quarta-feira, 8 de abril de 2015

Cooperantes - Coluna, um trabalhador campeão!

09 - Coluna, um trabalhador campeão!
Um dia numa tertúlia de amigos, discutia-se a capacidade de trabalho do branco e do negro. Cada um tinha a sua opinião. Algumas bem reaccionárias. Mas outras não. Enquanto íamos bebendo uns finos e deglutindo uns carapaus fritos, cada um esgrimia os seus argumentos. Foi então que o Brandão com a sua verbosidade de quem sabe o de diz, quis contar uma parábola real. Com isso ele desmistificou toda a conversa da treta da rapaziada. Dizia ele...melhor…com sua autorização vou reproduzir um texto da lavra de José d’ Barcellos feito a seu pedido.
Hoje recordei um homem com H grande, um campeão, um famoso capitão de seu nome Coluna. Comandava os companheiros com seu exemplo, respeitando e sendo respeitado. Vós sabeis de quem falo? Vós conhecestes essa personagem? Quase todos dirão que sim: o Mário Coluna capitão do Benfica europeu. Dirão, dirão! Lamento, mas foram tiros na água. Não é esse, é outro de quem ninguém se lembrará, sou talvez a excepção.
Coluna não era o seu nome, mas sim a alcunha. Nunca soube qual a analogia com o seu chará? Eram os dois negros, um de Angola outro de Moçambique, mas só por isso não justificava o plágio do nome. O meu colaborador, era alto, ossudo, carrancudo, podia-se dizer que era um ser sem beleza física, mas grande beleza de carácter, cumpridor, responsável, sem conflitos: embora sempre com uma expressão carregada. Não era instruído, nem rico, nem bonito, mas era um ser fabuloso. Como o outro Coluna, um grande campeão e um grande capitão.
O meu amigo Coluna, homem na casa dos quarenta, era montador de prateleiras, chefe de equipa. Como todos os operários era mal pago, fosse na metrópole, fosse na colónia: mas para preto era pior. Sem prémios de rendimento, sem subsídios de alimentação ou deslocação. Tudo ao contrário do que acontecia na empresa na metrópole. Coluna sem ser bajulador, era sóbrio e confiável. Todos eram explorados mas o meu amigo era mais, porque distinguia-se como trabalhador e recebia o mesmo.
Uma das minhas utopias era mudar o cenário dessa situação. Após conflitos com a administração consegui levar a água ao meu moinho. Por várias vezes a minha cabeça esteve no cepo, mas consegui que a utopia passasse a ser realidade. Os salários melhoraram, e o subsídio de alimentação e deslocação começou a ser uma prática na empresa em Luanda. Só não consegui o prémio de rendimento. Mais tarde consegui dar a volta ao patronato, leiam o resto da narrativa. Voltemos ao Coluna.
O Coluna tinha uma característica de marca, começava a trabalhar à hora certa, não mais parava até à hora de fechar o expediente e por vezes continuava. Era impressionante vê-lo montar as estantes. Um chefe de equipa no Puto montava 40 prateleiras por dia, ele de sua alcunha Coluna, montava 120 prateleiras por dia. Era fantástico! Pergunto, era justo ganhar o mesmo que os outros? Claro que não! Passou a ser recompensado, ele foi a prova viva que os vencimentos não podem ser em tabela horizontal, idiotice que apareceu com o 25 de Abril.
O Coluna era dos poucos negros que não metia vales durante o mês, nunca se embriagava. Tiro-lhe o meu chapéu, era um grande senhor!
Após o 25 de Abril e antes da independência, o meu amigo Coluna esteve envolvido no acidente em que o Freitas perdeu a vida. Ficou muito mal tratado mas sobreviveu. Quando abandonei Angola deixei-lhe parte do meu dinheiro e roupas!
Ao recordar este negro que honra o seu país, acabo com um desabafo tanta vez por mim repetido em relação a outros. Não ter tido a humildade de ter conhecido melhor este homem!
José d’ Barcellos, 14 de Novembro de 2011
Perante este texto do nosso amigo, que mais poderemos dizer. Havia grandes trabalhadores em Angola, brancos ou negros, como os há em Portugal. Assim como se passa o mesmo com os calões duma cor ou de outra, de um país ou de outro. Djapam, 20/1/2014.


segunda-feira, 6 de abril de 2015

Cooperantes - As filas

08 - As filas
Nessas noites de Luanda, quando não havia recolher obrigatória, a cena repetia-se, eram as filas para obtenção de algum alimento.
Por todo a cidade asfaltada a cena era a mesma, durante o dia filas que nunca tinham fim, melhor, tinham fim quando o produto em causa esgotava. Era um vazio total numa cidade sem comida mas inundada de famintos. Famintos tivessem eles ou não dinheiro, estávamos todos no zero absoluto.
Essas tristes e desalentadas filas prolongava-se pela noite, por vezes até de madrugada, se a noticia fosse. – Vai haver produto! - Era o pão, era a carne, era as batatas, era o arroz, feijão, massa e tudo o resto. Os do poder e do partido sempre tinham comida assim como os convidados do governo, em especial gente do leste. Os cubanos também tinham nos quartéis. Mas para o povo angolano néspias. Os cooperantes portugueses estavam inseridos no mesmo patamar das gentes pobres e desprezadas de Angola.
As famosas filas eram noventa e nove por cento de pretos, alguns mulatos e dois ou três brancos, normalmente mulheres em busca de um pouco de comida para ela, marido e filhos. Era isso que acontecia com a senhora Castro, enquanto o seu homem trabalhava fazendo o possível por ajudar Angola. Passava os dias nas filas, também chamadas de bichas. Ela andava durante o dia de fila em fila, muitos dias regressava a casa a chorar de mãos vazias. Durante a noite, era o Castro e amigos que iam para as filas.
Vou contar algumas cenas sobre essas famosas filas.
Como já foi dito ou irá ser dito, a mulher do Castro andou por essas filas durante a gestação da filha que nasceu em Junho de 1976, concebida na Angola colonial e nascida na Angola independente. Por aqui se pode perceber o drama e coragem dessa mulher que não quis deixar sozinho em Luanda o utópico companheiro.
Como todos devem entender, será escusado dizer que naquelas filas o branco estava sempre fodido, ou seja tinha de bater a bola baixinha.
Os negros marcavam o lugar com pedrinhas, assim era incontrolável o número de gente que apareciam a mais. Só o controlo de outros negros impediam maior exagero neste ardil do povo, e que fosse quase impossível chegar à frente. Branco caladinho ou então tinha de usar muita diplomacia, era uma grande merda. Coitados dos cooperantes portugueses, que tanto davam sem compensação.
Para os cooperantes não havia ainda canais alternativos como se impunha, para quem estava a produzir para uma nação que não é a sua. Por vezes eles conseguiam algumas alternativas, mas sobre isso falaremos quando vier as comidas à baila, agora era só para falar de filas, ou bichas.
Agora falemos então das filas…
Há uma estória que tem de ser contada para sermos honestos.
Um dia houve uma distribuição de arroz, a senhora Castro chegou ao local, a fila transbordava e ainda havia as célebres pedras. Ela com uma barriga enorme não conseguiu conter as lágrimas. Preparava-se para se afastar, foi então que aconteceu…
Umas negras que estavam nos primeiros lugares da fila, exigiram que ela viesse para a frente da fila, dizendo ao mesmo tempo para aquelas que reclamavam.
- A camarada com essa barriga não pode ir para o fim da bicha, venha para aqui. As camaradas calem-se senão levam no focinho…
Este foi o acto mais sublime de que tive conhecimento no que respeita a estas filas de sofrimento em busca do nada.
Na noite de Natal de 1975, os Castros e amigos incluindo a minha pessoa, foi passada à porta de um talho. Sei pela senhora Castro que quando chegou a sua vez o talhante vendeu-lhe o melhor que tinha. O dia 25 foi por isso mais festejado, fomos todos ao quinto andar da rua 5 de Outubro conviver.
Os produtos eram normalmente de má qualidade, muitos eram de países que os enviavam para os miseráveis. Eram contudo desviados e vendidos nos circuitos mafiosos.
Um dia houve uma distribuição de frangos vindos da Holanda. A senhora Castro lá conseguiu um com as dificuldades do costume, a preço de ouro. O filho da puta do frango era rijo como cornos, nunca conseguiu ser cozido devido ser tão duro e velho. Esquisito, não é? Um frango duro e velho!
Os produtos faltavam meses seguidos, por exemplo, batatas não houve por vezes em períodos de dois e três meses. O pão que se conseguia, no dia seguinte estava cheio de bolor.
Como os leitores podem compreender, a vida era uma maravilha para os cooperantes portugueses, por isso também para o casal Castro. Djapam, 7/1/2014


domingo, 5 de abril de 2015

Cooperantes - A Morte do Freitas

07 - A Morte do Freitas
O país estava sem rei nem roque, três exércitos com armas e outro sem armas e rendido, todos convivendo no meio das suas contradições, numa cidade que crescia em população e diminuía em infra-estruturas, tudo isto gerido por um governo misto sem preparação, tudo marinheiros de primeira viagem.
Estava a chegar o tempo de tudo se desmoronar, muitos ainda tinham esperança, mas era fácil de ver que aquilo não ia dar em nada. Ou melhor, ia dar uma grande confusão e quem se ia lixar era o mexilhão, branco, preto ou mulato. Mas esta escrita é para falar de um drama passado nessa época.
Era o tempo em que ainda havia utopias, por isso os idealistas tentavam fazer alguma coisa. Era necessário abrir uma Escola na cidade de Carmona (Uíge), a minha Empresa ganhou o concurso. Preparou-se os materiais e planificou-se a execução, tudo sob a minha gestão. Pensei, despacha-se os materiais e mais tarde uma equipa de montadores chefiado pelo Freitas, vão executar a obra em dois ou três dias, deslocando-se numa carrinha própria para o efeito. Tudo muito simples.
Havia dois percursos para chegar a Carmona, por Salazar (Dalatando) cerca de seiscentos quilómetros, caminho seguro durante a guerra colonial, ou um percurso curto cento e cinquenta quilómetros mas muito perigoso direito ao Caxito: durante a luta armada só era possível ir em coluna militar. Mas agora com o fim das hostilidades (uma treta) a via estava aberta.
Quando foram informados da montagem, o pessoal pensou logo em fazer uma excursão até Carmona, não era trabalhar era passear, o Freitas chefe dos montadores, o Cunha motorista da nossa camioneta, vieram falar comigo para terem autorização. Com uma dose de bom senso e sendo responsável, não autorizei, explicando as razões que eram muitas. Trabalho é trabalho conhaque é conhaque.
Nessa altura estava na Filial um gerente que era uma porcaria de homem e gostava muito de ser engraxado. Os meninos, nas minhas costas foram pedir autorização ao dito superior que acabou por interferir numa área que não devia. A autorização foi concedida.
Numa dada madrugada, camioneta cheia, Cunha a conduzir, Freitas ao lado, em cima da carga, o Coluna mais os seus ajudantes, à saída da cidade no Cacuaco deram boleia a mais três pretos e lá foram cantando e rindo.
Os brancos na cabine rindo com as anedotas que contavam à vez, o Cunha fumando a sua cigarrilha com o cotovelo apoiado na janela aberta, o Freitas falando de gajas e do ódio que tinha à mulher, da admiração que tinha pelo pai e do grande amor ao filho de oito anos.
Em Luanda, entretanto uma discussão entre mim e o gerente tinha lugar, tratei o homem abaixo de cão, ele ameaçando fazer queixa à administração. - Faça, faça que eu assino por baixo.
Entretanto a viatura de carga continuava a sua viagem através da floresta virgem, por estradas sinuosas com bruscas inclinações. A carga era perigosa, volumosa mas leve, exigindo condução cuidada. O pessoal ia cantando e bebendo, em certo momento o drama deu-se…
Numa curva surpresa o Cunha não conseguiu controlar a Toyota Dina e lá foram pela ribanceira. Não foram longe devido às árvores. Mas os estragos foram muitos. Alguns pretos morreram, outros, ninguém mais os viu, o Coluna ficou muito mal tratado o Cunha nem tanto, mas o pior foi o Freitas, ficou entalado entre a porta e uma árvore com diagnóstico reservado.
Após o almoço tive conhecimento do grave acidente. Uma viatura do desarmado exército português trouxe os feridos para uma Clínica privada da capital, para lá me dirigi de imediato e lá passei muitas horas. O Cunha foi tratado e teve logo alta, o Coluna com fracturas múltiplas tinha para muitos meses mas não corria perigo de vida, o pior era o Freitas, tinha a coluna partida e estava paraplégico da cintura para baixo. O pai e o filho estavam na Clínica, o sofrimento deles era tão intenso que não consigo descrever.
Fazia tudo para os animar mas não conseguia, também não sabia como. A clínica estava como o país, sem rei nem roque, por isso a assistência não tinha qualidade, muito preto ignorante nos serviços, tratando outros pretos ainda mais atrasados.
Ao fim do dia, quando saí da clínica ia muito preocupado com aquilo que se passaria durante a noite. Ainda hoje pergunto a mim mesmo, qual a verdade dessa noite?
No dia seguinte quando cheguei o Freitas tinha falecido. Foi um choque embora já o esperasse, mas num futuro próximo. Pensei logo no menino e no pai, mas a criança era a minha principal preocupação. Agora tinha de cumprir a ingrata missão de dar a triste noticia. Informar um pai e um filho numa situação como esta, não o desejo a ninguém.
Lá cumpri a missão com grande emoção, a imagem de sofrimento dos dois nunca mais saiu da minha mente. Então o rosto, a expressão de tristeza daquela criança que adorava o seu pai, ficou para sempre colada a mim. O leitor deve imaginar a minha revolta por terem estupidamente alterado uma ordem minha. 
José d’ Barcellos – 3/08/2010 – Este é um drama verdadeiro, vivido em Angola após o 25 de Abril de 1974. 
Esta estória é muito dramática! Porque razão, uns tantos portugueses insistiram em ficar em Angola, num país sem rei nem roque como diz José d’ Barcellos, um herdeiro da coroa que lá ficou por utopia. O nosso amigo também regressou desiludido com tudo e todos. Todos não! Nunca o desiludiram o José Brandão, o Alberto de Castro, e eu também, o que me deixa muito feliz.
Um dia, muito mais tarde recebi uma carta do José d’ Barcellos.
Meu bom Djapam,
Espero que estejas bem assim como a tua preta e a tua criançada. Cá por mim, continuo com a esperança que esta gente um dia pense que é mais lógico uma monarquia que a porcaria de uma república pseudo democrática.
Mas não é para falar da porcaria do regímen que te escrevo. O motivo é outro, infelizmente é com muita tristeza que o faço.
Lembras-te do nosso amigo Freitas meu subordinado aí em Angola? Claro que sim, é impossível esquecer. Bolas para aquilo tudo, ainda hoje me faz sofrer.
A família do Freitas regressou a Portugal após a sua morte. O pai nunca mais reagiu e acabou por desaparecer em coma alcoólica, a mãe acabou numa cama do manicómio. Mas é do filho que quero falar. Criado ao Deus dará, rápido se meteu na droga. Há poucos dias através do nosso comum amigo Laurindo soube que deixou este mundo através de uma mortal overdose.
Escrevo-te porque precisava de desabafar. Não consigo tirar da minha mente a expressão daquele menino de oito anos que adorava o pai, quando lhe disse que o seu mais que tudo morrera. Djapam, foi das coisas mais difíceis que fiz na vida.
Obrigado meu amigo, e desculpa.
Um abraço do tamanho de Angola.
José d’ Barcellos

Meu querido amigo, fizeste bem em desabafar comigo. Por favor fá-lo sempre! Djapam, 20/1/2014

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Cooperantes - Academia de Xadrez de Luanda

05 - Academia de Xadrez de Luanda
Na minha mais que modesta opinião, considero que é importante dedicar um capítulo à Academia de Xadrez de Luanda, independentemente de falarmos nela noutros textos de os “Cooperantes”. Porque esta instituição foi um exemplo para se compreender o espírito empreendedor dos homens que passaram pelo espaço angolano.
A Academia, nasceu devido há necessidade de haver um espaço próprio para se jogar xadrez, mas ainda mais. Para se poder promover, ensinar, estudar e praticar este jogo sagrado que é arte, ciência, desporto, filosofia e até para alguns uma religião.
Não sou grande jogador, antes pelo contrário. O Alberto de Castro também não é muito entendido. Mas tanto ele como eu, acompanhamos o trajecto da fundação dessa instituição Desde o nascimento da ideia até à acoplação da Academia à Federação Angolana de Xadrez. Contudo só falarei da Academia de Xadrez de Luanda referente ao período a que estes textos abrangem e se referem, ou seja até aos fins de 1977, tempo, em que os meus personagens regressaram a Portugal.
Alberto Pereira de Castro, também girou pelo xadrez luandense, como eu, e como eu também era um jogador medíocre, com paixão pela arte de Caissa.
A Academia de Xadrez de Luanda, nasceu com esta designação por força dos argumentos do José Brandão. Estava previsto uma outra nomenclatura: clube, grupo, núcleo, etc. A ideia era ser um clube de xadrez de Luanda e nada mais que funcionar na panorâmica dessa modalidade. Pelo menos era essa ideia do seu mentor inicial João Palma, secundado e apoiado pelo senhor Franco oculista. Este cavalheiro era assim conhecido porque fazia parte da famosa organização oftalmológica. Pessoa de prestígio, muito distinta: colocava a excelência à frente de tudo.
Os xadrezistas de Luanda praticavam o seu desporto por cafés e suas esplanadas, competindo oficialmente por diversos clubes. Recordo por exemplo torneios realizados, na Casa de Tras-os-Montes, Antigos Estudantes de Coimbra, Nuno Álvares, Clube dos Caçadores, Clube da JAEA, etc. Os jogadores queixavam-se da falta de um espaço próprio. Recordo os desabafos de Carlos Oliveira, grande revelação do xadrez de Angola em 1971/2. Dizia ele.
- Se houvesse um gajo rico que nos desse ou empresta-se um espaço: era muito bom.
Temos de referenciar que Carlos Oliveira era muito pobre, de uma família com muitas carências, não só de bens materiais mas também de carinho. Era um pobre de Cristo. Ainda por demais, meio cego de uma vista e coxeando devido a defeito numa das pernas. Mas era um talento para o xadrez, no tabuleiro era senhor parecendo flutuar acima de todos nós. Foi campeão de Angola em 1974, o ultimo da era colonialista. Embora angolano branco, amante do seu país não resistiu à pressão, fugiu, embarcando dias antes do dia 11 de Novembro de 1975. Em Portugal teve uma vida miserável, sendo explorado até ao tutano. Muito depois conseguiu um lugar na Câmara de Lisboa através da cunha de um engenheiro, conhecido jogador de xadrez, um velhote que teve pena do infeliz.
Recordo perfeitamente o que lhe disse José Brandão, após ter ouvido por diversas vezes o queixume do triste Carlos Oliveira.
- Carlos, se queres bolota trepa, se queres ter alguma coisa tens de lutar por ela, não estejas à espera da sorte grande, unam-se e façam alguma coisa. Ter sorte dá muito trabalho!
Quem criou essa união foi o João Palma, figura grande do xadrez de Luanda, o seu amigo pessoal o senhor Franco, apoiou a sugestão. Palma falou com o Brandão que alinhou na ideia. Este por sua vez recrutou Daniel Freire que funcionou com escriturário e serviu de moço dos recados.
Mas na verdade, o João Palma e o José Brandão, foram os elementos fundamentais para o projecto avançar. Sem o Palma não teria havido Academia, e sem o Brandão a instituição nunca teria a designação de Academia. Parece um paradoxo, não é? Mas não é mesmo! Foi o Brandão que propôs uma filosofia especial para a colectividade a criar. Dizia ele.
- Se vamos criar algo, então vamos fazê-lo em grande. Proponho que se chame Academia de Xadrez de Luanda, assim atingem-se vários objectivos.
Por sua vez Palma contrapunha…
- Mas Brandão, não será um nome demasiado pomposo? Depois vão dizer que somos uns pretensiosos.
- Não concordo contigo Palma. Uma Academia é um local onde se concentram os melhores em determinada área do saber. O local onde se aprende e ensina. Onde irão jogar e aparecer no futuro os melhores jogadores de Luanda? Será numa Academia se ela existir. Principalmente se ela não tiver equipa própria na competição e seja uma “Casa do saber”.
Claro que o meu amigo esgrimiu mais uns tantos argumentos impossíveis de serem rebatidos.
Com isto José Brandão levou a água ao seu moinho, convencendo toda a gente envolvida. Mais tarde foi este elemento a criar o emblema da Academia e a fornecer todo o mobiliário para a sede. Palma redigiu os estatutos, diga-se de passagem que estes são dos mais evoluídos que se possa imaginar. Os detractores e os amigos da onça, que os leiam para descobrirem como certos portugueses tratavam as relações com a terra onde viviam.
Alugaram uma loja no Bairro de Alvalade para sede. Palma, Franco e Brandão ficaram fiadores. Seguiu-se uma campanha para angariar sócios o que foi um sucesso. A Academia de Xadrez de Luanda começou a funcionar no cacimbo de 1973, sendo uma instituição modelar, muito de vanguarda.
O primeiro grande torneio foi o campeonato de Luanda de 1973, disputado pela elite do xadrez angolano, oito jogadores de primeira categoria e oito candidatos à conquista da categoria. Seguiu-se em Outubro o campeonato de Angola, que o dinossauro Fernando Vasconcelos venceu.
Em 1974 já depois do 25 de Abril voltou-se a disputar o campeonato de Angola. Em 17 de Janeiro de 1975, Carlos Oliveira deu uma simultânea. Pouco depois a Academia mudou a sua sede para a rua Brito Godins, aqui jogou-se o Angola Livre e um campeonato de equipas entre angolanos, cubanos, soviéticos e cooperantes (leia-se portugueses).
Não houve coragem de assumir que era uma equipa portuguesa, complexo de colonização.
Com o tempo os portugueses e muitos angolanos foram fugindo para Portugal, mas a Academia conseguiu sempre ter gente. Agora mais naturais de Angola. Mantive-me como frequentador, assim como o Alberto Pereira de Castro, mas foi sem dúvida o José Brandão a grande alma dessa fase crítica.
Tenho de dizer que o património da Academia, em mobiliário, tabuleiros de qualidade, peças de madeira Staunton 6, relógios modernos, biblioteca com livros e revistas, incluindo a sua própria publicação, era um património de grande valor.
Um dia, após a independência, a Academia recebeu uma carta assinada pelo poeta António Jacinto ministro da educação e cultura, que dizia. Meus senhores o governo está muito satisfeito com o vosso trabalho, estamos disponíveis para ajudar em tudo o que precisarem.
Nesse tempo também visitaram a Academia vários heróis da luta de libertação, entre eles o Mendes de Carvalho. Contou-nos a sua estória no Tarrafal e a forma como jogavam xadrez para passar o tempo. As peças eram feitas de pão e o tabuleiro desenhado no chão.
Como disse noutro local, o rico património da Academia foi integrado na Federação Angolano de Xadrez.
A Academia de Xadrez de Luanda, foi um exemplo vivo daquilo que os homens podem fazer quando conseguem transformar o sonho em realidade. Djapam, 13/1/2014


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Cooperantes - O 25 de Abril de 1974

04 - O 25 de Abril de 1974
Mais um dia de labuta, na laboriosa colónia portuguesa da costa ocidental de África, ia começar. Estava muito calor no micro clima de Luanda, mas em breve vinha aí o cacimbo.
Um jovem casal de brancos, saía do prédio onde residiam na rua do Quicombo em São Paulo há cerca de quatro anos. Com eles vinha uma menina de três anos, bonita como um raio de sol. A elegante mas não sofisticada mulher dirigiu-se para a Paiva Couceiro, lá passaria a carrinha que a levaria ao seu local de trabalho para as bandas da Cuca. O homem entrou no carocha bege após sentar a menina em segurança no banco de trás. O carro com cerca de dez anos adquirido a prestações por trinta contos, dirigiu-se para a baixa da cidade mais concretamente para a rua Serpa Pinto.
Ainda não eram oito horas mas o sol já queimava nas costas dos transeuntes. A estação das chuvas ainda não terminara, embora em Luanda a água raramente caísse com regularidade, devido ao clima próprio da área urbana da capital. Por vezes uma forte bátega, que assim como chegava passava. Pouco depois da enxurrada tudo ficava seco, sem nenhum vestígio da chuva. Era assim na cidade, na estação das chuvas, mas com pouco água. A vinte quilómetros já chovia todos os dias.
 A cidade de Luanda, era e continua a ser uma zona sem água no seu subsolo. Segundo diz quem sabe, a ilha de Luanda tinha água mas salobra, por isso deve continuar a ter embora salobra seja na mesma. A norte, não muito longe a água já abundava e abunda. Na época desta saga, o precioso liquida vinha da barragem das Mabubas que era abastecida principalmente pelo rio Dande ou Dange. A barragem destruída em parte, por duas vezes, durante a guerra civil, foi reconstruída e posto a funcionar há pouco tempo. No Século XVII durante o seu domínio os holandeses mandaram construir um canal para levar a água do Kwanza até Luanda numa distância de aproximadamente 200 quilómetros. Penso que o canal nunca foi concluído e muito menos funcionou, porque os cabrões levaram para contar e zarparam. Contudo, através da selva e da savana, ainda se encontra vestígios do tal canal. 
Mas deixem-me voltar à minha narrativa.
O carro do povo, conhecido também por carocha, parou junto a um colégio creche, instalado numa vivenda colonial com amplo jardim. Nessa instituição ficaria a menina todo o dia até o pai voltar para a levar para casa. A Ana ficava contrariada e uma lágrima aparecia ao canto dos seus lindos olhos azuis. O pai amargurado partia após muitas recomendações às empregadas da creche.
O jovem técnico, director daquela empresa, cumprimentou os funcionários, para depois entrar no seu gabinete. Pediu um café à empregada da limpeza, por sinal uma branca das Beiras. Depois embrenhou-se nos projectos suspensos, que estavam espalhados pela secretária e estirador, esperando a sua apreciação. O homem deixara de fumar há cerca de seis meses, agora vingava-se no café para compensar os três maços de MC que deixara de consumir por dia.
Luanda, jóia da coroa do Império português. Eram agora oito horas e vinte minutos do dia 25 de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. A telefonista bateu na porta do gabinete de trabalho de Alberto de Castro.
- Senhor Castro, sua mulher na linha dois, atenda por favor.
- Olá querida que se passa? Está tudo bem?
- Alberto, acabei de saber que rebentou esta madrugada uma revolução em Lisboa, não se sabe é se é de direita ou esquerda.
- Não me digas…como soubeste? Aqui para a baixa ou no escritório ainda não transpirou nada. Não será boato?
- Não querido, soube através do Daniel Freire, que por sua vez soube da mulher Lina que como sabes trabalha para o governador. É mesmo verdade! Seja de esquerda ou de direita, tudo vai mudar… A menina ficou bem?
- Mais ou menos, como sempre de lágrima no olho, aquela menina não se adapta ao colégio.
- Com o tempo vai lá, não fiques preocupado. Então um beijo e tem juízo, à noite falamos. Não venhas tarde.
Castro poisou o telefone e ficou uns minutos apático. A emoção encheu a sua alma, mas logo inúmeras dúvidas se levantaram na sua mente: mente demasiado racional. Acabou de beber na calma o café que a empregada de limpeza lhe levara, de seguida levantou-se e entrou de rompante no gabinete do administrador.
- Barradas, vem aí borrasca! Há uma revolução em Portugal…
O administrador, empalideceu primeiro, depois ficou vermelho. Mal conseguia articular palavra, coisa normal nele quando se enervava ou excitava. A gaguejar ainda balbuciou.
- E agora Castro, é bom ou é mau?
- Para a metrópole ou para a colónia?
- Para Angola, estou-me borrifando para a gajada de lá.
Os dois responsáveis daquela empresa multinacional ficaram um tempo calados. Sem nada dizerem. Depois Castro encolheu os ombros e saiu em direcção à sua sala de trabalho porque tinha muito que fazer, o patrão ficou sentado a olhar para a parede branca do gabinete com o seu habitual ar apatetado.
Nesse dia, Alberto de Castro não foi almoçar a casa. Devido ao excesso de trabalho foi tomar uma refeição ligeira na Mutamba, tasca popular com bons petiscos. Casa que muitos amigos frequentavam, entre eles este escriba. Mas no fundo, o Alberto queria era saber mais novidades.
Por diversas fontes já todos sabíamos alguns pormenores da tal revolução. Lembro-me de uma pergunta que o José d’ Barcellos fez ao Alberto de Castro.
- E agora que achas que vai acontecer
- O que vai acontecer? Não sei, ninguém sabe. Mas sei que estamos todos fodidos, brancos, pretos e mulatos.
Cavaqueamos um pouco e depois fomos todos, cada um para o seu trabalho, cada um com o seu pensamento, cada um com sua preocupação. Era uma quinta-feira.
1/1/2014

Djapam