quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A menina da cheia

A cheia chegou e tudo cobriu, tudo não, as copas das árvores de maior porte ficaram à vista. As aldeias da região ribeirinha ficaram quase todas debaixo de água, os telhados não. Era sempre assim quando o rio transbordava devido ao excesso de água enviada pelo Deus lá de cima. Nunca ninguém descobriu se a chuva era programada ou era obra do acaso. Um ano havia cheia, depois um, dois, três, quatro não havia água em abastança. Também acontecia haver cheia anos seguidos e por vezes duas enchentes no mesmo ano. O manda chuva lá do alto tinha tudo mal programado, devia usar fraco computador. Ao contrário do que pensavam as pessoas do resto do país, na região das cheias todos gostavam delas. Os campos adubavam dando origem a boas colheitas. Por sua vez as reservas do precioso líquida eram repostas garantindo água para os anos de seca. Os homens descansavam, bebiam uns copos e jogavam sueca ou dominó. Por sua vez as mulheres, não indo para os campos tinham mais tempo para as tarefas domésticas e assim como para tagarelar e regatear na vida dos outros. A vasta miudagem das aldeias era quem mais adorava a vinda da cheia. Todo o dia mediam a evolução na subida ou descida da água, fazendo pequenas marcas. Estas eram feitas com pedras ou paus espetados. A sua atracção pela cheia preocupava os adultos, obrigando a uma alerta constante. As estórias através dos tempos relacionadas com a cheia são muitas. Aqui vou relatar as peripécias de uma menina que podia já não existir. A água parecia ter íman para ela. Começo por dizer que ela nasceu no auge de uma enorme cheia, daquelas que entram em algumas casas até ao telhado. Numa outra cheia não muito grande a menina brincava perto da sua porta. Aí a água teria dez a vinte centímetros, nada de muito perigoso. Para ela, sonhadora, tudo que passava na corrente era barquinhos que conduzia com uma varinha feita de cana fina. No entusiasmo da brincadeira a menina escorregou e caiu na água, ficando um pingo tão molhada estava. A mãe viu, pegou na cachopa deu-lhe um ralhete e mudou-lhe a vestimenta. A menina logo que a mãe entrou em casa voltou aos seus barquinhos. Pumba! Outra vez no charco. Foi a correr para casa chorando. Levou uma palmada da mãe e nova roupa lhe foi vestida. --Não voltas para a cheia, senão levas a sério. Embora a tentação fosse muita a miuda que não devia ter mais que três anos, lá resistiu com medo da tareia. Entretanto pediu à mãe para ir ter com outra menina que vivia numa zona sem cheia. Mas ao sair de casa tropeçou e caiu numa poça e toda molhada ficou. Aquilo parecia um íman para a menina. Mas desta vez estava inocente, não tinha ido brincar para a cheia. Sua mãe ficou mesmo muito irritada, não lhe bateu, não era pessoa disso. Vestiu-lhe desta vez a roupa de dormir e meteu a menina na cama e de lá não saiu mais nesse dia. Como se comprova há grande atracção das crianças pela cheia. Agora a estória que se segue é mais séria. Numa cheia muito maior, três anos depois esta mesma menina foi salva por milagre, vamos contar… A garota estava ao postigo da porta de entrada de sua casa, em pé em cima de uma cadeira. A cheia desse ano era das maiores que há memória. A água dava pelo meio da porta, impedindo a sua abertura, contando com o poial a profundidade devia ser de quase dois metros. A rua principal era um largo rio com correntes perigosas. A menina cantarolando, brincava com a sua varinha tentando tocar tudo o que passava na corrente junto ao postigo. Na cozinha a sua mãe ia tratando da vida. Numa tentativa de tocar um objecto que passava mais distante a miúda caiu na cheia. Ninguém viu por que a rua/rio estava deserta. Tudo estava preparado para uma morte certa. Por milagre a mãe não ouviu o cantarolar e veio a correr. Por milagre ainda conseguiu agarrar a vestido da filha. Mas a correnteza e a posição não permitia que conseguisse puxar a menina para cima e para dentro de casa. Gritou a mãe em pânico mas nenhum vizinho podia ajudar, todos encarcerados em casa. Deu-se terceiro milagre. Uma lancha apareceu ao longe, coisa rara de acontecer, era um homem que ia levar medicamentos a um doente. Rápido virou o barco e remando bravamente conseguiu chegar e ajudar a mãe desesperada. Por sorte ou milagre um rapaz vizinho que estudava medicina, encontrava-se em casa, veio a correr ou a nadar, prestou os primeiros socorros à menina. Esta recuperou os sentidos e voltou à vida. --Mãezinha, era tão bonito, descer e subir. Só pensava que à quarta vez já não subia mais conforme a avó disse há tempos. Yarb, 7/12/2012

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