes uma pedra com história. Gostavam de fotografar pessoas, animais e casas. Adoravam ouvir a bandas de música, fossem grandes ou pequenas, assim como danças e cantares do povo.
Tinham admiração e fascino pelas paisagens, mesmo a mais banal. Uma pequena colina, um ribeiro, um campo de milho, a floresta. A natureza no seu todo com suas formas e seus verdes tão variados.
Ficavam um ou dois dias em cada povoação, por vezes só umas horas. Dormiam em pensões económicas e tentavam comer em tascas. Normalmente petiscos ou refeição frugal.
Os locais de culto não ficavam por visitar, o Deus podia ser qualquer um e os santos também. Predominava a fé de Roma por onde passavam, embora aqui e ali fossem encontrando outros credos.
Naquela tarde do principio de Março, em que o inverno batalhava com a primavera, numa luta com vencedor anunciado. O casal Rosa Pedro, descansava sentado num banco de granito, na pequena praça daquela vila de segunda. Tinham almoçado na tasca do Damião, amigo de outras visitas à povoação.
Era dia de mercado, ou talvez, feira, fosse o termo mais correcto. Acontecia no terceiro domingo de cada mês. Era pequena mas metia muita gente que aproveitava para os mais diversos objectivos: comprar, cavaquear, cortar na casaca, comer, ou simplesmente apanhar uma piela, que por sinal eram muitas.
Os feirantes eram poucos, mas havia de tudo um pouco à venda.
Uma barraca vendia tudo o que fosse ferramenta para trabalhar a terra e não só. Enxadas grandes e pequenas, sachos e cavadeiras, picaretas, pás, forquilhas, chaves, chavinhas e chavetas, cabos, vassouras, facas, facalhões e canivetes, serras e serrotes, pregos, parafusos e porcas, ratoeiras para ratos, coelhos e raposas. Poderia estar a descrever os artigos daquela barraca, mas era preciso muitas folhas do meu bloco A5. Não se justifica, só quero dar uma imagem rápida dessa barraca coberta a lona como todas as outras. Todos conhecem o género que aparece em todas as feiras do país, pequenas médias ou grandes.
Havia duas barracas de tecido (roupas), uma virada para artigos confeccionados, outra para artigo em bruto ou para artigos de não vestir, como panos, fazendas, toalhas, lençóis, mantas, etc. Alguns artigos semelhantes eram vendidos nas duas barracas, por isso concorrentes.
Havia uma barraca de bugigangas, que ia desde brinquedos, em plástico, lata e madeira, a pequeno mobiliário. Havia cestos e cestinhos em verga, utensílios em plástico com predominância para os alguidares e seus afins. Santinhos e mais um milhar de porcarias que o povo gosta de ver, em especial a garotada que por ali andava.
Havia três bancas de produtos alimentares. Um de verduras, outra de animais vivos, a terceira de enchidos, presunto e queijo.
Claro, não faltava as barracas dos petiscos e muito vinho. Eram duas porque os clientes eram mais que muitos.
Os pregões soavam por todo o lado num conflito vocal, em que cada um queria ser mais ouvido que o outro.
Estava o nosso casal Rosa Pedro muito divertido, apreciando o reboliço do mercado, quando a sua atenção foi despertada pela chegada de uma carripana que queria à força passar pela praça. Óbvio que não conseguia!
Estava tudo entupido e não dava mesmo. Tentaram forçar, apitaram, mas nada. Nada não! Ouviram duas ou três expressões muito em uso no nosso povo, seja no sul, no centro ou no norte. Mas lá para cima nem palavrão chega a ser. Ah! Ainda foram mimados com uns gestos não menos genuínos. Toma! Feito de duas maneiras, com o dedo grande e com o braço esquerdo atravessado no direito e este fechado. Estilo Zé Povinho!
O condutor do carrito acabou por o estacionar numa pequena travessa, dirigindo-se depois para a confusão do mercado.
O casal Rosa Pedro olhou-se sorrindo, com pensamento semelhante. Muitas vezes nem precisavam de dizer nada um ao outro, tal era a sintonia mental. Pensavam: 
“Condutor pateta, querer passar à força na confusão da feira. Mas que carro giro têm e carismático, já se encontram muito poucos. Que anda a fazer por aqui um casal jovem com ar tão distinto?”
O carro era o “dois cavalos”, viatura fabricada pela Citroen, que se transformou num clássico…
Na travessia da feira, passando por aqueles que há pouco faziam os tomas, mas agora fingiam não os ver, os jovens foram-se aproximado do banco onde divertidos os nossos idosos apreciavam o panorama.
Antes de continuar a narrativa, quero esclarecer. Rosa e Pedro, parecendo nomes próprios, eram na verdade apelidos do Joaquim, por isso seu nome completo era, Joaquim Manuel da Rosa Pedro. A mulher era Eva da Conceição Ramos Pedro. Este último apelido, recebeu do companheiro.
Estavam de mãos entrelaçadas quando o tal casal jovem se aproximou.
Eva exclamou…
- Olha Joaquim. Os miúdos são o Filipe e a Manuela! Que andarão a fazer por estas bandas?
- São eles, tens razão!
Naquele preciso momento o rapaz sintonizou a vista com o casal de idade.
- Manuela! Está ali o casal Rosa Pedro. Que coincidência…
- Este casal é o máximo, parecem estar em todo o lado.
Foi assim o encontro entre os dois casais, distanciadas duas gerações. Os miúdos eram filhos e netos de amigos, tanto do Joaquim como da Eva.
Viviam juntos há dois anos mas não eram casados. Foi amor de universidade onde se formaram, ele em história, ela em filosofia.
- Então meninos que fazem por esta parvónia? Estão de férias? Ou fugiram do mundo falsamente civilizado?
- Nada Joaquim! Andamos em trabalho. Agora está muita confusão por aqui para contar. Nós vamos ficar cá na residencial.
- Nós também ficamos mais uma noite. Vamos todos jantar a uma tasca que conhecemos há muito. Pensamos partir para outra terra amanhã à tarde. Barco parado não faz viagem.
- Então vamos à pensão tomar banho e esperamos lá por vós. Às dezanove está bem?
Quem assim falou foi Manuela uma rapariga desenrascada, alta e esguia, cabelo comprido, negro e liso. Olhos negros em rosto moreno. Tinha corpo de atleta com seios pequenos. Mulher de ar felino nos seus exuberantes vinte e quatro anos.
- Sim filha, por nós tudo bem. Ainda vamos visitar uma ponte romana que fica a um quilómetro daqui.
Eva fez a confirmação acompanhada pelo seu encantador sorriso. Gostava daquele casal que achava muito amoroso. Ela era uma eterna apaixonada, admirava a postura dos miúdos. Era assim que o casal Rosa Pedro gostava de designar aqueles dois jovens.
Pouco passava das dezanove quando os dois casais se voltaram a juntar, na Pensão Central. Muito central e sem concorrência, instalada na parte medieval da vila. Era confortável e asseada. Também serviam refeições, mas Joaquim e Eva, adoravam curtir tascas, onde encontravam sempre gente do povo e não só, para cavaquearem, ouvir estórias e até tirar algumas fotos. Joaquim escrevia contos, muitos eram baseados nessas conversas. Eva pintava e na tasca recebia inspirarão para fazer o seu hobby. Escrever e pintar era mais um complemento nas suas vidas: bastante multifacetadas. Ah! E ambos escreviam poesia…
Saíram da pensão e partiram “pelo seu pé” para a tasca do senhor Damião. Viagem que fizeram em cerca de vinte minutos, andando devagar, caminhando através de ruelas estreitas, da histórica vila com casas de pedra e calçada também de granito.
Durante o percurso, foram-se informando sobre os familiares e amigos de amizade comum: pais, avós, irmãos, primos, amigos, etc.
Finalmente chegaram à tasca, daquelas tipicamente portuguesas. Foram recebidos por Damião, que apareceu com um sorriso de orelha a orelha, por debaixo do bigodão de estimação.
O tasqueiro encaminhou os clientes para um agradável recanto, junto à lareira já acesa. Os dias estavam bonitos e primaveris, mas ao cair do crepúsculo a temperatura arrefecia drasticamente. A vila ficava na encosta da serra e por vezes ainda nevava naquela época do ano.
Escusado será reafirmar que Eva e Joaquim já tinham no Damião um amigo, conhecido de outras passagens por aquela vila.
- Boa noite, amigos: aos antigos e aos novos!
- Boa noite Damião. Este casal jovem, são nossos amigos e de famílias amigas. Hoje na vila, encontrámos os meninos por mera coincidência. Que temos hoje para dar consolo aos nossos esfomeados estômagos?
- Prazer em conhecer! Bonito casal. Dona Eva. Temos um cabrito no forno que deve estar cinco estrelas. Estava mesmo à vossa espera. Acompanhado de batata também no forno, arroz branco e legumes ao vosso gosto. Bom não é?
Todos aceitaram o cabrito, Joaquim adorava, então tostadinho no forno era uma maravilha. Eva tinha boa boca, gostava de tudo, era mais apreciadora de leitão. Mas o cabrito também marchava! Os jovens também não se negaram.
- Vou trazer uma mão cheia de entradas. E bom vinho!
Passados minutos, apareceu na mesa: queijo da serra, presunto e azeitonas, pão caseiro e broa de milho.
Para beber, Damião meteu na mesa dois jarros de vinho, um de branco, outro de tinto. Na brincadeira declarou: branco para as senhoras tinto para os homens.
Tudo era mágico naquela tasca, o calor da lareira, a penumbra da sala. Uma música sem palavras que mal se ouvia, soava doce nos ouvidos dos presentes. A comida e o vinho na longa e tosca mesa, davam um ar rústico ao ambiente.
Era esfuziante a felicidade de todos, incluindo Damião a sua mulher, a cozinheira, e até dos outros clientes que se foram aproximando. Momentos únicos que ficam gravados para sempre, na mente de cada um.
Em dia normal as entradas chegavam para alimentar o casal Rosa Pedro, mas naquela noite a magia andava no ar. Comeram e beberam até fartar.
Eva ia tirando algumas fotos e Joaquim fazia versos de improviso, declamados como se de fado fossem.
Depois… serão fora, falaram de tudo e mais alguma coisa. Falou o Joaquim, falou a Eva, falou a Manuela. O menos falador era o Filipe. Mas o rapaz estava atento a tudo em especial ao que a sua amada dizia.
Bem comidos e bem bebidos, chegou a hora do café e do digestivo, coisa que o casal mais velho não dispensava.
Por fim a conversa derivou para o momento actual, respeitante à vinda do casal jovem, para aquela vila. Foi Eva a abordar o assunto.
- Então que vieram fazer os meninos a esta região, tão interior, tão longe de casa e tão longe no tempo?
Foi a Manuela a dar troco, enquanto os homens embevecidos olhavam para elas.
Tudo continuava mágico no interior da tasca, fluidos de prazer flutuavam na sala. As chamas da lareira, com seu amarelo e vermelho, faziam uma dança repetida mas nunca igual, como as nuvens sobre a serra ou as ondas no mar.
- Viemos em trabalho! Foi o que se arranjou nestes tempos difíceis. Viemos fomentar…melhor dito: vender!
- Vender, mas vender o quê?
Dois jovens licenciados, um em história, outro em filosofia, aparecem numa vilazita do interior, num dois cavalos, para vender: coisa estranha. Pensaram Eva e Joaquim.
- Viemos promover a fé em Cristo! Por isso vender, porque somos pagos para isso.
- Pagos como?
- Por cada aderente, recebemos um prémio e depois na continuação uma comissão sobre o dizimo do novo crente.
Filipe nada dizia, só concordava com a cabeça. Via-se timidez e receio, no rosto quase imberbe do jovem licenciado em história.
- Respondemos a um anúncio e fomos aceites. Tirámos uma formação compactada, fizemos uns exercidos para praticar. Depois fomos enviados para o mato, como costumam dizer os vendedores seniores. Por aqui andamos tentando convencer alguém. Mas os povos estão muito enraizados na igreja católica e controlados pelos padres. Mas Joaquim, nós acreditamos no que andamos a fazer, mas nada conseguimos.
Foi Manuela que falou. Depois Filipe acrescentou.
- O gratificante é: estamos juntos e vamos conhecendo o interior do país. Entretanto desistimos, a derrota está certa!
- Que acham desta estória meus amigos?
- Manuela, minha querida Manuela. Aqui o Joaquim, que sou eu, acha que é uma missão muito difícil, mas não impossível. Em qualquer dos casos pode ser muito enriquecedora. A vossa inexperiência na vida é um tremendo handicap. Mas como diz o Filipe, serve para passear e aprender.
- Joaquim, não tem nenhuma ideia ou sugestão para nos dar?
- Talvez Manuela. Esta noite e amanhã de manhã com a cabeça fresca eu vou pensar. Vou trocar opiniões com a minha amada Eva que tem visão e inteligência. Ela vai ajudar…
Após um silêncio, onde só se ouvia o crepitar da lenha na lareira, Joaquim fechou o tema.
- Vão para a pensão, façam amor e durmam que nós vamos fazer o mesmo. Amanhã ao almoço, falamos!
Após esta decisão, Eva foi pagar conta.
Depois os quatro saíram para a calçada de pedras negras, foram brincando, fazendo passos de dança, cantando em coro, desafinado, canções de intervenção.
Pareciam quatro adolescentes em noite de bebedeira, o que era o caso…
Nessa noite, preocupado com problema do jovem casal, ou devido ao excesso de comida e bebida, Joaquim não conseguia adormecer. Junto a si no lado direito, Eva dormia com o corpo encostado ao seu, estando o rosto sobre o seu peito. Era bom sentir o calor da sua amada. A bonita idosa dormia confiante com uma expressão de felicidade e paz.
O nosso homem ia pensando. – “Que conselhos posso dar aos miúdos? Nesta questão tão melindrosa e até ridícula”.
A mente, do Joaquim, dava voltas e mais voltas, elaborando alternativas para poder ajudar Filipe e Manuela.
O seu problema não era ter nada para dizer, antes pelo contrário. Isso não era óbice! Tinha muito para poder falar, aconselhar, divagar, filosofar e muita demagogia.
O busílis era fazer uma síntese, fácil de entender e que fosse útil à tarefa dos jovens. Meninos inocentes pensando saber tudo…
Aquela igreja, patronato, ou que treta for, enviar após um curso concentrado dois inocentes para as feras, era uma tolice. Que raio de estupidez ou maldade! Ainda se fosse para vender livros, perfumes, lotaria, férias, e mais um milhão de produtos, agora vender a fé… que raio de disparate.
Embora a fé fosse baseada em Cristo e Deus, coisa que o povo acreditava. Mas sonegar os santos a esse povo era missão quase impossível. Ainda mais, estando aquela gente agrilhoada pelos padres e sua organização supranacional.
Eram estes pensamentos que atormentavam Joaquim durante a longa insónia.
Acabou por adormecer, já passava das quatro horas. Mesmo assim a cabeça não descansava. Eram só pesadelos: era Deus, o Diabo, monstros, bruxas, selvagens e feras. Tudo a correr atrás do Filipe e da Manuela que fugiam em pânico olhando para o casal mais velho e a pedir ajuda.
Eva acordou, eram oito horas e ficou admirada por o marido ainda dormir, ele que era sempre o primeiro a dar o toque de alvorada. Reparou que não era um sonho tranquilo. Ele falava alto de vez em vez, palavras que ela não entendia. Parecia linguagem estrangeira…
- Joaquim acorda, querido então, acorda!
Dizia isto abanando o homem que beijava ao mesmo tempo. Por fim lá conseguiu os seus intentos e Joaquim voltou a este mundo. Ao ser interrogado, ele afirmou não se lembrar de nada relativo aos pesadelos.
O casal acalmou, após um reconfortante banho, vestidos com roupa prática desceram para o café da manhã.
Na acolhedora sala do pequeno-almoço, eram os únicos hóspedes. Passava pouca das nove. Já reconfortados, fizeram meia hora de descontracção. Eva lia poemas de Pessoa e o Joaquim punha em dia o seu diário de viagem. Contudo os pensamentos do casal flutuavam através do problema colocado por Filipe e Manuela.
Eva pensava e talvez bem, com uma lógica muito própria da sua mente racional. - “O melhor é desistirem, voltar para casa e mandar às ortigas a treta da fé”.
- “Que pensará o Joaquim”? – Outra questão que ela colocava a si própria.
Às dez horas os jovens ainda não tinham descido. Entretanto pediram que lhes levassem o pequeno-almoço ao quarto.
Era segunda-feira, a vila voltava ao ritual do dia-a-dia, mas o movimento era sempre quase nada. Devagar devagarinho…era o lema da região. O terceiro domingo de cada mês era o dia mais movimentado na terra. O outro período do ano, de grande movimento, era as festas de Agosto, altura que a vila é invadida pelos emigrantes, vindos quase todos de França.
Após a meia hora de descontracção, mais fictícia que real, Joaquim e Eva decidiram dar um passeio pela margem do rio que levava caudal de respeito, devido ao degelo da serra.
Deixaram recado na pensão para ser entregue aos amigos. Informando que chegariam por volta do meio-dia e meia hora.
Durante a caminhada o casal foi trocando pontos de vista, sobre o problema que afligia os jovens e a eles também.
- Joaquim, não achas que os nossos amigos deviam simplesmente desistir e voltar para casa? Procurar trabalho a condizer com a sua formação, ou simplesmente emigrar para país com oportunidades. Esta é a minha opinião.
- Tens razão querida, mas acho que uma boa luta não lhes fará mal. Mesmo que não cheguem à vitória é uma experiencia de vida. Penso que vão perder porque não têm condições para vencer. Mas serem motivados a uma tentativa poderá ser benéfico para o seu futuro.
- Mas tens forma de os esclarecer e ajudar?
- Tenho sim, mas a exigência é grande e não sei se justifica. Podemos fazer um exercício em tese.
- Conta-me!
Até ao meio dia, Joaquim não mais parou de falar. Eva fascinada ouvia atenta. Sempre que achava útil dava a sua opinião, aqui e ali.
- É isto, minha querida Eva. Uma pequena parte do que é possível fazer.
- Muito interessante! Vamos ter com eles, já devem andar à nossa procura.
Na verdade, Filipe e Manuela, já aguardavam a chegada dos amigos no jardim adjacente à pensão onde todos pernoitaram.
Depois dos cumprimentos usuais entre pessoas muito amigas embora duas gerações afastadas, os dois casais partiram para o local de almoço, um restaurante rural a poucos quilómetros da vila. Deslocaram-se no carro dos mais velhos, um carocha com trinta anos, mas em estado impecável, tanto de motor como de chaparia.
A curta viagem durou cerca de quinze minutos, não devido à distância, mas sim porque o local do almoço ficava no cimo de uma colina daquela altaneira serra. Durante o percurso, o Filipe inquiriu:
- Então Joaquim. Tem algo pensado para nos ajudar na nossa tarefa.
- Tenho sim, mas não sei se vai ser muito útil para a vossa função, mas para a vossa formação penso que sim. Durante e após o almoço vamos trocando opiniões. Tenham calma!
O local do almoço tinha uma vista soberba sobre a vila, todo vale e rio incluindo. Era um local de beleza indescritível. Os jovens estavam impressionados com tal espectáculo. Eva comentou.
- Sempre que andamos na região, vimos almoçar aqui. Como se comprova não é preciso ir para o fim do mundo para ver belas paisagens. Ao jantar, gostamos mais da tasca do Damião e da sua lareira.
O restaurante era muito simples e a comida não era pretensiosa. Era explorado há muito ano por um casal e seus filhos, gente espoliada vinda de África.
Em dado momento Agostinho tomou o rumo da conversa e nunca mais se desviou do mesmo até dar por concluindo a sua intervenção. De tempos a tempos, um dos jovens fazia uma interrogação. Agostinho esclarecia e continuava.
Vamos transcrever algumas partes da intervenção do Agostinho da Rosa Pedro.
- Manuela e Filipe, vocês têm pela frente uma tarefa difícil mas não impossível de realizar. Quem vende tem de ter benefícios para oferecer, quem compra quer receber algo que justifique o pagamento. Que tem para oferecer o produto da vossa Igreja? Que oferece os vossos concorrentes? Quais são as vossas mais-valias? Quais são os pontos fracos das outros? Como pensam actuar nas aldeias, vilas ou cidades deste interior conservador? Pensem bem antes de responder, depois farei algumas sugestões.
O casal ficou bloqueado não sabendo o que dizer. Estavam em pânico e cada vez mais precisavam da ajuda do casal mais velho. Na verdade a formação deles tinha-se baseado mais no conhecimento superficial da bíblia. Nunca tinham encarado a tarefa como uma luta de mercado. Mas uma coisa é certa, entenderam o que Agostinho explanou.
- Ensinaram-nos a levar a palavra de Jesus ao coração das pessoas, mas retirando as inverdades que a igreja católica injecta. Ou seja uma igreja mais em Cristo e menos nas mentiras dos papas e dos falsos santos.
- Sim Manuela, eu entendo. Mas a vossa questão é terem de angariar receitas. Vocês estão a comercializar a fé, senão nem tinham embarcado no projecto. Ou seja: vocês não estão a fazer sacerdócio por voluntariado ou vocação. É um comércio!
- Entendi Joaquim! Mas agora que podemos fazer?
- Filipe, com a ajuda da minha querida Eva, vou dar umas sugestões que a vida nos foi ensinando. Tomem atenção!
Fim da primeira parte
Mais uma vez deixo aos meus leitores a possibilidade de continuarem esta estória incompleta.
14/10/2015
Francisco Pereira de Castro



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Paradoxo

Paradoxo
Primeira parte
Luisa e Rita eram duas amigas com muita coisa em comum. Quando se viram pela primeira vez a empatia foi espontânea.
Uma situação semelhante as uniu, já vai para dez anos. Ambas tiveram uma experiência traumática: cancro na mana.
Conheceram-se numa consulta no IPO. Navegavam no mesmo drama, depois foram: pilar e viga uma da outra,
As mulheres tinham cerca de cinquenta anos quando o processo foi desencadeado. A estória delas era semelhante, a diferença era a mama doente: Luisa tinha cancro na mama esquerda, Rita na mama da direita.
Depois, depois? Foi a cumplicidade através dos anos…
Para além do problema de saúde já felizmente ultrapassado, as amigas começaram a encontrar-se com alguma regularidade. Agora reformadas, os convívios aumentaram.
Ambas tinham companheiros, mas até ao presente, os casais nunca se reuniram. Por isso os homens nunca tinham sido apresentados.
Facto curioso mas que elas salvaguardaram por garantia de amizade única. Um dia teria de ser…
Naquela tarde de Setembro, as amigas tomavam o seu chá de cidreira acompanhado de torradas feitas em pão saloio. Isto numa conhecida pastelaria do Chiado.
Estavam falando de tudo, inclusive dos maridos. Embora nenhuma conhecesse o companheiro da outra, falavam muito deles. Assim como falavam dos amores passados que há muito estavam no pó da memória.
Para dar encaminhamento à nossa narrativa vamos acompanhar a conversa das duas amigas:
- Rita, tens feito tantos elogios ao teu marido, tantos que sinto inveja do teu viver. Gostava de ter tido um homem assim. O meu não é nada disso. Os outros do passado também não…
- Tenho sido muito feliz, a paixão do João tem sido constante, bastante multifacetada por isso não caiu na monotonia. Nunca igual, mas sempre uma maravilha. Tudo um sonho tornado real.
- Como reagiu ele, na altura que tiraste a mama?
- Mais meigo que nunca! Mais atencioso, nunca me abandonando. Foi um suporte muito sólido…
Um silêncio emotivo estabeleceu-se naquela mesa da elegante casa de chá do Chiado. Rita quebrou o silêncio.
- E no teu caso, como se comportou teu companheiro?
- Olha, o meu foi um sacana! Como te disse na altura, o gajo foi fazer uma longa viagem. Foi um bandalho, até reconstruir a mama não mais olhou para o meu corpo. Penso que o teu homem é único. Que inveja tenho! Vou ter de o conhecer…
- Realmente é um disparate, ainda não ter reunido os casais. Mas estamos sempre a tempo…
- Quero mesmo perceber essa vossa relação, os meus homens foram sempre uns coirões. Não digo que não gostassem de mim, mas eram machistas e egocêntricos, uns egoístas. Dei muito e recebi pouco.
- Então amiga?!
- Rita, sinto muita inveja de ti, mas por outro lado fico feliz, tu mereces minha amiga.
- Luisa. Sabes amiga, o meu amado aprendeu muito antes de começar comigo. Um casamento falhado. Nunca percebi porquê! Depois muitas estórias de amor… isso deu ao João estrutura para desejar e proteger um grande amor: por um acaso ou não, fui eu, esse amor.
- Tiveste muita sorte amiga!
- Também tu merecias Luisa, porque tão boa és e para todos nós…
Foi assim o teor da conversa das duas amigas naquela serena tarde de Setembro na Baixa de Lisboa.
Rita fazia uma grande publicidade ao seu marido João, tão feliz era e tão feliz tinha sido. Já lá iam trinta anos de paixão e amor!
João continuava a adorar a sua companheira. Com paixão, faziam amor como nos primeiros anos de relacionamento.
Luisa sentia tristeza e amargura. Sempre sonhara com um homem como o marido da amiga. Sentia que merecia um amor assim…
Entretanto mais um tempo passou e um dia, finalmente o encontro entre os dois casais aconteceu.
Fim da primeira parte
23/9/2015
Nota: Mais uma estória inacabada. Cada um faça a continuação que desejar. Há um enigma! Quem o deduz?

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Um dia no Oeste

Um dia no Oeste
(Ou, Conto incompleto)
Foi um acaso…
António Pedro d’ Barcellos, navegava na sua Rocinante pelas ondas do Oeste, através de estradas secundárias das secundárias, ou seja de terceira.
Na verdade, penso que ele flutuava mais do que navegava. Sentia-se leve com uma enorme felicidade por respirar aquele ar e por dar tanto pasto à vista.
Tudo, o nosso Barcellos, observava e admirava. Era o caso dos mais variados verdes que a paisagem transportava e as formas multifacetadas das árvores, tanto caducas como perenes.
Sentia-se em estado de graça. De tempos a tempos, ou seja de quilómetros em quilómetros, parava para apreciar a cor, o cheiro e a forma de uma flor, desconhecida ou não. Depois, antes de voltar a arrancar, escrevia um pequeno poema. Naquela manhã já fora pai de seis!
- Quem saberá que ando por aqui? – Pensou em voz alta.
Ninguém sabia, era óbvio. O nosso homem nunca dava satisfações, dizendo para onde ia vadiar. Também não tinha obrigações a quem…
Era um divorciado de longa distância, quase meio século. Tinha muitos amigos e amigas, familiares também. Entre estes dois filhos, netos, um irmão e uma irmã. Os filhos já bem adultos tinham uma vida como muitas outras existências e preocupações. Ambos tinham filhos.
Como morava longe da sua rapaziada, não dava satisfações a nenhum dos familiares.
De tempos a tempos, António tinha uma namorada. A estória tinha começo, meio e fim. Passado um tempo tudo terminava. As mulheres, umas transformavam-se em amigas, outras vezes ficavam inimigas.
Na madrugada daquele dia, sua mente recebeu um apelo para ir vadiar até ao Oeste. Ao seu Oeste!
Barcellos não se fez rogado e decidiu ir. Desta vez, pensou que seria interessante ir para interiores pouco visitados. Zonas que conhecia mas que raramente lá passava.
Se assim o pensou, mais depressa o realizou!
Por isso foi um acaso, ou talvez não.
Talvez o destino. Quem sabe?
Ao passar através daquela aldeia, bem grande por sinal, António apercebeu-se de um restaurante. Parou para observar o local.
O estabelecimento estava instalado num edifício com primeiro andar, isolado das restantes construções. Recuado trinta metros em função da estrada que naquele local fazia uma acentuada curva, uma via com dez por cento de inclinação.
Já ali passara, quando atalhava para a costa oceânica, mas nunca lá parara. Nem para um café.
Levantara-se bem cedo para aquela vadiagem. Tomou um pequeno-almoço frugal, soja com flocos. Em tasca café, ou café tasca, aparecidas no caminho, já bebera dois cafés e um moscatel. Nos dois casos metera conversa e tomara alguns apontamentos.
Reparou que já começara a falar como bom saloio, fenómeno que acontecia sempre que ia de alma e coração para o seu Oeste.
O tempo foi passando e agora começava a sentir vontade de meter alguma coisa no estômago. Moral da estória, estava com fome. Já era quase treze horas e aquele restaurante estava mesmo no sítio certo.
Parou a Rocinante junto da porta de entrada do café. Já no exterior da viatura executou alguns exercícios físicos para desentorpecer os membros em especial as pernas.
- Águia Azul, que nome paradoxal para restaurante. Águia é do Benfica, azul é Dragão. Mas esperem lá. Temos a Águia francesa a ser esmagada pelo leão inglês. Como aparece no monumento na praça Mouzinho de Albuquerque no Porto, junto à avenida da Boavista. Já entendi tudo! O café deve fazer parte do restaurante…
Tudo isto pensou António d’ Barcellos nos poucos segundos que o levaram da carrinha à Águia Azul.
Então entrou no restaurante, sentido que algo o empurrava para ali. Seria a fome? Ou seria alguma aragem espiritual?
A vida é composta de milhares de encruzilhadas, todas elas muito importantes, mas umas mais que outras. Todos os dias, todos nós as temos. Uma simples mudança e a estória de muitos, será alterada.
Todos sabemos que é uma verdade de La Palice, mas raramente pensamos nisso.
Por um acaso, António chegou a uma encruzilhada. Por um acaso António entrou naquele restaurante da beira da estrada numa aldeia do interior do seu Oeste.
Em sala com alguma escuridão, o movimento era quase nulo, talvez doze a quinze clientes para uma lotação de cinquenta.
O nosso homem, não gostava de restaurantes vazios. Era mau sinal! Seria má comida, preços elevados, ou fora do circuito. Qual seria o caso dali?
Sentou-se! Uma senhora de meia-idade, um pouco mais nova que ele, pediu para aguardar. Foi com delicadeza e açúcar na voz. António respondeu-lhe no mesmo tom.
- Tenho todo o tempo do mundo, esteja à vontade.
- Muito obrigado senhor, mas basta-me uns minutos.
António nunca ali estivera, mas o ambiente parecia-lhe familiar. Começou a observar tudo atentamente. Pouco depois concluiu que gostava e subitamente sentiu-se bem. Estava em estado de euforia.
O homem conhecia bem a região, que tinha para ele uma serie de motivos de interesse, contudo o restaurante não conhecia. Enquadrado numa aldeia fora de estrada principal. Sentiu que era um sítio ideal para escrever longe do mundo, longe dos conhecidos.
Correndo da sala para a cozinha e da cozinha para a sala, a senhora de meia-idade não parava um momento, tudo fazendo. Dava prazer vê-la trabalhar.
António reparou que a mulher não perdia viagem, conjugando o trazer comida e bebidas com o levar de loiça para lavar. Estava atenta ao mais ínfimo pormenor. Chegou por isso à conclusão que ela tudo fazia no restaurante. Tudo não, do lado do café vinha de tempos a tempos um homem novo trazer os cafés, um jarro de vinho ou uma garrafa de água.
- Mais uma vez, boa tarde minha senhora. Que temos para o almoço?
A mulher explanou a ementa, que o António ouviu atento. Por fim lá tomou uma decisão.
Após algumas larachas de parte a parte, a funcionária partiu para a cozinha para tratar das entradas e do prato escolhido.
Quem estivesse de lado chegava fácil à conclusão que se estabelecera uma empatia entre António e Maria Júlia. Era este a nome da mulher.
O almoço estava a correr bem. António ia sempre dando dois dedos de conversa com Maria Júlia. Esta, sem parar o trabalho, ia respondendo.
O nosso sessentão, era um escritor amador. Gostava da região, interior de um concelho já de si interior. O seu tempo era todo o tempo do mundo, até a megera o chamar para atravessar a Ponte.
Ainda o almoço, longo por sinal, não terminara, António já sabia que Júlia era viúva e ultrapassara há pouco os sessenta anos. O filho Carlos ajudava tomando conta do Café. Era uma vida de muito trabalho mas limpa.
- Por acaso vocês não alugam quartos?
- Por sistema não, mas temos dois para alugar por períodos mais ou menos longos. Porquê, estava interessado? Tenho um muito bom com casa de banho.
- Diga-me o preço dona Júlia.
- Por favor deixe, dona, de parte. Só Júlia, Maria ou Maria Júlia O aluguer custa aquilo que combinar com o cliente, depende do número de dias, da época. Mas nunca abuso. Quaisquer vinte euros, sem pequeno-almoço, dão para pagar. Se for muitos dias ainda faço um desconto. Quantos dias, pretende ficar, senhor?
- António, ou Pedro se desejar. Chamo-me António Pedro: Diga-me o custo para uma semana?
- Uma semana, sete noites, faço cento e vinte euros sem pequeno-almoço.
- Está bem! Posso ficar hoje?
- Claro Pedro. Gosto mais de Pedro. Já agora, vai jantar?
- Sim Júlia! Vou estudar a aldeia e os arredores. Depois janto e ao serão vou trabalhar. Agora dê-me a conta.
- São doze euros!
- Aqui está mais vinte para o quarto. Às sete e trinta cá estarei para o jantar.
Após isto, António saiu para o exterior. Respirou a ar puro que soprava do lado da serra. Apreciou a paisagem que via do parque do restaurante. Meteu-se na viatura e conduziu até ao alto da colina. De lá a abrangência paisagística era imensa e espiritualmente bela. Longe ao fundo, para as bandas do oeste via-se o oceano.
Mais tarde queria caminhar pela aldeia que tinha um nome patusco. De súbito passou pelo nosso homem um bando pintassilgos. Foi um momento mágico, António adorava pintassilgos.
No restaurante, Júlia despachava os últimos clientes. Após lavar a loiça e arrumar a cozinha, foi preparar a sala para a noite. Voltou à cozinha para organizar os ingredientes para o jantar. Como costume não seriam muitos clientes.
Ao almoço não passavam de quinze a vinte, à noite seriam metade mais um menos um.
Depois da ida à colina, António voltou à aldeia. O tempo estava agradável, céu limpo mas sem excesso de calor, o frio também não incomodava.
Muitos idosos sentavam-se na soleira das portas. O escritor amador ia metendo conversa com alguns. De imediato estórias de vida vinham à baila. Passou resto da tarde nisso, gravando conversas com autorização dos intervenientes. Um sofisticado gravador de pequena dimensão era a sua principal ferramenta.
Aqui e ali foi tirando fotos, aos velhos, às crianças, aos animais, às casas e à paisagem.
Numa pequena taberna com pretensões a café, instalou-se. Bebeu a sua bica e o seu moscatel. Num caderno A5 quadriculado, foi tomando notas de alguns pormenores que não queria esquecer. Esta dos blocos quadriculados era uma velha tara assim como escrever a tinta negra.
Quando chegou ao restaurante, levou da carrinha uma pequena mala de viagem, sempre preparada para as suas fugas repentinas. Dentro tinha: cuecas, camisolas, camisa, pólo, meias, lenços, pijama. Também as higienes: gel de banho, shampoo, escova de dentes, etc. Alem disso o computador. Era um homem baldas, mas metódico, um paradoxo.
Ao entrar na sala, foi recebido por um sorriso de Maria Júlia. Via-se que ela estava feliz por o ter ali. Era compreensivo, era algo de novo na vida da bonita senhora.
- Então como correu a tarde José?
- Muito bem. Trabalhei bastante, foi produtivo. Mas gostei mais do almoço.
Uma expressão de prazer irradiou do rosto de Júlia. Que lindo piropo. Pensou a mulher.
António sentou-se e continuou a escrever. Fazia-o em velocidade estonteante, quase frenética. Júlia fascinada ia sempre observando pelo canto do olho.
Escolhido o jantar, escolhido o vinho a refeição foi um prazer, um êxtase. António a um canto da sala, acompanhava todos os movimentos de Júlia. O seu andar, as pernas, os seios que por vezes oscilavam, o cabelo que rodeava a belo rosto. António com o vinho, sentia crescer em si exponencialmente a beleza feminina. As feias tornavam-se bonitas, as bonitas ficavam maravilhosas. Ainda por cima Júlia era mesmo uma linda mulher, mesmo muito em função da sua idade.
Mas António gostava de mulheres de sessenta ou mais, embora Júlia não aparentasse a idade que tinha.
O nosso homem ficou na sala até sair o último cliente. Depois pediu a conta e a chave do quarto.
Recebeu da Júlia as informações necessárias. Ante de ele subir ao primeiro andar, ela inquiriu.
- José, vou para cima, por volta da meia-noite. Quer que lhe leve algum chá ou outra bebida?
- Sim Júlia, gostava imenso. Até porque gostava de falar um pouco consigo. Não há inconveniente?
- Terei muito prazer, não há inconveniente, sou uma mulher livre. Além disso o meu filho não fica cá, vai para sua casa que fica na rua de cima.
- Então vou trabalhar e espero por si.
Olharam-se e um subtil sorriso apareceu nos dois rostos.
António subiu a escada interior que dava acesso um pequeno hall transformado em sala de estar, entrou no quarto e ficou satisfeito. Era amplo, tinha cerca de cinco metros por quatro e uma varanda com vista para o vale.
Tudo tinha ar de limpeza, a mobília revestida a fórmica bege dava um ar de leveza ao ambiente. Era moda nos anos cinquenta/sessenta, este tipo de mobiliário, com o advento dos termolaminados. A cama de casal era larga e estava coberta com uma bonita colcha de renda em que predominava o azul e branco. Uma cómoda, um guarda-vestidos, duas mesas-de-cabeceira, uma secretária e duas cadeiras completavam a mobília. Minto! Havia ainda um bonito baú, um cabide de pé e outros dois aplicados na parede.
O quarto de banho ainda com banheira, tinha as paredes forradas a azulejo branco com tiras em azul. Tudo tinha muito bom gosto, embora nada de luxos desnecessários.
Como já disse, a quarto dava para uma ampla varanda, assim como o segundo quarto dava para a mesma varanda. Esse quarto era onde Maria Júlia dormia. Quando havia hóspedes para estes quartos, a mulher mudava-se para um pequeno nas traseiras do edifício no piso debaixo. Neste andar ficava o restaurante, café, garagem, dispensa e o tal pequeno quarto.
António tirou da pequena mala, pijama e chinelos, assim como a saqueta das higienes. O pijama é uma forma de dizer, tirou as calças, para cima dormia de camisola interior e no calor sem nada.
Foi lavar os dentes, depois ligou o computador. Abriu o caderno A5, sentou-se e sobre a mesa começou a escrever em ritmo acelerado. Queria pôr o dia no papel. Escreveu, escreveu, escreveu!
Embora houvesse TV no quarto nem lhe passou pela cabeça ligar o aparelho. Um pouco de música clássica fazia-lhe falta, mas decidiu passar sem esse prazer.
Para ele, a música maior no momento, era a doce voz de Maria Júlia.
A estadia naquele quarto fora de impulso. Atitude que António fazia em muito lado. Por isso, levava no carro, sempre, a mala preparada com o imprescindível.
Na parte de baixo, Maria Júlia arrumava a cozinha para depois organizar os produtos para o almoço do dia seguiste. Ela numa decisão de boa gestora e bom senso, confeccionava os menos pratos em cada dia da semana. Um dia cozido à portuguesa, outro dia bacalhau com todos, outro dia feijoada, outro dia borrego e por aí fora.
Maria Júlia era muito eficiente. Conseguia fazer tudo porque o seu planeamento era bem pensado e rigoroso. Trabalhava das oito da manhã até às vinte e quatro, dezasseis horas de labuta era obra. Embora a pressão não fosse sempre igual, nunca fazia as tarefas a correr, ou à balda. Era uma grande fundista da vida.
Enquanto executava as tarefas do fim do dia, Maria Júlia pensava no senhor António Pedro d’ Barcellos que aparecera nesse dia ao almoço e que agora estava no quarto principal no primeiro andar do seu edifício.
No seu pensamento de pessoa inteligente mas simples, ela sentia que ele ficara por causa ela. E como tinha razão.
Na verdade, raramente a bonita mulher aceitava alugar os quatros por uma noite ou duas. Ela por vezes alugava por períodos longos a professoras, funcionários públicos, ou para receber família.
Naquele caso não resistira, desejava mesmo isso. Houve algo a tocar no seu subconsciente. Sentiu-se bem, sentiu-se feliz, sentia-se a flutuar.
Pensou em voz alta: Que bebida vou levar? Levo chá de cidreira, é bom para os nervos, estômago e para dormir.
Depois continuou, desta vez só para ela: Que fará este homem tão distinto? Deve ser professor, escritor ou coisa parecida.
Já com a sala das refeições e cozinha em ordem, a Júlia preparava as hortaliças para o dia seguinte, da cabeça não saía o homem que entrara nesse dia na sua vida: Vou levar o chá e bebo também. Será no quarto ou será melhor na saleta do primeiro andar? Ele que decida: estou por tudo!
Num tabuleiro meteu o bule, duas chávenas, açúcar, um prato de bolos secos e dois guardanapos. Antes de subir, foi ao quarto de banho e deu uns retoques no rosto e no cabelo. Sorriu, gostou do que viu. Ao bater das badaladas da meia-noite, Maria Júlia pegou no tabuleiro e subiu as escadas interiores de acesso à habitação. Ia feliz mas muito nervosa.
Maria Júlia tinha sessenta e dois anos, mas ninguém lhe dava sessenta. Era loura mas verdadeira. Era daquelas mulheres que apareciam de tempos a tempos nas grandes famílias das aldeias do centro e norte do país. Obvio que também apreciam machos. Os cabelos tinham a cor das barbas de milho. Os rapazes designavam-se por russos e as mulheres por louras. Maria Júlia era uma loura.
Nascera numa aldeia da serra Amarela lá para os lados do Gerês no Minho.
Ainda adolescente fora para o Porto para servir em casa de gente importante. Mas pessoas decentes que sempre a respeitaram. Passaram-se alguns anos até conhecer o magala Agostinho.
Depois de um namoro de um ano, após a passagem à disponibilidade do rapaz, juntaram os trapinhos e casaram. Continuaram no Porto uma temporada.
O rapaz era um bom homem, pedreiro de profissão.
Um tempo depois devido à falta de trabalho na cidade invicta, partiram para a região do Agostinho no Oeste do país. Aqui o marido de Júlia herdara dos pais uma fazenda e uma casa velha embora grande.
Um dia, através duns primos proporcionou-se uma hipótese de ida para o Canadá e eles foram.
Lá longe nasceu o filho Carlos. O único do casal.
Ela não desgostava do Canadá e do frio que lá havia, porque era natural de uma serra e tinha sido habituada à neve. O pior era o Agostinho, tinha saudades do clima do Oeste, único na Europa. Nunca se adaptou a emigrante do frio. Por outro lado Portugal com a entrada na UE parecia crescer a olhos vistos.
Decidiram regressar! Com o dinheiro amealhado e a reforma que valia muito no país natal, Agostinho decidiu fazer obras no velho casarão. No projecto incluiu um restaurante e um café.
Assim nasceu o restaurante onde Maria Júlia trabalhava dezasseis horas por dia, todos os dias da semana.
O filho já crescido não quis estudar. Casou com uma moça da terra e ficou a tomar conta do café. Agostinho, entretinha o seu tempo fazendo uns biscates na construção civil e na lavoura da sua fazenda.
Estava tudo certinho naquela normalíssima família!
Um dia, já lá vão doze anos apareceu uma coisa má ao patriarca da família. Após uma luta inglória, Agostinho partiu para se juntar aos seus antepassados.
Maria Júlia ficara viúva aos cinquenta. Após sentido desgosto, reagiu e agarrou-se com afinco ao negócio. Ela e o filho lá se foram desenrascando.
Embora muitos homens a contra piscassem, porque era bonita, jeitosa e com haveres, nunca mais quisera homem. Até porque nenhum a encantara.
Nas noites de desejo e desespero que a abafavam, Maria Júlia tocava-se sem qualquer complexo. Fora uma jovem professora que a ensinara.
E assim chegámos ao dia de hoje!
António Pedro d’ Barcellos quem era?
Simplesmente um homem do mundo!
Um ser com muitas paixões. Não me refiro só a mulheres. Falo de muitos outros interesses, incluindo a paixão pela vida. Gostava de muita coisa, mas de mulher também. Mas escrever, escrever, escrever, era a sua maior paixão.
Homem de muitas vidas de que não falaremos, exceptuando o necessário.
No seu agradável e confortável quarto o nosso António Pedro d’ Barcellos. Escrevia sobre o dia, dia muito gostoso. Desde o momento que partira de casa na sua Rocinante a caminho do seu Oeste.
Ainda pensara desafiar o seu irmão José ou a sua irmã Maria Rita. Algo lhe disse para ir só. E assim, partiu sem companhia.
António visitou pequenas coisas nesse dia, escreveu, conversou, tirou fotos. Pequenos monumentos, nascentes, colinas, paisagens. Apreciou, árvores, flores e muitos pássaros. Alguns repteis, um coelho aqui uma lebre ali. Com autorização fotografou pessoas, conversando um pouco com cada.
Nada disso era invulgar, António fazia isso com regularidade. Tanto nas aldeias como na cidade grande.
O tempo foi passando. António voltou à actualidade quando ouviu a primeira badalada da meia-noite no sino da igreja da aldeia.
Voltou o seu pensamento para a Maria Júlia e a sua alma sorriu.
Pouco depois ouviu umas suaves pancadas na porta. Elas diziam que a dona do restaurante estava do lado de fora com o combinado. António levantou-se e foi abrir a porta.
Um dentro outro fora, ficaram uns minutos a olharem-se como se as duas almas estivessem a falar entre si, através dos sentidos em especial dos olhos negros do António e dos verdes de Maria Júlia.
O homem quebrou o silêncio.
- Que bebida trás Júlia? Onde bebemos?
- Cidreira. Por mim onde quiser, seja no quarto seja na saleta.
- Não se compromete se for no quarto?
- De maneira nenhuma. Não está ninguém na casa, além de nós. O meu filho foi para sua casa. Além do mais sou mulher livre não tenho satisfações a dar.
- Vamos para a saleta e aproveitamos para conversar um pouco.
António sentiu na expressão de Maria Júlia uma ligeira frustração. Os olhos denunciaram a bonita mulher. Mas isso durou poucos segundos.
Em breve estavam conversando sobre os mais variados temas. Maria Júlia não era uma pessoa culta, mas disfarçava mostrando muito interesse por tudo que o homem falava. Por sua vez, o Barcellos, tinha cuidado de não exagerar nos temas nem na complexidade que podiam deixar a Júlia pouco à vontade.
Passou-se assim meia hora. O chá foi bebido e repetido e os bolos deglutidos. Em certa altura Júlia disparou.
- António Pedro fica cá só esta noite. Fica cá mais alguma? Voltará cá mais vezes?
O homem sabia que o caminho para o Éden estava aberto, contudo sentiu que Maria Júlia estava bem cansada devido ao dia de labuta. Por isso achou por bem não forçar. Para quê matar já a magia.
- Júlia, penso ficar cá mais duas ou três noites. Penso voltar mais vezes. Sinto-me bem na região, a sua comida é muito boa, o quarto é excelente. Além de tudo o mais sinto uma grande empatia com a Júlia.
Para uma pessoa atenta, esta conversa do António era uma declaração de intenções…
- Fico contente, muito feliz mesmo! Agora vou descansar que amanhã às oito tenho de entrar ao serviço. O restaurante não pára.
- Tem razão, já é quase uma hora e tem um ar cansado. Mas está bonita e com ar feliz.
Júlia sorriu e um ligeiro rubor surgiu nas suas faces claras. Depois António disparou a seta final.
- A Júlia quer que venha cá com regularidade?
- António. Eu quero que venha muitas vezes e se cá ficar para sempre, ainda fico mais feliz!
Sorriram ambos, emocionados despediram-se sem se tocarem…
Amanhã seria outro dia… Eles sabiam isso!
Fim da primeira parte
3/2/2016
Nota explicativa
Agora levanta-se uma questão:
Continuar ou não a estória?
Ou será melhor deixar neste pé, escrevendo no fim. Um dia terá uma continuação?!
Penso que a estória ficará assim mais elegante, deixando ao leitor o desejo de saber mais. Deixando ao leitor interessado o desafio para ele escrever a segunda parte. Cada um pode imaginar a sua própria continuação.
Que titulo colocar? Veio-me um à mente, “Um dia no Oeste”. Mas podia ser um outro qualquer. Por exemplo, “ Conto incompleto”.
Como todas, as minhas estórias, esta também tem elementos concretos e personagens copiadas de algum lado, o caso da Maria Júlia e do meu heterónimo António d’ Barcellos. O local existe assim como o restaurante, as paisagens também com sua beleza.
O resto é ficção!
Obviamente é tudo no interior do meu Oeste!
Francisco Pereira de Castro