sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Rosas brancas

Conto de Natal 2015
Rosas brancas
Estávamos no Natal de um certo ano do século vinte e um, era já a década de vinte, talvez vinte e oito ou vinte e nove. Para a nossa estória tanto faz.
Um rapaz bonito, de muito bom aspecto, foi visitar uma senhora, de idade, ao Lar para idosos situado na base do Montejunto.
Ali estavam internadas, umas largas de dezenas, de mulheres de todas as idades. Algumas, um pouco, doentes da mente. As patologias eram as mais diversas.
O rapaz levava com ele um ramo de rosas brancas, rosas de grande pureza que nem espinhos tinham.
No jardim florido, mas agora pouco, o sol aquecia o corpo engelhado daquela bonita idosa. Para as arcadas, dona Sara fora levada, a seu pedido, após a refeição do almoço.
Sentada num confortável cadeirão com rodas, Sara não desviava a vista do portão de entrada do Lar Clínica, que distanciava cinquenta metros do edifício principal.
O seu maior desejo e esperança era, que o seu namorado aparecesse ao fundo, na esquina da rua, com o seu passo gingão e ar irónico de menino presunçoso. Mas era tão bonito, tão bonito…
Tinha muitas saudades do seu grande amor João Simão.
Estávamos na época natalícia, o tempo estava frio, mas o céu límpido num azul fascinante, dava à paisagem um toque de grande beleza. A montanha no seu jogo de verdes e pedregulhos, dava um toque de grandeza ao cenário.
Entre as onze da manhã e as quatro da tarde, o sol aquecia o espaço junto às arcadas do edifício, daquele Lar Clínica, de luxo, para senhoras com problemas da mente e não só.
Sara, era uma dessas doentes. Uma idosa sedutora, no seu sorriso bonito. Não era agressiva, mas sim doente das doenças que a velhice trás com ela. Nada de grave havia na sua postura ou comportamento. Sempre doce no seu falar e simpatia para todos.
Sonhava a dormir e sonhava acordada. As viagens ao passado eram constantes e cada vez ia mais longe. A memória recente estava sempre a apagar-se.
Era um pouco louca, mas uma loucura boa. Era essa a opinião do pessoal da clínica.
Estava ali internada, porque a família não tinha condições humanas para tomarem conta dela em casa.
Toda a vida fora super dinâmica, não parava, mas os oitenta e cinco anos deitaram-na abaixo. Ainda queria andar de rabo alçado (como dizia o seu Simão), mas não podia. Os ossos não aguentavam!
Temos de concordar que a velhota estava bem, naquela excelente instituição.
- Dona Sara, não quer recolher ao salão? Em breve vai arrefecer…
- Não minha querida. Quero ver entrar o meu João Simão.
Esta era a principal cisma de Sara, esperar pelo seu amor. Infelizmente ele nunca chegava e o pessoal até duvidava que ele fosse vivo, ou tivesse existido.
- Faz-se tarde dona Sara, hoje o seu amigo não deve vir. Talvez amanhã.
A empregada sabia que ele não viria, pois nunca aparecera. Se calhar até nunca existira, excepto na cabeça dela.
- Não! Ele vem! Olha, lá vem ele. Como vê estava certa. Vem amor…
Na verdade, um jovem entrara no espaço da clínica, encaminhando-se para o edifício. Trazia com ele um braçado de rosas brancas.
Era um rapaz bonito e simpático, visita habitual da idosa, Era o seu neto Francisco. Adorava a avó e regularmente estava no Lar para visitar Sara.
O jovem, sabia bem das confusões da avó. Tão depressa, pensava que era o seu amado Simão, como mais tarde reconhecia o neto. Por isso ele era muito cuidadoso no trato com a velhota. Pensou: “onde estará hoje o pensamento da minha avó?”
Ao ver o rapaz perto de si, um largo sorriso apareceu no enrugado rosto, ainda com laivos de beleza que o sorrir fazia realçar.
- Olá Simão! Vieste ver a tua velhota?
O rapaz não se desmanchou, de nada valia se o fizesse, era mehor deixá-la na ilusão. Era feliz assim… contudo, sempre que podia atalhava a conversa.
Sara, continuou.
- Meu querido, tens de ter cuidado ao visitar a tua menina. Os meus pais não estão longe. Se aparecerem, dizes que és meu colega no conservatório.
- Mas avó, eu não ando na música e os pais da senhora já morreram há muito.
- Disparate João, não brinques comigo. Talvez isso seja daqui a setenta anos. Vem dar-me um beijo às escondidas.
O rapaz deu dois beijos à avó, mas foi dizendo.
- Avó, avó, que se passa? Sou seu neto.
A velhota não desarmava, estava na sua ilusão. Ela tinha catorze anos e o neto era o seu amor dessa época o João Simão.
Uma enfermeira fez sinal para ele não ligar, nem desmentir.
Francisco beijou mais uma vez a avó e entregou-lhe as rosas brancas.
- Gosto muito de rosas brancas. Tu nunca esqueces isso João. Senta-te aqui ao pé de mim. Daqui pouco vamos até à borda de água, ver os patos e andarmos de barco. Agora vou descansar um pouco. Não te vás embora.
O rapaz não sabia que dizer mas anuiu com a cabeça, ao mesmo tempo que acariciava o rosto da sua querida avó.
Minutos depois, a velhota dormia e o seu bonito rosto parecia estar em paz.
A enfermeira, ajudada por Francisco, levou o cadeirão com Sara para o salão da instituição. Pelo caminho esclarecia o rapaz que aqueles lapsos eram efeitos da doença. Cada vez, dona Sara estava mais no passado e menos no presente.
Francisco no salão, sentado junto à avó, recordava que há muitos anos conhecera Simão. Era já velhote e sua avó também, mas bem mais nova que agora. Almoçara com eles, teria na altura uns oito anos e mais tarde jantaram também, mas já com onze ou doze. Era um homem simpático, ele e a avó faziam um bonito par. Mas pouco mais sabia dessa estória.
Passados quarenta e cinco minutos, Sara acordou e ficou muito contente por ver o neto. Voltara ao presente.
- Estás aí Francisco? Dá cá um grande beijo, muitos! Como estão lá por casa?
- Sim avó. Está tudo bem, temos saudades suas. Venho dizer que na noite de Natal vimos cá todos. Quer pedir alguma coisa de especial?
- Não querido, a vossa presença é o suficiente. Gostaria de ter cá um velho amigo, mas nada sei dele, se calhar nem é vivo. Vou dar-te dinheiro e tu ficas encarregue de comprar prendas para todos. Inclusive para ti.
- Sim avó, eu trato disso. Tenho pena de não saber do seu amigo, eu compreendo.
- Tenho sim Francisco, muitas saudades, mas deixa lá, um dia destes parto e pode ser que o encontre. Agora vai para casa que se faz tarde e começa a estar muito frio. Cuidado com a viagem!
O rapaz partiu e a senhora foi tomar os medicamentos e beber um pouco de chá de cidreira.
Dias depois…
Na noite de Natal desse ano nevou no Oeste. A família apareceu toda no Lar. Não eram muitos mas era o que ela tinha.
Comeram, beberam, trocaram prendas, riram-se muito. Falaram de familiares e amigos, uns vivos outros que já tinham partido. Foram recordações, umas tristes outras felizes.
Em dado momento, Sara ainda desabafou.
- O João Simão não apareceu…
Todos fingiram não ouvir. Após o bater da meia-noite, foram as despedidas com muitos beijos. Todos estavam felizes com os presentes!
- Tenham cuidado no regresso a Lisboa. Obrigada por tudo!
Após a saída dos familiares, Sara foi lavar os dentes. Olhou-se ao espelho e sorriu para si, dizendo em voz alta.
– Ai João, João, meu safadinho!
Depois deitou-se na confortável cama daquele Lar do Montejunto. Queria recordar, recordar, recordar. Podia ser a sonhar ou acordada.
As horas passaram, a neve continuava a cair, toda a serra estava coberta com intenso manto branco.
Ainda não clareara, quando Sara ouviu bater na vidraça das portas que davam para a varanda. Assustada foi ver o que se passava. Do lado de fora estava um velho vestido de pai Natal, mas não era vermelho mas sim verde como o São Nicolau.
Ele insistiu no bater e ela abriu…
Era o seu João Simão!
- Que fazes aqui mascarado de pai Natal. Estarei a sonhar, meu Deus.
- Não estás a sonhar minha querida, sou eu, sim! Trabalho na Lapónia como pai Natal. Acabei agora as entregas, vou regressar.
Sara, não sabia como reagir, sentia-se leve com se fosse a menina de catorze anos. Estava tão feliz, mas não entendia nada. Abraçaram-se…
- E agora meu querido?
- Agora? Agora vais comigo, tenho ali o trenó e agasalho para ti. Vamos!
E foram! Pouco depois o trenó sobrevoava a montanha mágica na direcção do pólo norte…
No lar, na manhã seguinte, devido à demora a empregada entrou no quarto da dona Sara. Estava lá o corpo, com uma expressão de felicidade. A alma partira para a Lapónia com a alma do João Simão.
FIM
7/1/2016
Este conto de Natal é dedicado a uma pessoa especial, com a maior gratidão, respeito, ternura e amizade!
ZM




segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Joaninha Lua

O drama da joaninha Lua
Era uma vez uma jovem joaninha que tinha muita vaidade nas suas seis pintas negras que forravam o exterior do seu vestido vermelho.
Aquela joaninha bonita, mas algo supérflua, chamava-se Lua e era a perdição dos insectos macho, daquele florido pomar. Grilos, besouros, gafanhotos e outros mais invulgares, perdiam a cabeça ou seja o tacto, devido à paixão que ela inspirava neles, nos machos conquistadores daquele paraíso.
Naquele dia de primavera a nossa adolescente foi passear através de uma romãzeira que floria em pleno. Após saborear o pequeno-almoço composto por ofídios, pequenos piolhos malignos, a nossa joaninha decidiu bater uma sorna debaixo das frescas folhas da romãzeira.
Lua não dormiu muito tempo. Entretanto, sonhou que namorava com um belo zangão que andava a inquietar o seu volátil coração. Acordou ao som de uma monótona melodia executada por uma cantora muito irresponsável, a cigarra dona Escura. Em voz alta Lua exclamou. – Esta senhora também não sabe outra música, até incomoda o mais paciente.
Nesse meio tempo perscrutou a paisagem para tentar descobrir a cantora, mas só viu uma formiga que atarefada fazia pela vida, o inverno chegaria um dia e devia ser rigoroso. Era preciso encher a dispensa e depressa, para a família não passar fome nesse período de invernia.
- Já andas na labuta formiga Obreira? Tu exageras, tens também de viver a vida, diverte-te rapariga.
- Pensas que tenho as tuas bonomias? Comer, passear e namorar. Alimentas-te de vermes e insectos viventes, terás sempre comida nos teus cento e oitenta dias de vida, mas eu sou vegetariana, por isso tenho que fazer reservas para o inverno.
Apressada a formiga afastou-se com o seu pesado fardo de comida, mas antes ainda exclamou.
- Que se passa contigo Lua? Estás hoje diferente mas não sei dizer o quê.
Após fazer esta afirmação continuou na sua azáfama à qual se juntou uma sua irmã.
- Que se passará comigo? Assim pensou a nossa joaninha, não sentia dores nem estava mal disposta.
Entretanto uma abelha, a Maia, esvoaçava de flor em flor para encher a seu depósito de pólen.
- Bom dia Lua. Que se passa contigo? Hoje estás diferente, não estás tão bonita como de costume.
Dito isto Maia afastou-se. Lua começou a ficar preocupada. – Que se passa meu Deus dos insectos? Pensou ela em silêncio.
Entretanto, mais alguns amigos e amigas passaram por ela e todos disseram o mesmo.
- Estás diferente, mas não sabemos em quê, nem o porquê.
Claro que nem a joaninha sabia, mas não estava a gostar nada da situação. Lua então decidiu ir ver-se no primeiro espelho que encontrasse, coisa que não foi difícil. Na parte inferior da romãzeira gotas de orvalho eram às dezenas. Chegou perto de uma por sinal bem grande e límpida. Olhou para a sua imagem com muita atenção, logo viu o que se passava. Não tinha no vestido vermelho as seis pintas negras, alguém durante o seu dormir as roubara.
- Meu Deus dos insectos, estou perdida, sem as minhas pintas negras pareço um tomate maduro.
A jovem joaninha chorou a bom chorar, lágrimas das verdadeiras. Foi para casa, queria desabafar com a sua mãe. No caminho encontrou a lagarta Verde, a quem contou o seu drama. Esta deu-lhe então uma útil informação.
- Sabes Lua, quem eu vi junto a ti enquanto dormias? Foi o grilo Cantante.
-Então foi esse malandro, anda sempre a fazer marotices, vou já à procura dele. Obrigada lagarta Verde.
Se assim o disse mais depressa o fez. Após procurar durante três horas, horas em que todos continuaram a dizer que Lua estava diferente, mas não sabiam porquê. Mas agora ela replicava. – Foi culpa do malandro do grilo Cantante, roubou-me as minhas seis pintas negras. Entretanto acabou por encontrar o reguila do grilo Cantante, o terror das mães com meninas adolescentes.
- Olá linda joaninha, hoje não está tão bonita como de costume. Que te aconteceu?
- Não gozes, tu bem sabes, meu malandro. Porque roubaste as minhas seis pintas negras?
- Eu? Eu não roubei nada, não levantes falsos testemunhos. Só estive a admirar-te enquanto dormias.
- Mentiroso! És sempre o mesmo, não posso confiar em ti, nem eu nem ninguém.
Realmente Lua tinha uma paixão assolapada pelo belo grilo, este correspondia mas não gostava do excesso de vaidade da joaninha.
- Nunca acreditas em mim, paciência.
- Claro que não acredito, não quero mais nada contigo. Enquanto não me devolveres as minhas seis pintas negras, não mais te falarei.
- Mas eu gosto de ti mesmo sem pintas!
- Não me interessa. Sem pintas não haverá mais nada entre nós, deixa-me.
- És uma joaninha vaidosa, para ti só a beleza conta, passa bem quando quiseres procura-me.
Lua partiu para casa a voar e a chorar. O seu conflito era imenso, um drama entre o amor e a vaidade. Ao chegar foi para o regaço da mãe joaninha.
- Mãe, o grilo Cantante é um malandro, roubou as minhas seis pintas negras, não o quero ver mais.
- Tens a certeza que foi ele? Por vezes há equívocos.
- Ele bem negou, mas eu não acredito na palavra dele, viram-no perto de mim enquanto dormia.
- Filha, espero que não te venhas a arrepender,
O tempo passou e o grilo sempre a negar. Mas também não abria o jogo, queria ver até que ponto a Lua preferia a beleza ao amor.
Passaram-se uns dias, Lua não perdoou mesmo.
Numa certa tarde começou a cair uma chuva miudinha, mais tipo cacimbo forte. A nossa joaninha voava, acabando por se molhar completamente. Abrigou-se debaixo de uma enorme folha de figueira, ao lado noutra folha formara-se um lago que reflectia as imagens. Lua foi mirar-se no espelho do lago e qual não é o seu espanto as pintas estavam novamente no seu vestido.
Afinal, o grilo Cantante não roubara as seis pintas negras, só as pintara de vermelho com o sangue do seu corpo. Fizera isso para dar uma lição à joaninha vaidosa.
Esta exclamou chorando.
- Que raio de porcaria eu fiz? Estraguei tudo, valha-me Deus dos insectos.
Nessa altura já o grilo Cantante namorava a formiga Obreira e não mais quis saber da joaninha Lua.
Lisboa, 21 de Julho de 2013

José Bray
Nota: Este conto infantil, foi escrito parte às oito horas da manhã na Flor do Império e a outra parte no Jardim Constantino ao meio-dia. Nesse dia, mergulhado na minha solidão senti que alguém tinha roubado a minha cidade. Sensação estranha!