segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O Viajante

Introdução.
No século XX, em especial na primeira metade, mas que ultrapassou o próprio 25 de Abril, muitas empresas tinham uma forma sugéneris de vender os seus produtos através da província. Enviavam vendedores que passavam a semana fora, por vezes duas e alguns andavam por lá um mês. Eram os chamados caixeiros-viajantes, mais vulgarmente só designados por viajantes. Eram muito importantes para o bom funcionamento comercial e industrial desses mundos desfasados dos grandes centros. Era vulgar ouvir-se nas pequenas cidades e vilas. - O viajante vem aí. - Quando o viajante chegar. - O viajante está ai. - O viajante trás esse produto. - O viajante resolve. Com a modernidade a necessidade de haver caixeiros-viajantes foi-se evaporando. Hoje só em situações especiais eles se justificam. Muitas empresas conservadoras levaram tempo a entender esta mudança de paradigma.
Esta é a estória dessa mudança e do drama dos homens que viveram na pele a situação.
José Bray

O Viajante
Etelvina lavava a loiça do jantar que por sinal era pouca, dois pratos, dois copos, uma pequena panela, alguns talheres, entre os quais uma concha. A janta como era hábito, tinha sido uma sopa, neste caso de legumes. Um pouco de queijo, maçã e no fim um chá para ajudar a dormir. Quase todas as hortaliças e fruta vieram da horta/pomar que ficava na traseira da pequena casa situada na periferia daquela cidade industrial. Tudo, Etelvina cultivava com carinho e por necessidade. Diga-se de passagem que também era um entretém para a monotonia e solidão da sua existência.
Etelvina continuava a arrumar a cozinha, tinha o corpo presente mas a alma estava ausente. O seu pensamento voava através dos tempos do passado. Recordava a sua meninice, menina pobre e triste, que sonhava em viajar e ser tratada com carinho. Viajando à velocidade da luz na sua mente trespassou toda a sua vida já vivida. Lá estava o seu grande amor, bonito, charmoso, cheio de lábia, capaz de vender areia no deserto e gelo nos pólos. Depois os filhos, dois, nascidos quase de seguida. Um bem instalado na vida, o outro não tanto. Ambos com companheiras, raparigas decentes e senhoras do seu nariz. Ainda bem que assim era, chega de tanta descriminação. Depois os três netos, duas raparigas e um rapaz. Com a viagem através memória a chegar ao presente, pensava no seu envelhecido companheiro, que tão ausente andava. O grande amor da sua vida e único. Namorado, marido, companheiro, amante: fora quem a tratara pela primeira com verdadeira meiguice numa entrega total a que ela sempre correspondera.
Adalberto Costa, diga-se de passagem, estava duplamente ausente. Ausente sim, desde segunda-feira de madrugada até ao almoço de sábado. Ausente em casa de tudo e todos. Só animava um pouco após a vitória do seu clube, misturada com alguns copos de vinho tinto.
Naquele preciso momento, em que a sua companheira arrumava a cozinha e desbobinava memórias, Adalberto com a cabeça entre as mãos e cotovelos apoiados na mesa redonda, pensava na frustração que era a sua actual vida profissional. No dia seguinte ao amanhecer sairia de casa para pôr o pé na estrada. O destino era uma pequena cidade, distanciada uma centena de quilómetros. Depois, durante toda a semana iria saltar de povoação em povoação. O seu transporte era uma velha carripana tão cansada como ele. Uma carrinha de caixa fechada, para levar as amostras dos produtos que ele comercializava há mais de trinta anos.
O Adalberto, Berto para a família e amigos, era um caixeiro-viajante, como era designado nos velhos tempos, os vendedores que andavam pela província e lá dormiam mais ou menos noites, dependendo do seu mercado.
Etelvina de Jesus olhou para o marido, sentiu pena do seu homem, embora ninguém tivesse pena dela, nem da sua vida monótona e trabalhosa. A mulher alta e escanzelada, há muito perdera a frescura dos anos. Nunca engordara, ou era dela ou dos problemas da vida. Criara praticamente sozinha, os três filhos e ajudara também as noras na criação dos netos. A comida também nunca fora muita, além disso ainda tirava à boca para dar aos seus. Em nova fora uma mulher bonita, que ainda criança se apaixonara e muito pelo seu Berto, que também era um belo homem, alegre e falador.
Meu Deus que lábia tinha… pensou Etelvina. No princípio do casamento tudo era um sonho, tudo era paraíso. Seu homem era um triunfador. Vendedor, ganhava bem a vida. Não era muito instruído, mas a sua simpatia e magnetismo compensava tudo.
Na primeira dezena de anos, o companheiro ainda não andava em viagem, mas com o tempo o patrão assim exigiu. A sua falta de instrução obrigou-o a aceitar essa imposição. Na altura não houve problemas, o homem ganhava bem. Adalberto tudo fazia para chegar a casa na sexta ao cair do dia, depois em três noites recuperavam as carícias ausentes. Por vezes, nesse tempo, ela ia com o companheiro na viagem. Eram semanas maravilhosas que ela recorda com saudade.
Depois…depois com o passar dos anos, chegaram os filhos e tudo foi mudando, menos a paixão pelo seu homem.
- Então Berto, que se passa? Vem deitar querido… não te esqueças que amanhã tens de levantar às seis.
Assim falou a mulher após terminar a arrumação da cozinha. Nesse dia, a família directa não viera almoçar conforme era costume ao domingo. Tinham ido para uma festa de anos. Embora convidados, o casal já a entrar no outono da vida, não quisera ir. Adalberto não estava para festas e ela como sempre esteve solidária com o seu homem. A nossa Etelvina estava muito preocupada com o seu marido. Sentia nele, um imenso desânimo e receava que ele desistisse.
Na verdade um drama estava a acontecer com o velho vendedor…ele muito orgulhoso não contava à companheira. Pensava: ela também nada pode resolver só iria ficar muito preocupada e a sofrer. Já chegava ele estar amargurado.
Há duas semanas, através da secretária da administração, o Adalberto Costa, tinha sido convocado para ir ao escritório central. Na segunda-feira antes de partir para a viagem tinha de estar presente para falar com o director de vendas. O chefe directo do nosso viajante, era um jovem recem formado, cheio de tecnologias modernas e muitas manias no seu cérebro imaturo. Faltava ao rapaz, a experiencia e a patine do tempo.
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Adalberto Costa à hora marcada lá estava à porta do vistoso e imponente gabinete. O homem maduro, com quarenta anos de luta no mercado das vendas, estava em alta tensão e com as tripas a darem voltas e mais voltas. Estava dominado pelo medo, cheio de ansiedade. Sabia que coisa boa não vinha aí.
Depois de esperar meia hora, atraso normal, até porque o doutor tinha isenção de horário, coisa que ensopava todas as faltas ao serviço. Por fim o nosso homem recebeu ordem para entrar no gabinete.
- Bom dia senhor doutor, cá estou… conforme sua convocatória.
Após o aperto de mão da praxe, forte do Adalberto, pastoso e mole do seu superior. Este com um falso sorriso. Falou… com falinhas mansas.
- Olá senhor Costa, bom dia, sente-se por favor. Esteja à vontade. Quer um café?
Ali estava: de um lado um homem maduro, experiente na vida, com mil batalhas travadas, com filhos e netos. Com expressão de derrotado e sem armas para se defender. Do outro lado, do alto do seu pedestal, estava um miúdo sem nenhuma estrada percorrida, nada sabendo da vida, com o curso tirado a custo e com muitos custos. Tinha um ar de vitorioso, sem nunca ter feito nada, a não ser ter ocupado aquele cargo por ser filho de um dos maiores accionistas daquela poderosa empresa.
Tanta simpatia não era presságio de nada de bom…assim pensou o nosso viajante, tentando manter dignidade na pose. Ele que no passado era um profissional confiante e sempre na crista da onda, sentia-se agora um derrotado. Fora um senhor nos tempos do velho patrão. Na verdade o fundador da empresa era muito seu amigo. Costa, tinha sido um dos obreiros do negócio, no seu inicio. O patrão sempre reconheceu isso e ficou agradecido. Essa amizade permitiu que todos respeitassem durante muitos anos o Costa. Mas esses tempos e esse estado de graça tinham passado há muito.
- Obrigado doutor mas parei com o café, agora só chá.
O crescimento da empresa, a falta de ambição do Costa, o não querer benesses e postos de comando, juntando o handicap de não ter estudado mais e mais. Tudo isso deu origem a uma ultrapassagem que se foi acentuando, dia após dia, ano após ano.
Um dia, o Costa acordou para a vida e chegou à conclusão que perdera o jogo. Era agora um insignificante dentro da imensa empresa. Nascera vendedor e queria morrer vendedor, estava no seu ADN, nada mais quis da vida. Só vender e amar a sua Etelvina.
- Faz bem, faz bem! Então senhor Costa como vai a vida? Vai mal, não é?
O jovem parou uns segundos e depois fazendo uma expressão séria no seu rosto imberbe e sem barba continuou.
- Costa, as suas vendas continuam a baixar. O seu volume está cada vez mais na zona vermelha. O senhor já não rende o suficiente para aquilo que custa à empresa. Não podemos continuar assim. Ou recupera ou teremos de resolver o problema.
O Costa apresentou os seus argumentos, mas o director nem o ouvia. O viajante era uma unidade a abater, o resto não contava. O Costa estava a mais!
- Em conclusão senhor Adalberto Costa, vou dar-lhe mais três ou quatro semanas. Se o volume de vendas não aumentar, apresentarei o caso à administração e eles que resolvam. Isto será assim porque a senhor tem um velho estatuto e merece alguma consideração. Bom dia e boa semana com muitas vendas.
O Costa ia novamente argumentar, mas o jovem director já estendera a mão direita para o cumprimentar e despedir e a esquerda para pegar no telefone e atender uma chamada, ou falsa chamada.
O condenado saiu do gabinete vergado ao peso do seu drama. A secretária olhou para ele e sentiu um aperto no coração. Ou na alma tanto faz. Conhecera o Costa ainda ele estava na flor da vida cheio de charme e dinâmica. Tinha sido quando entrara miúda na empresa e ele tinha sido um bom amigo.
Agora caros leitores, já conhecem o drama deste velho viajante, ao fim e ao cabo igual a milhares de outros nas gerações do passado.
Nessa madrugada Etelvina sentiu que algo andava no ar, nessa noite o casal amou como já não era muito habitual. Tinham sessenta anos e tudo se tornou um hábito, e depois até o hábito se foi. Amor havia sempre, mas nessa noite foi paixão, como quando eram novos. Adalberto empregou-se a fundo e Etelvina foi sempre igual a si, com em todos os momentos que o seu homem a procurava. Nessa noite, ambos pareciam ter voltado à juventude, a felicidade reflectia-se no rosto de ambos: na sua mente e no coração, a sua Etelvina estava bonita e feliz como fora no inicio…
Enquanto Adalberto tomava banho, a companheira preparou o mata-bicho, após dar uma vista de olhos à pequena mala, para conferir a roupa para a semana. Depois em silêncio comeram, mas sorriam um para o outro.
A despedida aconteceu à porta da pequena vivenda, o dia já clareava. Etelvina manteve-se no exterior até a carripana desaparecer lá longe no fundo da estrada visível: foi sempre dizendo adeus com as lágrimas a correrem pelas faces marcadas pela idade.
Há muitos anos, talvez vinte e cinco ou mais, o Adalberto Costa partia para aquelas viagens. Umas vezes para o sul, outras vezes para o interior a leste. Era preciso cobrir muitos clientes, visitar e convencer o mais possível. Leva-los a comprar os seus produtos. Depois no fim do dia, no hotel ou similar, enviar as encomendas para o escritório central, através do telex.
Com o passar dos tempos, cada ano era mais difícil atingir os objectivos. O nosso viajante bem sabia as razões, pelo menos grande partes dela. Na actualidade já não justificava andar um desgraçado pela província. Havia outras técnicas. Mas a sua administração era muito conservadora e insistia na metodologia do passado. Por sua vez os directores e chefes de venda não tinham força nem vontade para insistir na mudança. Depois ao acontecer quebras no volume de vendas a culpa era sempre dos vendedores.
Mas também havia pormenores que o Costa, não abrangia ou fingia não ver, enterrando a cabeça na areia.
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A tarde estava agradável, estávamos perto do Natal, contudo a temperatura continuava amena. Etelvina após o frugal almoço foi para a horta tratar de arrancar as ervas que competiam com os legumes que cresciam mais lentamente. Depois as ervas serviam para alimentar o pequeno bácoro e alguns coelhos que enchiam a coelheira. Estava a mulher concentrada na tarefa quando ouviu o portão do quintal ranger, de seguida soou uma voz conhecida.
- Posso entrar Etelvina?
- Entra mulher, não era preciso pedir licença. Bons olhos te vejam. Então que te trás por estas bandas?
- Como tu nunca apareces, decidi vir até cá. Nem na igreja te vejo…
- Tens razão, mas sabes que sou pouco de igreja. Também não me convém sair, não gosto de deixar a casa sozinha e normalmente tenho cá netos. Por sinal hoje não.
Enquanto Etelvina ensacava a erva, a amiga foi observando a horta. Ela bem não se importava de também de ter uma, mas não podia ser, vivia num andar, além disso era mais dada à costura.
Rosa dos Santos era uma mulher pequena e roliça, da mesma idade da Etelvina, eram amigas de infância. Casara com João Emanuel companheiro de vendas do Adalberto. Foi através da amiga que ela conhecera o marido. Tudo normal para uma pequena cidade.
- Rosa, vamos entrar, vou fazer chá e umas torradas. Preferes cidreira ou camomila, ou queres antes chá preto.
- Não te incomodes mulher. Faz o te der mais jeito, até pode ser café e o pão pode ser normal.
- Então vou fazer cidreira que é melhor para o sistema nervoso.
Depois das torradas feitas e da água a ferver deitada no bule onde estavam duas saquetas de cidreira, as mulheres sentaram-se à volta da mesa redonda da cozinha. As tardes eram curtas por isso rápido uma penumbra invadiu a divisão, mas ninguém acedeu a luz.
- Agora Rosa diz-me o que cá te trouxe? Não dás ponto sem nó, já te conheço há mais de cinquenta anos.
A Etelvina, achou estranha aquela súbita visita da amiga, que até costumava telefonar, ou convidá-la para ir até ao centro da cidade. A Rosa era vivida e manhosa, mas a mulher do Adalberto era mais inteligente.
- Tens razão, precisava de falar contigo, o assunto é melindroso, mas tinhas de ser informada.
- Credo! Já estou em pânico. É alguma coisa com os meus filhos ou netos?
- Não mulher, não é com eles mas é com o teu homem e com o meu…
O coração da Etelvina começou aos pulos. Sentiu desmoronar-se o seu frágil mundo….ficou muda na expectativa.
- Calma amiga, não é morte de homem, nem nada que se pareça. Mas com calma vou pôr-te ao corrente. Mas por amor de Deus, acalma Etelvina, minha amiga.
Rosa acalmando a amiga bebeu mais uma chávena de cidreira e forçou a outra a beber também.
- Então é assim… de um tempo a esta parte, notei que o João não andava bem, macambúzio e rezinga, coisa pouco habitual nele: que é um deixa andar. Apertei com o meu homem, só consegui que dissesse que eram coisas do trabalho e que não me preocupasse. Ao dizer-me isto ainda me deixou mais com a pulga atrás da orelha. Como sabes, o João gosta de andar na viagem, não é por gostar de vender, ao contrário do teu. O meu quer é rédea solta…
- Então e depois, descobriste alguma coisa? O que tem o meu homem a ver com isso?
Já era noite fechada, as mulheres continuavam a conversar às escuras na mesa redonda da cozinha.
- Espera, já lá vamos. Pensei com os meus botões. Não me vais comer por parva. Montei-me nas minhas tamanquinhas e fui espiolhar lá na empresa. Cheguei à pessoa certa e fui informada.
- És uma mulher do diabo! Conta lá então a desgraça.
- Parece que as vendas na província andam más. Devido a isso os dois viajantes, o meu homem e o teu marido, foram chamados ao director e levaram um apertão. Melhor: uma ameaça…
- Que ameaça?
- Ou vendem mais ou vão para a rua. Como não têm idade para a reforma têm de ir para o fundo de desemprego, ganhando uma ninharia durante um tempo e depois esperar pela idade da reforma.
- Mas eles têm tantos anos de empresa, então o meu nem se fala. Não é justo, depois de uma vida a dar carne, a pele e os ossos, sacrificando mulher e filhos, para não falar nos netos. Merda, é mesmo uma vergonha, uma sacanagem. Isso vai dar cabo do Adalberto. Pobre marido, para o fim vem tudo de mau.
- Não desanimes amiga, vamos lutar ao lado deles. Afinal o prejuízo não é muito grande, eles ficarão mais tempo em casa. O problema do meu João, não é igual ao do teu homem. O meu fica com a corda curta, coisa que ele não quer.
- Também não será tanto assim, o João gostará de estar mais tempo contigo. Agora para o Adalberto é uma questão de orgulho, ele que se considerava um dos pilares da firma.
- Amiga, não ponhas as mãos no lume pelo meu homem, tenho a certeza que há muito tem uma amásia, lá longe. Em qualquer dos casos, vamos esperar o próximo fim-de-semana, para pôr isto a limpo e lutar com eles para encontrar uma solução.
- Sim Rosa, és uma mulher valente. Vamos aguardar sim. Obrigado por teres vindo ter comigo!
As duas amigas que se conheciam desde a época da escola primária, ficaram mais um tempo sentadas no escuro, o que impedia cada uma de ver as lágrimas da outra.
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A carripana seguia pela estrada estreita a caminho do sul. Adalberto Costa não reparava na bonita paisagem que circundava o seu caminho. Aquela estrada já tinha sido percorrida por ele centenas de vezes, ora para lá ora para cá. Ia concentrado nos seus problemas, por isso nem dava por nada, conduzia por automatismo. Pensava chegar à pequena cidade pouco depois das nove. Não iria sequer ao minúsculo hotel onde costumava ficar, deixaria para o fim da tarde. Sentia uma solidão muito doentia, gostava de ter junto a si a Etelvina mulher da sua vida e única, embora ela não acreditasse nisso. Ainda a estava ver menina à esquina da rua onde moravam esperando por ele. Já tinham passado quase cinquenta anos, mas as imagens estão firmes na sua biblioteca da memória. Contudo neste momento, a razão do desejado apoio era a sua situação actual, o drama que estava vivendo. O seu amigo João, viajante como ele, também estava na mesma situação. Mas esse estava-se borrifando, era um bom vivant, queria putas e vinho verde. A Rosa tinha muita paciência para o marido, mas não sabia da missa a metade.
Finalmente chegou ao seu destino, lá ficaria um dia, dormiria no hotel e no dia seguinte partia para outra cidade. Na verdade uma vila, embora um pouco maior que a povoação onde chegara. Nunca entendera bem a diferença que caracterizava a cidade da vila. Agora iam começar as visitas da praxe.
Na primeira visita, o cliente não comprou porque argumentou que o produto era muito caro, embora reconhecesse a qualidade. Para o que a sua fábrica produzia não justificava tanta qualidade.
Na segunda visita, o cliente comprou só um pouquinho, porque teve uma urgência de matéria-prima e um concorrente foi-lhe entregar no mesmo dia. O senhor Artur, cliente de muitos anos ainda declarou. – Senhor Costa. A sua empresa é muito demorada nas entregas.
Na terceira visita, o cliente desabafou. – Amigo Costa, um concorrente fez um saldo e eu aproveitei.
Na quarta visita, o cliente afirmou. – Gosto muito de trabalhar consigo Costa, mas precisei de um maior prazo no pagamento e a sua direcção não aprovou o meu pedido. Vou encomendar-lhe alguma coisa mas é por amizade.
Na quinta visita, o cliente quis encomendar tudo mais alguma coisa. O Costa desconfiou, foi saber informações e descobriu que o homem estava falido. Era por isso uma golpada.
As visitas continuaram, muitos casos poderiam aqui ser relatados, mas para quê torturar mais o viajante (leitor) que me acompanha nesta leitura.
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 A semana estava a chegar ao fim, era quinta-feira, hora de jantar. Costa desta vez pensava regressar mais cedo, queria estar em casa à hora da refeição da noite na sexta-feira. A Etelvina todos dias telefonava a dar-lhe carinho, havia algo no ar: como se ela soubesse o que se estava a passar.
Estava a ser uma semana muita má para as vendas. Os clientes, alguns com dezenas de anos arranjavam todas as desculpas para não comprar. Algumas encomendavam alguma coisa só por amizade. O velho viajante, cada vez estava mais deprimido. Não queria reconhecer de maneira nenhuma a sua derrota. Não podia ser…que se passava?
Se não fosse a sua companheira, os filhos e os netos, dava cabo dele. Jantara num pequeno restaurante, bom e muito barato. Nesse dia e contra o costume bebeu muito, o que só aumentou o seu estado emocional. Depois da janta decidiu fazer uma longa caminhada, dando uma volta até fora da povoação. Quando regressasse à pensão telefonaria à sua companheira.
Adalberto Costa cambaleando, andou, andou, andou. A noite foi avançando e com ela a chuva também veio. Primeiro de mansinho, depois mais brava. O nosso homem não ligou, não estava frio e os vapores do álcool tudo aqueciam, ele parecia nem reparar. Estava apático!
Ao regressar à vila parou sobre a ponte. Sob a dita a água era mais que muita, fortes enxurradas faziam chegar a água ao nível da estrada.
O nosso viajante num transe que não controlava encostou-se à guarda da ponte e começou a ser atraído para a forte corrente. Parecia tudo incontrolável e sem recuo possível. Foi então que ouviu uma voz forte que mais parecia um trovão.
- Então Adalberto Costa, que vais fazer? És louco ou estás muito bêbedo. Se calhar é tudo misturado. Reage homem!
O nosso homem voltou a endireitar-se e tentou ver quem falava. Não era fácil, estava escuro e a chuva fazia uma barreira à vista. Nos extremos da ponte, uma luz mortiça marcava a presença da dita. Com esforço Adalberto começou a visionar um vulto, era um velho conhecido que já não via há muito. Um bom amigo do tempo da guerra.
- Que fazes aqui Carlos? Há tanto tempo que não te via, estás na mesma. Porra que coincidência. Dá cá um abraço que bem preciso.
- Também estou feliz por te encontrar. Que se passa contigo? Porque ias cair ao rio? És parvo ou quê…
- Já me sinto melhor só com tua presença. Vamos até ao bar que fica na curva da estrada, está aberto até de madrugada. Vou contar-te a meu actual drama.
Os homens lá foram até ao bar, que estava vazio devido à chuva que não parava de cair. Os dois pareciam não ligar nenhuma às roupas molhadas.
Adalberto Costa, foi contando a sua estória e mostrando os seus sentimentos em relação ao problema. Não escondeu nada de nada. Também nada tinha para esconder.
O Carlos tudo ouviu na calma, nada bebendo a não ser água. Ao contrário do viajante que continuou a encharcar a vela. A visita surpresa, foi fazendo uma ou outra pergunta, parecia alguém muito entendido naquilo que conversavam.
- Agora diz-me Carlos que hei-de fazer? Ajuda-me!
- Nada de especial velho amigo. Vive a vida com os teus. Brinca muito com teus netos, ajuda teus filhos e faz amor com a tua mulher sempre que tiverem desejo e força para isso.
- Mas então e o meu problema como vendedor derrotado?
- Adalberto Costa, não há nenhum problema. Tudo isso é uma tempestade num copo de água. Tu não vendes, não é por culpa tua. Os produtos são demasiado bons para as necessidades do mercado. Tua empresa está errada, é demasiado conservadora. Não faz concessões no prazo de pagamento. Não faz saldos como mandam as regras. Entrega tarde os produtos. Usa pouca dinâmica. Além disso, os viajantes deixaram de ter razão de ser. Na sede através de uma dinâmica comercial o mercado pode ser acompanhado. Há muito que vocês viajantes deviam ter regressado à base. Eu digo-te mais, se eles complicarem, exige pagamento do tempo que estiveste fora de casa. Garanto que em tribunal levam um estoiro.
Um raio de luz e de felicidade iluminou a expressão do nosso viajante.
- Garantes que isso é mesmo assim?!
- Garanto sim e cá estarei para te ajudar. Amanhã logo de manhã partes para casa. Já irás almoçar com a tua fantástica companheira que um dia vou querer conhecer. Depois marcas uma reunião, mas com a administração, não aceites intermediários, vai logo a Deus, deixa os santos de fora. Com calma expões tudo o que acabei de dizer e mais aquilo que tu aches vantajoso e não tenhas lembrado ao falares comigo. Durante o fim-de-semana toma apontamentos e chama o teu amigo João para a luta.
- Obrigado meu amigo, vou ficar eternamente grato. Agora fala-me de ti.
- Costa, eternamente é muito tempo, não penses mais nisso. Trata da tua vida. Agora vou levar-te à tua Pensão, estás nas últimas.
Saíram para a estrada, a chuva parara, os dois amigos abraçados desapareceram na negrura da noite.
Na manhã dessa sexta-feira, o dia nascera limpo e tudo parecia mais brilhante e bonito. Adalberto acordou bem-disposto, tudo indiciava que o vinho da véspera não tinha molestado o seu organismo. Aos poucos foi-se lembrando de tudo. Cada vez estava mais feliz. Ia fazer tudo conforme o amigo Carlos lhe tinha transmitido e ensinado. Claro que aquilo tinha sido um sonho, um bom sonho, nunca podia ser real. Desceu para tomar o pequeno-almoço e pagar a noite lá dormida. Ao passar na recepção o rapaz de serviço, chamou.
- Senhor Costa, um senhor deixou este dossier para si, para lhe entregar quando descesse.
- Obrigado Manuel, dê cá.
Admirado, o nosso Costa abriu a encomenda. Era uma pasta azul, com tudo o que fora conversado no bar da curva da estrada. À margem estava escrito o plano de acção que o viajante devia encetar com a sua empresa. Um cartão acompanhava o dossier. Força meu amigo. Um abraço do teu camarada Carlos.
Nesse momento Adalberto Costa caiu na real. Tudo aquilo era um milagre. O seu amigo Carlos, seu camarada na tropa, tinha morrido na campanha do Rovuma durante a Grande Guerra.
Cantando canções nostálgicas, regressou a casa para a batalha final. Como ia ficar feliz a sua Etelvina. Agora a paisagem era sublime e ele sentia-se um homem novo. De vez em vez uma lágrima espreitava nos seus olhos já cansados.
FIM
Comeira, 12 de Novembro de 2014

José Bray

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Cooperantes - Coluna, um trabalhador campeão!

09 - Coluna, um trabalhador campeão!
Um dia numa tertúlia de amigos, discutia-se a capacidade de trabalho do branco e do negro. Cada um tinha a sua opinião. Algumas bem reaccionárias. Mas outras não. Enquanto íamos bebendo uns finos e deglutindo uns carapaus fritos, cada um esgrimia os seus argumentos. Foi então que o Brandão com a sua verbosidade de quem sabe o de diz, quis contar uma parábola real. Com isso ele desmistificou toda a conversa da treta da rapaziada. Dizia ele...melhor…com sua autorização vou reproduzir um texto da lavra de José d’ Barcellos feito a seu pedido.
Hoje recordei um homem com H grande, um campeão, um famoso capitão de seu nome Coluna. Comandava os companheiros com seu exemplo, respeitando e sendo respeitado. Vós sabeis de quem falo? Vós conhecestes essa personagem? Quase todos dirão que sim: o Mário Coluna capitão do Benfica europeu. Dirão, dirão! Lamento, mas foram tiros na água. Não é esse, é outro de quem ninguém se lembrará, sou talvez a excepção.
Coluna não era o seu nome, mas sim a alcunha. Nunca soube qual a analogia com o seu chará? Eram os dois negros, um de Angola outro de Moçambique, mas só por isso não justificava o plágio do nome. O meu colaborador, era alto, ossudo, carrancudo, podia-se dizer que era um ser sem beleza física, mas grande beleza de carácter, cumpridor, responsável, sem conflitos: embora sempre com uma expressão carregada. Não era instruído, nem rico, nem bonito, mas era um ser fabuloso. Como o outro Coluna, um grande campeão e um grande capitão.
O meu amigo Coluna, homem na casa dos quarenta, era montador de prateleiras, chefe de equipa. Como todos os operários era mal pago, fosse na metrópole, fosse na colónia: mas para preto era pior. Sem prémios de rendimento, sem subsídios de alimentação ou deslocação. Tudo ao contrário do que acontecia na empresa na metrópole. Coluna sem ser bajulador, era sóbrio e confiável. Todos eram explorados mas o meu amigo era mais, porque distinguia-se como trabalhador e recebia o mesmo.
Uma das minhas utopias era mudar o cenário dessa situação. Após conflitos com a administração consegui levar a água ao meu moinho. Por várias vezes a minha cabeça esteve no cepo, mas consegui que a utopia passasse a ser realidade. Os salários melhoraram, e o subsídio de alimentação e deslocação começou a ser uma prática na empresa em Luanda. Só não consegui o prémio de rendimento. Mais tarde consegui dar a volta ao patronato, leiam o resto da narrativa. Voltemos ao Coluna.
O Coluna tinha uma característica de marca, começava a trabalhar à hora certa, não mais parava até à hora de fechar o expediente e por vezes continuava. Era impressionante vê-lo montar as estantes. Um chefe de equipa no Puto montava 40 prateleiras por dia, ele de sua alcunha Coluna, montava 120 prateleiras por dia. Era fantástico! Pergunto, era justo ganhar o mesmo que os outros? Claro que não! Passou a ser recompensado, ele foi a prova viva que os vencimentos não podem ser em tabela horizontal, idiotice que apareceu com o 25 de Abril.
O Coluna era dos poucos negros que não metia vales durante o mês, nunca se embriagava. Tiro-lhe o meu chapéu, era um grande senhor!
Após o 25 de Abril e antes da independência, o meu amigo Coluna esteve envolvido no acidente em que o Freitas perdeu a vida. Ficou muito mal tratado mas sobreviveu. Quando abandonei Angola deixei-lhe parte do meu dinheiro e roupas!
Ao recordar este negro que honra o seu país, acabo com um desabafo tanta vez por mim repetido em relação a outros. Não ter tido a humildade de ter conhecido melhor este homem!
José d’ Barcellos, 14 de Novembro de 2011
Perante este texto do nosso amigo, que mais poderemos dizer. Havia grandes trabalhadores em Angola, brancos ou negros, como os há em Portugal. Assim como se passa o mesmo com os calões duma cor ou de outra, de um país ou de outro. Djapam, 20/1/2014.


segunda-feira, 6 de abril de 2015

Cooperantes - As filas

08 - As filas
Nessas noites de Luanda, quando não havia recolher obrigatória, a cena repetia-se, eram as filas para obtenção de algum alimento.
Por todo a cidade asfaltada a cena era a mesma, durante o dia filas que nunca tinham fim, melhor, tinham fim quando o produto em causa esgotava. Era um vazio total numa cidade sem comida mas inundada de famintos. Famintos tivessem eles ou não dinheiro, estávamos todos no zero absoluto.
Essas tristes e desalentadas filas prolongava-se pela noite, por vezes até de madrugada, se a noticia fosse. – Vai haver produto! - Era o pão, era a carne, era as batatas, era o arroz, feijão, massa e tudo o resto. Os do poder e do partido sempre tinham comida assim como os convidados do governo, em especial gente do leste. Os cubanos também tinham nos quartéis. Mas para o povo angolano néspias. Os cooperantes portugueses estavam inseridos no mesmo patamar das gentes pobres e desprezadas de Angola.
As famosas filas eram noventa e nove por cento de pretos, alguns mulatos e dois ou três brancos, normalmente mulheres em busca de um pouco de comida para ela, marido e filhos. Era isso que acontecia com a senhora Castro, enquanto o seu homem trabalhava fazendo o possível por ajudar Angola. Passava os dias nas filas, também chamadas de bichas. Ela andava durante o dia de fila em fila, muitos dias regressava a casa a chorar de mãos vazias. Durante a noite, era o Castro e amigos que iam para as filas.
Vou contar algumas cenas sobre essas famosas filas.
Como já foi dito ou irá ser dito, a mulher do Castro andou por essas filas durante a gestação da filha que nasceu em Junho de 1976, concebida na Angola colonial e nascida na Angola independente. Por aqui se pode perceber o drama e coragem dessa mulher que não quis deixar sozinho em Luanda o utópico companheiro.
Como todos devem entender, será escusado dizer que naquelas filas o branco estava sempre fodido, ou seja tinha de bater a bola baixinha.
Os negros marcavam o lugar com pedrinhas, assim era incontrolável o número de gente que apareciam a mais. Só o controlo de outros negros impediam maior exagero neste ardil do povo, e que fosse quase impossível chegar à frente. Branco caladinho ou então tinha de usar muita diplomacia, era uma grande merda. Coitados dos cooperantes portugueses, que tanto davam sem compensação.
Para os cooperantes não havia ainda canais alternativos como se impunha, para quem estava a produzir para uma nação que não é a sua. Por vezes eles conseguiam algumas alternativas, mas sobre isso falaremos quando vier as comidas à baila, agora era só para falar de filas, ou bichas.
Agora falemos então das filas…
Há uma estória que tem de ser contada para sermos honestos.
Um dia houve uma distribuição de arroz, a senhora Castro chegou ao local, a fila transbordava e ainda havia as célebres pedras. Ela com uma barriga enorme não conseguiu conter as lágrimas. Preparava-se para se afastar, foi então que aconteceu…
Umas negras que estavam nos primeiros lugares da fila, exigiram que ela viesse para a frente da fila, dizendo ao mesmo tempo para aquelas que reclamavam.
- A camarada com essa barriga não pode ir para o fim da bicha, venha para aqui. As camaradas calem-se senão levam no focinho…
Este foi o acto mais sublime de que tive conhecimento no que respeita a estas filas de sofrimento em busca do nada.
Na noite de Natal de 1975, os Castros e amigos incluindo a minha pessoa, foi passada à porta de um talho. Sei pela senhora Castro que quando chegou a sua vez o talhante vendeu-lhe o melhor que tinha. O dia 25 foi por isso mais festejado, fomos todos ao quinto andar da rua 5 de Outubro conviver.
Os produtos eram normalmente de má qualidade, muitos eram de países que os enviavam para os miseráveis. Eram contudo desviados e vendidos nos circuitos mafiosos.
Um dia houve uma distribuição de frangos vindos da Holanda. A senhora Castro lá conseguiu um com as dificuldades do costume, a preço de ouro. O filho da puta do frango era rijo como cornos, nunca conseguiu ser cozido devido ser tão duro e velho. Esquisito, não é? Um frango duro e velho!
Os produtos faltavam meses seguidos, por exemplo, batatas não houve por vezes em períodos de dois e três meses. O pão que se conseguia, no dia seguinte estava cheio de bolor.
Como os leitores podem compreender, a vida era uma maravilha para os cooperantes portugueses, por isso também para o casal Castro. Djapam, 7/1/2014


domingo, 5 de abril de 2015

Cooperantes - A Morte do Freitas

07 - A Morte do Freitas
O país estava sem rei nem roque, três exércitos com armas e outro sem armas e rendido, todos convivendo no meio das suas contradições, numa cidade que crescia em população e diminuía em infra-estruturas, tudo isto gerido por um governo misto sem preparação, tudo marinheiros de primeira viagem.
Estava a chegar o tempo de tudo se desmoronar, muitos ainda tinham esperança, mas era fácil de ver que aquilo não ia dar em nada. Ou melhor, ia dar uma grande confusão e quem se ia lixar era o mexilhão, branco, preto ou mulato. Mas esta escrita é para falar de um drama passado nessa época.
Era o tempo em que ainda havia utopias, por isso os idealistas tentavam fazer alguma coisa. Era necessário abrir uma Escola na cidade de Carmona (Uíge), a minha Empresa ganhou o concurso. Preparou-se os materiais e planificou-se a execução, tudo sob a minha gestão. Pensei, despacha-se os materiais e mais tarde uma equipa de montadores chefiado pelo Freitas, vão executar a obra em dois ou três dias, deslocando-se numa carrinha própria para o efeito. Tudo muito simples.
Havia dois percursos para chegar a Carmona, por Salazar (Dalatando) cerca de seiscentos quilómetros, caminho seguro durante a guerra colonial, ou um percurso curto cento e cinquenta quilómetros mas muito perigoso direito ao Caxito: durante a luta armada só era possível ir em coluna militar. Mas agora com o fim das hostilidades (uma treta) a via estava aberta.
Quando foram informados da montagem, o pessoal pensou logo em fazer uma excursão até Carmona, não era trabalhar era passear, o Freitas chefe dos montadores, o Cunha motorista da nossa camioneta, vieram falar comigo para terem autorização. Com uma dose de bom senso e sendo responsável, não autorizei, explicando as razões que eram muitas. Trabalho é trabalho conhaque é conhaque.
Nessa altura estava na Filial um gerente que era uma porcaria de homem e gostava muito de ser engraxado. Os meninos, nas minhas costas foram pedir autorização ao dito superior que acabou por interferir numa área que não devia. A autorização foi concedida.
Numa dada madrugada, camioneta cheia, Cunha a conduzir, Freitas ao lado, em cima da carga, o Coluna mais os seus ajudantes, à saída da cidade no Cacuaco deram boleia a mais três pretos e lá foram cantando e rindo.
Os brancos na cabine rindo com as anedotas que contavam à vez, o Cunha fumando a sua cigarrilha com o cotovelo apoiado na janela aberta, o Freitas falando de gajas e do ódio que tinha à mulher, da admiração que tinha pelo pai e do grande amor ao filho de oito anos.
Em Luanda, entretanto uma discussão entre mim e o gerente tinha lugar, tratei o homem abaixo de cão, ele ameaçando fazer queixa à administração. - Faça, faça que eu assino por baixo.
Entretanto a viatura de carga continuava a sua viagem através da floresta virgem, por estradas sinuosas com bruscas inclinações. A carga era perigosa, volumosa mas leve, exigindo condução cuidada. O pessoal ia cantando e bebendo, em certo momento o drama deu-se…
Numa curva surpresa o Cunha não conseguiu controlar a Toyota Dina e lá foram pela ribanceira. Não foram longe devido às árvores. Mas os estragos foram muitos. Alguns pretos morreram, outros, ninguém mais os viu, o Coluna ficou muito mal tratado o Cunha nem tanto, mas o pior foi o Freitas, ficou entalado entre a porta e uma árvore com diagnóstico reservado.
Após o almoço tive conhecimento do grave acidente. Uma viatura do desarmado exército português trouxe os feridos para uma Clínica privada da capital, para lá me dirigi de imediato e lá passei muitas horas. O Cunha foi tratado e teve logo alta, o Coluna com fracturas múltiplas tinha para muitos meses mas não corria perigo de vida, o pior era o Freitas, tinha a coluna partida e estava paraplégico da cintura para baixo. O pai e o filho estavam na Clínica, o sofrimento deles era tão intenso que não consigo descrever.
Fazia tudo para os animar mas não conseguia, também não sabia como. A clínica estava como o país, sem rei nem roque, por isso a assistência não tinha qualidade, muito preto ignorante nos serviços, tratando outros pretos ainda mais atrasados.
Ao fim do dia, quando saí da clínica ia muito preocupado com aquilo que se passaria durante a noite. Ainda hoje pergunto a mim mesmo, qual a verdade dessa noite?
No dia seguinte quando cheguei o Freitas tinha falecido. Foi um choque embora já o esperasse, mas num futuro próximo. Pensei logo no menino e no pai, mas a criança era a minha principal preocupação. Agora tinha de cumprir a ingrata missão de dar a triste noticia. Informar um pai e um filho numa situação como esta, não o desejo a ninguém.
Lá cumpri a missão com grande emoção, a imagem de sofrimento dos dois nunca mais saiu da minha mente. Então o rosto, a expressão de tristeza daquela criança que adorava o seu pai, ficou para sempre colada a mim. O leitor deve imaginar a minha revolta por terem estupidamente alterado uma ordem minha. 
José d’ Barcellos – 3/08/2010 – Este é um drama verdadeiro, vivido em Angola após o 25 de Abril de 1974. 
Esta estória é muito dramática! Porque razão, uns tantos portugueses insistiram em ficar em Angola, num país sem rei nem roque como diz José d’ Barcellos, um herdeiro da coroa que lá ficou por utopia. O nosso amigo também regressou desiludido com tudo e todos. Todos não! Nunca o desiludiram o José Brandão, o Alberto de Castro, e eu também, o que me deixa muito feliz.
Um dia, muito mais tarde recebi uma carta do José d’ Barcellos.
Meu bom Djapam,
Espero que estejas bem assim como a tua preta e a tua criançada. Cá por mim, continuo com a esperança que esta gente um dia pense que é mais lógico uma monarquia que a porcaria de uma república pseudo democrática.
Mas não é para falar da porcaria do regímen que te escrevo. O motivo é outro, infelizmente é com muita tristeza que o faço.
Lembras-te do nosso amigo Freitas meu subordinado aí em Angola? Claro que sim, é impossível esquecer. Bolas para aquilo tudo, ainda hoje me faz sofrer.
A família do Freitas regressou a Portugal após a sua morte. O pai nunca mais reagiu e acabou por desaparecer em coma alcoólica, a mãe acabou numa cama do manicómio. Mas é do filho que quero falar. Criado ao Deus dará, rápido se meteu na droga. Há poucos dias através do nosso comum amigo Laurindo soube que deixou este mundo através de uma mortal overdose.
Escrevo-te porque precisava de desabafar. Não consigo tirar da minha mente a expressão daquele menino de oito anos que adorava o pai, quando lhe disse que o seu mais que tudo morrera. Djapam, foi das coisas mais difíceis que fiz na vida.
Obrigado meu amigo, e desculpa.
Um abraço do tamanho de Angola.
José d’ Barcellos

Meu querido amigo, fizeste bem em desabafar comigo. Por favor fá-lo sempre! Djapam, 20/1/2014

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Cooperantes - Academia de Xadrez de Luanda

05 - Academia de Xadrez de Luanda
Na minha mais que modesta opinião, considero que é importante dedicar um capítulo à Academia de Xadrez de Luanda, independentemente de falarmos nela noutros textos de os “Cooperantes”. Porque esta instituição foi um exemplo para se compreender o espírito empreendedor dos homens que passaram pelo espaço angolano.
A Academia, nasceu devido há necessidade de haver um espaço próprio para se jogar xadrez, mas ainda mais. Para se poder promover, ensinar, estudar e praticar este jogo sagrado que é arte, ciência, desporto, filosofia e até para alguns uma religião.
Não sou grande jogador, antes pelo contrário. O Alberto de Castro também não é muito entendido. Mas tanto ele como eu, acompanhamos o trajecto da fundação dessa instituição Desde o nascimento da ideia até à acoplação da Academia à Federação Angolana de Xadrez. Contudo só falarei da Academia de Xadrez de Luanda referente ao período a que estes textos abrangem e se referem, ou seja até aos fins de 1977, tempo, em que os meus personagens regressaram a Portugal.
Alberto Pereira de Castro, também girou pelo xadrez luandense, como eu, e como eu também era um jogador medíocre, com paixão pela arte de Caissa.
A Academia de Xadrez de Luanda, nasceu com esta designação por força dos argumentos do José Brandão. Estava previsto uma outra nomenclatura: clube, grupo, núcleo, etc. A ideia era ser um clube de xadrez de Luanda e nada mais que funcionar na panorâmica dessa modalidade. Pelo menos era essa ideia do seu mentor inicial João Palma, secundado e apoiado pelo senhor Franco oculista. Este cavalheiro era assim conhecido porque fazia parte da famosa organização oftalmológica. Pessoa de prestígio, muito distinta: colocava a excelência à frente de tudo.
Os xadrezistas de Luanda praticavam o seu desporto por cafés e suas esplanadas, competindo oficialmente por diversos clubes. Recordo por exemplo torneios realizados, na Casa de Tras-os-Montes, Antigos Estudantes de Coimbra, Nuno Álvares, Clube dos Caçadores, Clube da JAEA, etc. Os jogadores queixavam-se da falta de um espaço próprio. Recordo os desabafos de Carlos Oliveira, grande revelação do xadrez de Angola em 1971/2. Dizia ele.
- Se houvesse um gajo rico que nos desse ou empresta-se um espaço: era muito bom.
Temos de referenciar que Carlos Oliveira era muito pobre, de uma família com muitas carências, não só de bens materiais mas também de carinho. Era um pobre de Cristo. Ainda por demais, meio cego de uma vista e coxeando devido a defeito numa das pernas. Mas era um talento para o xadrez, no tabuleiro era senhor parecendo flutuar acima de todos nós. Foi campeão de Angola em 1974, o ultimo da era colonialista. Embora angolano branco, amante do seu país não resistiu à pressão, fugiu, embarcando dias antes do dia 11 de Novembro de 1975. Em Portugal teve uma vida miserável, sendo explorado até ao tutano. Muito depois conseguiu um lugar na Câmara de Lisboa através da cunha de um engenheiro, conhecido jogador de xadrez, um velhote que teve pena do infeliz.
Recordo perfeitamente o que lhe disse José Brandão, após ter ouvido por diversas vezes o queixume do triste Carlos Oliveira.
- Carlos, se queres bolota trepa, se queres ter alguma coisa tens de lutar por ela, não estejas à espera da sorte grande, unam-se e façam alguma coisa. Ter sorte dá muito trabalho!
Quem criou essa união foi o João Palma, figura grande do xadrez de Luanda, o seu amigo pessoal o senhor Franco, apoiou a sugestão. Palma falou com o Brandão que alinhou na ideia. Este por sua vez recrutou Daniel Freire que funcionou com escriturário e serviu de moço dos recados.
Mas na verdade, o João Palma e o José Brandão, foram os elementos fundamentais para o projecto avançar. Sem o Palma não teria havido Academia, e sem o Brandão a instituição nunca teria a designação de Academia. Parece um paradoxo, não é? Mas não é mesmo! Foi o Brandão que propôs uma filosofia especial para a colectividade a criar. Dizia ele.
- Se vamos criar algo, então vamos fazê-lo em grande. Proponho que se chame Academia de Xadrez de Luanda, assim atingem-se vários objectivos.
Por sua vez Palma contrapunha…
- Mas Brandão, não será um nome demasiado pomposo? Depois vão dizer que somos uns pretensiosos.
- Não concordo contigo Palma. Uma Academia é um local onde se concentram os melhores em determinada área do saber. O local onde se aprende e ensina. Onde irão jogar e aparecer no futuro os melhores jogadores de Luanda? Será numa Academia se ela existir. Principalmente se ela não tiver equipa própria na competição e seja uma “Casa do saber”.
Claro que o meu amigo esgrimiu mais uns tantos argumentos impossíveis de serem rebatidos.
Com isto José Brandão levou a água ao seu moinho, convencendo toda a gente envolvida. Mais tarde foi este elemento a criar o emblema da Academia e a fornecer todo o mobiliário para a sede. Palma redigiu os estatutos, diga-se de passagem que estes são dos mais evoluídos que se possa imaginar. Os detractores e os amigos da onça, que os leiam para descobrirem como certos portugueses tratavam as relações com a terra onde viviam.
Alugaram uma loja no Bairro de Alvalade para sede. Palma, Franco e Brandão ficaram fiadores. Seguiu-se uma campanha para angariar sócios o que foi um sucesso. A Academia de Xadrez de Luanda começou a funcionar no cacimbo de 1973, sendo uma instituição modelar, muito de vanguarda.
O primeiro grande torneio foi o campeonato de Luanda de 1973, disputado pela elite do xadrez angolano, oito jogadores de primeira categoria e oito candidatos à conquista da categoria. Seguiu-se em Outubro o campeonato de Angola, que o dinossauro Fernando Vasconcelos venceu.
Em 1974 já depois do 25 de Abril voltou-se a disputar o campeonato de Angola. Em 17 de Janeiro de 1975, Carlos Oliveira deu uma simultânea. Pouco depois a Academia mudou a sua sede para a rua Brito Godins, aqui jogou-se o Angola Livre e um campeonato de equipas entre angolanos, cubanos, soviéticos e cooperantes (leia-se portugueses).
Não houve coragem de assumir que era uma equipa portuguesa, complexo de colonização.
Com o tempo os portugueses e muitos angolanos foram fugindo para Portugal, mas a Academia conseguiu sempre ter gente. Agora mais naturais de Angola. Mantive-me como frequentador, assim como o Alberto Pereira de Castro, mas foi sem dúvida o José Brandão a grande alma dessa fase crítica.
Tenho de dizer que o património da Academia, em mobiliário, tabuleiros de qualidade, peças de madeira Staunton 6, relógios modernos, biblioteca com livros e revistas, incluindo a sua própria publicação, era um património de grande valor.
Um dia, após a independência, a Academia recebeu uma carta assinada pelo poeta António Jacinto ministro da educação e cultura, que dizia. Meus senhores o governo está muito satisfeito com o vosso trabalho, estamos disponíveis para ajudar em tudo o que precisarem.
Nesse tempo também visitaram a Academia vários heróis da luta de libertação, entre eles o Mendes de Carvalho. Contou-nos a sua estória no Tarrafal e a forma como jogavam xadrez para passar o tempo. As peças eram feitas de pão e o tabuleiro desenhado no chão.
Como disse noutro local, o rico património da Academia foi integrado na Federação Angolano de Xadrez.
A Academia de Xadrez de Luanda, foi um exemplo vivo daquilo que os homens podem fazer quando conseguem transformar o sonho em realidade. Djapam, 13/1/2014


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Cooperantes - O 25 de Abril de 1974

04 - O 25 de Abril de 1974
Mais um dia de labuta, na laboriosa colónia portuguesa da costa ocidental de África, ia começar. Estava muito calor no micro clima de Luanda, mas em breve vinha aí o cacimbo.
Um jovem casal de brancos, saía do prédio onde residiam na rua do Quicombo em São Paulo há cerca de quatro anos. Com eles vinha uma menina de três anos, bonita como um raio de sol. A elegante mas não sofisticada mulher dirigiu-se para a Paiva Couceiro, lá passaria a carrinha que a levaria ao seu local de trabalho para as bandas da Cuca. O homem entrou no carocha bege após sentar a menina em segurança no banco de trás. O carro com cerca de dez anos adquirido a prestações por trinta contos, dirigiu-se para a baixa da cidade mais concretamente para a rua Serpa Pinto.
Ainda não eram oito horas mas o sol já queimava nas costas dos transeuntes. A estação das chuvas ainda não terminara, embora em Luanda a água raramente caísse com regularidade, devido ao clima próprio da área urbana da capital. Por vezes uma forte bátega, que assim como chegava passava. Pouco depois da enxurrada tudo ficava seco, sem nenhum vestígio da chuva. Era assim na cidade, na estação das chuvas, mas com pouco água. A vinte quilómetros já chovia todos os dias.
 A cidade de Luanda, era e continua a ser uma zona sem água no seu subsolo. Segundo diz quem sabe, a ilha de Luanda tinha água mas salobra, por isso deve continuar a ter embora salobra seja na mesma. A norte, não muito longe a água já abundava e abunda. Na época desta saga, o precioso liquida vinha da barragem das Mabubas que era abastecida principalmente pelo rio Dande ou Dange. A barragem destruída em parte, por duas vezes, durante a guerra civil, foi reconstruída e posto a funcionar há pouco tempo. No Século XVII durante o seu domínio os holandeses mandaram construir um canal para levar a água do Kwanza até Luanda numa distância de aproximadamente 200 quilómetros. Penso que o canal nunca foi concluído e muito menos funcionou, porque os cabrões levaram para contar e zarparam. Contudo, através da selva e da savana, ainda se encontra vestígios do tal canal. 
Mas deixem-me voltar à minha narrativa.
O carro do povo, conhecido também por carocha, parou junto a um colégio creche, instalado numa vivenda colonial com amplo jardim. Nessa instituição ficaria a menina todo o dia até o pai voltar para a levar para casa. A Ana ficava contrariada e uma lágrima aparecia ao canto dos seus lindos olhos azuis. O pai amargurado partia após muitas recomendações às empregadas da creche.
O jovem técnico, director daquela empresa, cumprimentou os funcionários, para depois entrar no seu gabinete. Pediu um café à empregada da limpeza, por sinal uma branca das Beiras. Depois embrenhou-se nos projectos suspensos, que estavam espalhados pela secretária e estirador, esperando a sua apreciação. O homem deixara de fumar há cerca de seis meses, agora vingava-se no café para compensar os três maços de MC que deixara de consumir por dia.
Luanda, jóia da coroa do Império português. Eram agora oito horas e vinte minutos do dia 25 de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. A telefonista bateu na porta do gabinete de trabalho de Alberto de Castro.
- Senhor Castro, sua mulher na linha dois, atenda por favor.
- Olá querida que se passa? Está tudo bem?
- Alberto, acabei de saber que rebentou esta madrugada uma revolução em Lisboa, não se sabe é se é de direita ou esquerda.
- Não me digas…como soubeste? Aqui para a baixa ou no escritório ainda não transpirou nada. Não será boato?
- Não querido, soube através do Daniel Freire, que por sua vez soube da mulher Lina que como sabes trabalha para o governador. É mesmo verdade! Seja de esquerda ou de direita, tudo vai mudar… A menina ficou bem?
- Mais ou menos, como sempre de lágrima no olho, aquela menina não se adapta ao colégio.
- Com o tempo vai lá, não fiques preocupado. Então um beijo e tem juízo, à noite falamos. Não venhas tarde.
Castro poisou o telefone e ficou uns minutos apático. A emoção encheu a sua alma, mas logo inúmeras dúvidas se levantaram na sua mente: mente demasiado racional. Acabou de beber na calma o café que a empregada de limpeza lhe levara, de seguida levantou-se e entrou de rompante no gabinete do administrador.
- Barradas, vem aí borrasca! Há uma revolução em Portugal…
O administrador, empalideceu primeiro, depois ficou vermelho. Mal conseguia articular palavra, coisa normal nele quando se enervava ou excitava. A gaguejar ainda balbuciou.
- E agora Castro, é bom ou é mau?
- Para a metrópole ou para a colónia?
- Para Angola, estou-me borrifando para a gajada de lá.
Os dois responsáveis daquela empresa multinacional ficaram um tempo calados. Sem nada dizerem. Depois Castro encolheu os ombros e saiu em direcção à sua sala de trabalho porque tinha muito que fazer, o patrão ficou sentado a olhar para a parede branca do gabinete com o seu habitual ar apatetado.
Nesse dia, Alberto de Castro não foi almoçar a casa. Devido ao excesso de trabalho foi tomar uma refeição ligeira na Mutamba, tasca popular com bons petiscos. Casa que muitos amigos frequentavam, entre eles este escriba. Mas no fundo, o Alberto queria era saber mais novidades.
Por diversas fontes já todos sabíamos alguns pormenores da tal revolução. Lembro-me de uma pergunta que o José d’ Barcellos fez ao Alberto de Castro.
- E agora que achas que vai acontecer
- O que vai acontecer? Não sei, ninguém sabe. Mas sei que estamos todos fodidos, brancos, pretos e mulatos.
Cavaqueamos um pouco e depois fomos todos, cada um para o seu trabalho, cada um com o seu pensamento, cada um com sua preocupação. Era uma quinta-feira.
1/1/2014

Djapam

terça-feira, 31 de março de 2015

Cooperantes - Djapam

02 – Djapam
Quem é Djapam? Sou eu, o escriba desta estória intitulada de “Cooperantes”. Filho de um preto e de uma branca. É verdade, sou um mulato, mas com muito orgulho em o ser.
Meu pai, que era um velho sábio, repetia muitas vezes uma frase que me viu crescer: dizia ele.
“Os pretos nunca serão livres enquanto não gostarem de ser pretos, os mulatos têm de entender que há mais do que branco e preto na natureza e os brancos só serão gente quando forem enegrecidos pela vida”.
Era o raciocínio de um filósofo empírico, grande senhor da floresta, dos rios e do capim.
Tenho honra em ser mulato. Realmente no mundo há as cores do arco-íris e também todas as misturas possíveis. Meu pai tinha razão…que descanse em paz. As suas cinzas há muito foram lançadas nas águas do rio Cuanza.
Esta narrativa fala de um tempo que vai de Abril de 74 até fins de 77, durante todo esse espaço de mil e trezentos dias, mais dia, menos dia, vivi com a minha preta numa vivenda da Vila Clotilde, espaço que meus pais compraram com o sacrifício de uma vida. Hoje passados cerca de quarenta anos, já velho, ainda lá vivemos. Nesta casa, nosso paraíso, nasceu toda a minha filharada.
A minha residência a que chamo casa encantada, tem uma estória no passado que merece ser contada se para tanto me der o engenho e a arte. Foi uma transcrição oral do meu amigo José Brandão, que conheceu os residentes e ao saber da coincidência da minha morada, fez o favor de relatar o passado do residente anterior que ele conhecia bem. Isto aconteceu no dia em que partiu para Portugal numa viagem sem retorno. Inclusive, deixou-me um manuscrito com o texto.
Sinto que nasci para a escrita, saí à minha mãe que era professora muita virada para as letras. O meu pai era sábio mas a minha mãe sábia era, além disso tinha sido muito enegrecida pela vida. Hoje dedico-me a pregar a palavra de Cristo, opção tomada exactamente no fim da saga que descrevo.
Há muito que desejava escrever este livro, mas ainda não tinha tido coragem. Foram tempos épicos da história do meu país. Foram tempos de muito amor, amizade e solidariedade, devido às óbvias e excessivas dificuldades. Finalmente este ano, já no décimo quarto do século XXI, senti um apelo a essa escrita. Não por nós que a vivemos, mas como herança aos nossos filhos, netos e por aí afora.
O relato, que faço nos “Cooperantes”, tem a intenção de dar a conhecer algo daquela época, Que coisas que se faziam, que tipo de gente era aquela que por cá andava. Como actuavam aqueles que, primeiro eram terroristas, depois libertadores, mais tarde políticos e por fim poder, ou seja governo. Talvez no fundo não fossem nada disso, mas sim aprendizes de tudo um pouco.
Heróis foram aquelas gentes anónimas, pretos, mulatos, brancos e de mais cores, que ajudaram a ser o que hoje somos, tanto portugueses como angolanos ou de outras nacionalidades. Gostaria que se fizesse alguma luz e justiça também.
As pequenas estórias relatadas nos “Cooperantes”, interligam-se e têm sempre uma moral e uma informação, não estão só por estar. Tudo é verdadeiro, excepto algumas magias. Alguns personagens estão debaixo de pseudónimos, outras são mesmo de ficção. Assim acontece com as empresas e os produtos fabricados.
Os anos passaram e muitos já partiram, um dia nenhum de nós estará por cá, mas andarão os descendentes, e os “Cooperantes”, será uma obra de homenagem aos seus antepassados, intérpretes de uma saga muito especial, o nascer de Angola como nação, considerada por muitos a terra prometida.

Vamos ao trabalho… 9/1/2014
Djapam