quinta-feira, 27 de maio de 2021

 

11ª Crónica

Virgindade

O conceito da virgindade era algo sagrado no vetusto Estado Novo e dos códigos infames da igreja católica, inimiga das mulheres.

A rapariga tinha de ir virgem para o casamento e a perca da virgindade fora do casamento uma indignidade, uma vergonha, uma desonra.

Tempos de profunda estupidez que o regime de Salazar e Cerejeira fomentava.

Contudo não protegia a mulher nem as crianças. Mas defendia a existência do hímen, criando estigmas e sanções a quem o rompia e desonra a quem deixasse, isto fora do casamento.

Hoje olhamos para esses tempos e temos vontade de rir. Actualmente qualquer moça se o desejar começa a sua vida sexual logo após a puberdade.

O problema que ainda subsiste é o risco da gravidez. Hoje só é ignorante quem quer. A informação é abundante e generalizada e todas os casais se podem proteger.

Nesta minha crónica coloco de fora a violação e a pedofilia. Temáticas dramáticas a analisar noutra escrita.

Agora conto uma pequena estória:

Faz hoje cinquenta e nove anos que um meu amigo casou por ter tido relações sexuais com a namorada deixando a rapariga de ser virgem.

A moça tinha ficado grávida. Foi um desgosto e um drama para a mãe dela. Exigiu uma reparação que tinha de ser pelo casamento.

O meu amigo de pronto assumiu!

Sinceramente compreendo o sofrimento da senhora… Tinha sonhos para a filha que assim não se iriam realizar.

Estamos a falar de dois miúdos que fizeram amor por mútuo consentimento. Ninguém forçou ninguém.

O meu amigo nunca pensou pôr-se de fora e casou mesmo com amoça ao atingir os dezoito anos e a mocinha dezassete.

É evidente que ele se quisesse nunca seria obrigado a casar, pois eram duas crianças quando se deu o coito completo. Ele tinha dezasseis anos, ela tinha quinze. Não esquecer que a maioridade era aos vinte e um.

Ainda outro factor importante na minha opinião. Ele tirou a virgindade à menina, mas ela também tirou a virgindade ao menino.

Ou seja: eles eram os dois virgens!

Mas ainda havia outro factor, mas esse do foro criminal. A mãe da menina forçou-a a abortar. Um crime que não podia ser opção da megera.

Com uma queixa iria presa sem remissão!

Forçou o aborto e obrigou ao casamento. Duplo crime.

Seis meses depois o casal separou-se e novamente a mãe da rapariga teve influência.

Uma megera que não foi amiga da filha!

Sei que esta estória marcou muito o meu amigo que nunca complicou o processo mas ainda era uma criança para assumir. A menina também ficou marcada e através da vida a demência aparecia nas suas depressões.

Por essa razão e por ser muito amigo do rapaz, recordo sempre este dia vinte e sete de Maio.

JB- 27/5/2021

 

 

 

 

 

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Textos do dia 24/9/2013


Textos do dia 24/9/2013
Esta noite dormi, mas levantei-me cedo. Não tomei banho, fiz meu tratamento a água. Lavei os doentes, bebi dois copos de água morna e deixei passar meia hora e então bebi um copo de soja.
Depois deu-me desejo de escrever e de rajada saíram estes textos que se seguem. Não é o seu valor estético ou de conteúdo é a gana de escrever custe o que custar.

Discurso Patético
Amigos,
No absurdo da incongruência da apatia humana escravizada no fim do espaço sideral que a sonolência da espiritualidade irracional e concreta e abstracta do cosmos na intolerância da velocidade sentimental da raridade dos ingredientes substratos da servidão humana da inutilidade universalmente acossada pela paridade do encantamento irracional e subjectivo decorrente e obsceno do nascimento e da morte da felicidade perdida nos caos da profundidade da alma congénita que flutua deslizando nas partículas da insolvência da apatia humana no fim do buraco negro e absoluto em que as cintilantes estrelas na obscuridade do ser e densidade negra do planisfério hexagonal da seriedade estática da dinâmica da humanidade. Tenho dito!
Zé Patético, 24/9/2013

Rotina do absurdo
Que tortura sem ferida
Que esmaga sem moer
Tempo que desliza sem rodar
Cruel realidade que esgota
Rotina que absorve
O ar, a água e a luz
Que apaga o dia chegando a noite
Sol que vai na terra que gira
Lua que está
Nem sempre estando
Rotina que absorve
O corpo e a alma
Buraco negro, tudo aspira
Na rotina do ser!
24/9/2013

Poema da incongruência
Do humano sentimento
Partida antes da chegada
Sentimental, pura coincidência
Duro e hostil sofrimento
Da narrativa findada
No voar da andorinha
Perdida no espaço sideral
Sem pai, mãe ou madrinha
Ser tratado como animal
Poema da incongruência
Claridade sem luz nem cor
Da presença na ausência
Do ódio, da paixão, do amor.
24/9/2013

Lares para a terceira idade
Uma das minhas filhas, há dias apresentou-me uma ideia que pode não ser original, mas sem dúvida com pernas para andar. Sem dúvida teria sucesso se o nosso povo (digo governantes) fosse competente.
“Temos muita gente competente, mas no colectivo somos uns fracassados”
Abertura de lares para idosos, em quantidade sem limites, mil, dois mil, ou mesmo dez mil, ou mesmo mais.
Lares com vários níveis de qualidade. Todos com as mais avançadas normas, com bom tratamento. Como é óbvio conforme a bolsa e cultura de cada um. Isto que seja entendido no sentido positivo.
Mas ainda não perceberam…isto era para estrangeiros!
As pessoas de idade passariam no nosso país o crepúsculo das suas existências. Bem tratadas sobre todos os aspectos.
As vantagens para Portugal seriam muitas, além de dar trabalho a centenas de milhar de profissionais.
Lares de turismo para a terceira idade, seria uma mina de divisas a entrar neste país tão falho de ideias.
Nota: faz-me confusão a falta de imaginação dos nossos governantes
24/9/2013

O Alberto Pereira de Castro, é um indivíduo intelectual, que gosta de escrever e de ler. Tem pouca tolerância para aturar boçais. Se tiver de estar ao pé de pessoas desinteressantes muito tempo, entra na bebida. Mas o Alberto por vezes é um chato. Até a minha pessoa com toda a minha paciência por vezes estou farto dele. É demasiado polido para os tempos actuais. É pessoa ideal para acompanhar o Carlos da Maia.
Por sua vez, o seu irmão gémeo Francisco Pereira de Castro, é um baldas, um gajo terra a terra. Anda sempre a pensar no sexo feminino. Gosta dos petiscos e cavaquear com um bom tinto à sua frente. Faz por sistema charme porque gosta que as pessoas gostem dele. Não estou a falar de engates, mas na relação com todos que o tratem bem.
São diferentes mas dão-se bem. Muitas vezes não estão de acordo mas sabem ultrapassar as suas divergências.
24/9/2013

Após escrever estas tretas decidi ir ao Pombalino ver a Diamantina que não está nada bem. Fui porque num futuro próximo vai ser difícil fazer aquela viagem.
Pensando que estava hoje mais fresco fui com algum optimismo, mas porra estava mesmo calor. Dou-me mal com o calor da lezíria, era sítio em que não viveria.
Almocei na Azinhaga na Adega do Maltez, ou era Taberna? Já não sei, mas sei que foi barato. Depois no sitio da Diamantina estendi-me no sofá e comecei a ficar com moleza, dor de cabeça e neura!
Regressei a casa onde cheguei por volta das vinte horas, penso que já passava. Ainda não jantei porque estou enfartado de nada em especial.
24/9/2013 - ZM

Nota: encontrei este meu trabalho multifacetado no arquivo do passado; gostei! Decidi partilhar ele neste Blogger, assim como no meu XXIV livro de poemas e algumas prosas.
19/10/2018 - José Bray

domingo, 14 de outubro de 2018

O Milagre


O Milagre
O dia nasceu muito quente e abafado em Pedra Seca. A pequena aldeia situada no planalto daquela serra pedregosa continuava em seca, a mais longa de que havia memória.
Estava latente, no ar, um estado de loucura pronto a extravasar em qualquer momento, nos habitantes do burgo.
Desde que Susejo chegara muito ferido a Pedra Seca e fora recolhido pela viúva Aras, não mais chovera na região.
Quase todos queriam um bode expiatório!
No largo da Fonte, defronte da casa de Aras, as mulheres da aldeia iam aos poucos chegando, fazendo um ajustamento com intenções agressivas.
Os rostos esfomeados e afogueados mostravam uma exaltação colectiva. A bomba estava prestes a estoirar.
Uma das mulheres, talvez a mais destabilizada gritou histérica e as outras fizeram coro. Todas com os braços no ar e uma pedra em cada mão.
“Vem cá para fora sua grande puta. Tu és a responsável por esta seca que é um castigo divino. Vem cá para fora sua puta, sua bruxa, para receberes o merecido castigo.”
Um pouco mais longe no exterior da taberna, uma vintena de homens, porcos, feios e maus, estava atenta. Com um sorriso maldoso os labregos esperavam um grande espectáculo circense.
No outro extremo do largo, encostado ao esgotado chafariz um pobre cego, atento, sofria. Tudo sentia, tudo ouvia, tudo cheirava, tudo via.
“Isto está mau! Pobre Aras, pobre viúva minha benfeitora.”
Aras, saiu ao largo com Susejo ao lado, de imediato começou a ser apedrejada.
Sem perder tempo Susejo colocou-se à frente da viúva recebendo no corpo as pedradas. Ao mesmo tempo de braços erguidos ao céu, gritava.
“Aras, está inocente, ela não pecou, nada há entre nós. Ela nunca desonrou a vossa aldeia.”
Mas as mulheres em estado de loucura não paravam a lapidação.
Ao longe no exterior da taberna os energúmenos babavam-se de prazer. Viviam em raiva pois a viúva nunca cedeu aos instintos porcos daqueles javardos.
Junto ao chafariz o cego chorava com pena e raiva por nada poder fazer.
Abraçando Susejo por trás, Aras tentava recuar com ele para dentro de casa. Ele ia descaindo e já estava quase de joelhos.
De súbito um grosso pingo caiu do céu, depois uma dúzia e por fim uma tromba de água desceu sobre Terra Seca.
Tudo estancou menos a chuva…
O cego gritou bem alto.
“Milagre, milagre, milagre.”
As mulheres completamente molhadas caíram de joelhos exclamando e rezando.
“Milagre, milagre, milagre.”
Aras, com esforço levou Susejo para casa muito ferido.
Ao longe os homens envergonhados reentraram na taberna para mais um dia de bebedeira.
Junto ao chafariz que já deitava água, o cego chorava de alegria.
Dentro de sua casa a viúva Aras tratava com carinho as feridas de Susejo.
Mais tarde os dois fizeram amor carnal pela primeira vez!
12/10/2018 – José Bray
Nota:
Hoje acordei a pensar na estória de Susejo e Aras, revi a cena do apedrejamento. Vi então na minha mente tudo que aconteceu, inclusive os pormenores do largo da Fonte onde Aras morava.
Decidi então, voltar a escrever o episódio.
Contar o mesmo, mas agora com mais alma!
E escrevi mesmo!
12/10/2018 – José Bray




segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A revolução da escrita


Os meus contos
Uma metáfora com muita escrita, muito papel quadriculado e muita tinta preta

A revolução da escrita

Primeira parte:
Pensava eu, pensava os meus heterónimos que os problemas com as contestações tinham sido ultrapassados; agora estava tudo na paz dos deuses. Afinal pensávamos errado!
Vindo de duras tarefas, chegava eu ao meu rincão, com a calma possível após um domingo com muito xadrez e reuniões também ligadas com a arte de Caissa.
No salão grande estava reunido o meu acervo da escrita. Todos à minha espera…
Era os romances, os contos, os poemas, as memórias, obras não acabadas e ainda muito mais que nem vou descrever. Não conferi, mas devia estar quase tudo que saiu da minha mente e da mente dos meus heterónimos.
Era mais uma contestação, era mais uma revolução. A revolta da escrita.
Bolas! Ainda não havia muito tempo tínhamos saído da revolução tripla e já estávamos metidos noutra confusão.
--Que querem vocês de mim? – Perguntei com pouco agastado, ainda mais cansado como na verdade estava.
Avançou como porta-voz dos contestatários o “Negro e Branco”, no seu estatuto de longa-metragem mais antiga.
--Queremos ser publicados! Não entendemos a sua embirração na matéria. Queremos uma solução, não queremos ficar para sempre no anonimato. Não queremos ficar a apodrecer num baú… Queremos uma resposta, uma explicção!
Podia de imediato dar uma resposta ao imbróglio, uma ou mais. Decidi não o fazer a quente, vou ter calma e tratar o assunto com luvas de pelica.
Depois de um pequeno hiato de silêncio, falei então:
--Entendo a vossa pretensão, ela tem a sua lógica. Hoje não tenho cabeça para vos atender com a consideração que me merecem. Estou muito cansado, minha cabeça está sem açúcar, preciso de descansar.
Parei por momentos, mostrando um natural cansaço, mas também manhoso. Depois continuei:
--Vamos dialogar, ouvir os vossos argumentos, discutir um dia destes com a cabeça e o corpo repousado. Que tal se for na próxima sexta-feira?
--Por nós tudo bem. Nada temos para fazer, a não ser estar arrecadados pelas gavetas e estantes da casa.
Depois da data marcada mobilizei os meus heterónimos da escrita para estarem também presentes.
Ufa, por esta não esperava; as escritas a reclamarem. Só me saíam duques de paus da minha cartola da fantasia.
Segunda parte:
No dia marcado lá estávamos todos para tentar um consenso ou não…
Os meus dois mil livros pediram autorização para assistir ao plenário revolucionário. Autorizei com a condição de não fazerem ruído ou qualquer comentário.
Junto a mim estavam todos os heterónimos que assinaram textos literários.
Da parte da escrita, além dos que estiveram presente no domingo, juntaram-se a eles os meus diários e os blocos A4 e A5 quadriculados preenchidos com textos escritos a tinta preta.
Como costume, pedi ao Druida para fazer a acta da reunião.
Depois de verificar que não faltava de parte a parte nenhum dos interessados, representantes ou convidados; pedi a palavra:
--Antes de entrámos nos trabalhos queria pedir a todos um minuto de silêncio. Minuto de silêncio em homenagem à memória de todas as canetas de tinta preta, falecidas ao serviço da nossa escrita.
Depois do emotivo minuto de silêncio, cantámos em uníssono o hino da caneta de tinta preta.

Caneta de tinta preta
Obrigado caneta de tinta preta
Esgotada na nobre missão
De escrever tanta maravilha
Na quadrícula dos cadernos
Obrigado caneta de tinta preta
Está no céu a vossa alma bela
Por cá estamos agradecidos
Nosso coração tem saudade
Caneta de tinta preta da magia
Heroína das nossas romarias
Não mais serás esquecida!
1/10/2018

Seguiu-se uma silenciosa estrondosa ovação que todos os corações emocionados bem ouviram.
Foi merecido este espaço emotivo dedicado às canetas de tinta preta, que uso quase sempre. Muitas centenas vazaram sua alma para o papel quadriculado para dar forma, cor e imagem aos meus textos, através da minha mão direita.
Depois fomos para a revolução! Para a revolta da minha escrita.

Terceira parte:
Embora já conhecesse a pretensão fundamental da minha escrita, queria que os seus representantes desenvolvessem mais a pretensão. Queria que os meus heterónimos ouvissem para além do que lhes tinha transmitido.
O porta-voz desta vez não foi o “Negro e Branco”, quem se levantou para falar e apresentar as pretensões foi o “ Vagabundo Filósofo e Utópico”.
Sem dúvida uma longa-metragem muito completa e bela, recheada de muitas estória à volta da estória principal.
O livro falou:
--A questão é simples patrão da banda, Ortónimo de muitos heterónimos aqui presente. Nós queremos ver a luz do sol e o luar da lua. Queremos ser se publicados. O vosso acervo é muito extenso, tem todo o género e muita coisa de qualidade. Será justo que eu já escrito há meia dúzia de anos, ainda esteja nos pendentes? Será justo que ninguém tenha acesso à vossa escrita?
Seguiu-se um silêncio barulhento no salão grande. Barulhento no silêncio incomodativo que sentíamos através das páginas de cada livro.
Nem o escrever da acta se ouvia. Por associação recordei o Vagabundo a meditar na grande Catedral junto ao altar.
Todos esperavam as minhas explicações. Rodei a vista por todo o salão, lá estava todos de ar grave, incluindo os meus heterónimos. Sabia que alguns estavam do lado dos insurrectos.
Por fim falei:
“Meus queridos filhos, todos nasceram do meu sangue; escrita e heterónimos.
Não pensem que não vos compreendo, por vezes tenham dúvida que esteja a proceder bem! Talvez não esteja a proceder com justiça. Talvez esteja a ser egoísta. Talvez tenha ciúmes.
Sei que se forem publicadas a obra deixa de ser minha, passa a ser de todos. Talvez eu queira os meus filhos só para mim?!
Não se ofendam, por vezes tenho dúvidas no que respeita à qualidade. Não queria deitar ao mundo filhos deficientes.
Meus queridos, eu escrevo para respirar. Se o não fizer morro com falta de ar como flor sem água.
Sabem qual a dimensão deste meu acervo que sois vós? Eu sei meus filhos que vós não sabeis. Eu vos digo; dava para publicar acima de cem livros.
Sabem que já fiz exemplares de quinze livros, meia dúzia de cada, de forma quase artesanal. Sabem que tenho blogue quase com duzentos textos.
Agora vou colocar duas questões:
Primeira é para vos perguntar se um dia publicar um livro numa edição a sério, qual seria?
Vocês sabem? Eu não sei mesmo! Por isso a batata quente fica do vosso lado.
Prometo editar aquele que todos vós escolherdes democraticamente!
A segunda questão é para os meus amados heterónimos. Se algum quiser publicar, força, avance porque terá o meu apoio.
Boa continuação de dia, meu acervo e meus heterónimos!”
Assim terminei a “Revolta da escrita”. Depois dei com encerrado os trabalhos.
Amigo Druida pode fechar a acta.
Comeira, 1/10/2018 
José Bray




quinta-feira, 27 de setembro de 2018

As três revoluções


Os meus contos
Uma metáfora que não vem só, vem em triplicado e com diversas utopias


As três revoluções
Acordei em sobressalto, o barulho no exterior do meu quarto era infernal. Antes de vestir as calças fui espreitar ao corredor lá para os lados da biblioteca.
Era uma manifestação contra a minha pessoa, contra os meus familiares e conta os meus heterónimos.

O hino da revolta
Em frente companheiros
Queremos a nossa dignidade
Queremos ter parceiros
Livro não quer virgindade
Troféu quer exposição
Verem a sua grande beleza
A todos atrair a atenção
Mostrar sua realeza
As peças querem jogar
Nós estamos em solidão
Até nos podem matar
Mas faremos a revolução!

Uma revolução estava no ar!
Senti algum medo mas não entrei em pânico. Sabia que tudo ia controlar.
Aqueles seres sempre acomodados estavam agora a levantar cabelo. Que razões teriam a apresentar a este ortónimo?
Possivelmente querem fazer o seu 25 de Abril. Devem querer impor algumas tretas que nunca vão conseguir por incompetência. Não sou o Marcelo, por isso não me assustam. Se for necessário vão para a fogueira ou despacho metade para uma colónia de África, talvez Guiné. Os melhores ficarão comigo.
Brinco! Vai haver sempre uma solução.
Bolas! Agora chega-me barulheira de outro sector. Bolas! Isto está a ficar complicado. Afinal são duas manifestações. Vou ter que me desdobrar.
Estes devem querer o 28 de Maio com o seu Estado Novo.
Vou ter muita cabeça, começa a ser muita areia para a minha camioneta.
Oh deuses da minha Montanha Mágica, mais outro foco de barulheira.
Três manifestações, três revoluções. Isto começa a ser dose para cavalo.
Estes agora devem querer o regresso à monarquia, querem voltar a ter rei.
Sem precipitação refugiei-me na minha inteligência e capacidade para lidar com a vida. De imediato comecei a ponderar opções.
Não tardei a reagir, precisava de ajuda e da família não viria. Num ápice mobilizei alguns heterónimos, para fazermos frente a tantas revoluções.
Três revoluções, três destinos, três aspirações numa só utopia.
Calculava quais fossem os motivos que levaram às três frentes. Em consciência elas tinham as suas razões, simplesmente não sabia como lidar com as situações, por apatia para o fazer.
Há muito esperava estas reacções, só não esperava que acontecessem ao mesmo tempo em três frentes.
Irei com alguns dos meus heterónimos para os cornos do boi, isto sem ofender os revolucionários nem os bois; tudo seres do bem.
Em fracção de segundos alguns heterónimos apareceram junto a mim. Não foram todos, não era preciso só para três revoluções. Se fossem dez ou vinte, sim, eram precisos mais heterónimos, talvez todos mesmo.
Apareceu o meu poeta Antobar, o sonhador João Simão o Pastor, o campeão José Brandão, o gestor Aberto de Castro, seu irmão Francisco de Castro o escritor, o santo Djapam, a bela poetiza Rita d’ Barcellos e Druida o mágico.
De imediato metemos as mãos na massa, chamando os líderes dos revoltosos e pedindo calma aos manifestantes.
Decidimos fazer reuniões separadas, uma na biblioteca, outra no salão grande e a terceira no pavilhão exterior.
Os revoltosos queriam tratar das suas pretensões em conjunto; não aceitámos. Era preciso dividir para reinar, com dizia um filósofo meu amigo.
A primeira reunião e na minha opinião a mais importante foi na casa dos livros. A queixa deles, os livros, era:
Queriam ser mais lidos, não aceitavam estar uma vida inteira sem perderem a virgindade.
Eles tinham razão! Era preciso encontrar uma solução.
--Livros que querem? – Perguntei ao líder, por sinal um livro muitas vezes lido por mim.
--Não sabemos como resolver, somos tua propriedade, decide tu. Queremos ser lidos.
Pedi sugestões aos meus heterónimos que não se fizeram rogados.
A Rita d’ Barcellos sugeriu que enviássemos uma parte dos livros para uma biblioteca que ela ia patrocinar na Guiné. Livros simples para adultos e crianças ainda meio analfabetas.
Djapam concordou e sugeriu uma solução semelhante para as suas igrejas evangélicas, nas quais era pastor há muito ano.
Talvez entregar os livros em escolas e clubes de leitura, sugeriram os irmãos Castro.
As sugestões foram muitas e boas. Os livros sorriam de satisfação. Já sentiam nas suas páginas, estarem a ser possuídos por milhares de mentes. Que felicidade!
Todos pediam uma decisão final.
--Vamos pensar, depois informamos que atitude tomar! Vou falar com a família que também é proprietária dos livros. De uma coisa quero ter a garantia, os livros são para serem lidos e não atirados para o lixo. Na descolonização portuguesa vi bibliotecas inteiras nos contentores do lixo e espalhadas pelos passeios na cidade de Luanda. Eram milhares de cadavais livrescos por todo o lado. Isso nunca mais!
Pedi entretanto ao Druida para escrever a acta da reunião. Marcando entretanto nova Assembleia para uma data posterior.
Acompanhado pelos heterónimos parti para o salão grande para reunir com os líderes da segunda manifestação.
Desta vez eram os troféus. A sua reclamação era simples e concisa:
Queria ser mais vistos!
--Então digam lá amigos?
--Somos muitos; troféus, taças, medalhas, medalhões, diplomas; pequenos, médios, enormes; importantes, humildes; um nunca mais acabar. Queremos para todos o mesmo tratamento. Queremos estar em exposição e queremos ser apreciados. Alguns até estão em museu!
--Não nos parece assim tão importante, mas pensar no assunto. Têm de entender não há espaço para todos estarem á vista. Aceitamos sugestões.
Um velhíssimo troféu, o mais antigo e humilde, taça minorca com patine do tempo, pediu a palavra:
--Sugiro que faça exposição em rotação ou seja temporária, vá mudando os troféus em exposição.
Um troféu de cristal, peça valiosa, entretanto falou:
--Os troféus queriam ser mais vistos, mesmo no museu muitos estão na arrecadação por excesso de acervo.
--Muito bem estão as reclamações e sugestões anotadas, vamos ponderar e voltaremos a reunir em Assembleia futura onde diremos o que decidimos.
O Druida escreveu a acta da reunião com já fizera na sessão anterior!
Agora vamos para a terceira revolução no pavilhão exterior.
Aqui as questões embora importantes, não eram complexas e as soluções possíveis muito diversas.
Tratava-se do material logístico para jogar xadrez e damas e para a sua aprendizagem. Era tabuleiros, peças e relógios.
O porta-voz desta vez foi um velho tabuleiro, duas vezes campeão de Angola em damas e uma em xadrez.
Resumo o que disse este velho campeão:
O problema deles era simples e óbvio: o material queria ser mais utilizado.
Como no caso dos livros e dos troféus, prometemos dar a nossa decisão em futura Assembleia. O Druida fez acta.
Decidimos que essas Assembleias seriam no mesmo dia e à mesma hora, queríamos todos presente.
Na data prevista conforme combinado, lá voltámos todos a estar juntos.
Nesta vez na zona do jardim, porque o espaço era maior e estava tempo ameno.
Entretanto com os meus heterónimos reunimo-nos muitas vezes trocando ideias para encontrar possíveis soluções; deitando para o lixo as impossíveis.
Por fim lá chegámos a um consenso, por sinal bastante utópico!
Chegou o dia da famosa Assembleia final. As três revoluções estavam presentes, com os líderes à frente. Todos estavam ansiosos!
Com os heterónimos a meu lado, declarei a nossa decisão sobre as diversas problemáticas.
Falei:
“ Meus queridos amigos, de uma vida! Existência que já vai longa. Todos vós fazeis parte de mim e dos meus heterónimos. Por vós vivi momentos únicos.
Queridos livros, através da leituras que fiz, de tudo que estudei nas vossas páginas. Resgatei vocês das prateleiras das livrarias, nunca regateando ou chorando o dinheiro que gastei. Li várias vezes o meu livro que me formou e de que tenho meia dúzia de edições diferentes; falo do Coração. Peço perdão por não ter lido todos.
Queridos troféus, vocês são carne da minha carne. Todos os troféus, taças e medalhas foram conquistados através de duras batalhas no tabuleiro. Sim amigos, vós tendes direito a estar em exposição. Muitos de vós foram conquistados com o mesmo mérito por meu neto, grande campeão. Recordo com muito orgulho a primeira taça conquistada, tão pequena, tão simples, mas belo diamante para mim.
Quanto a vós, tabuleiros, peças e relógios, são o meu maravilhoso património. Muito valioso, mas mais importante pelo valor emocional. Primeiro tabuleiro, primeiras peças, primeiro relógio de xadrez. Merecem a minha homenagem; cada com uma mágica estória para contar.
Por isso nós dizemos:
Meus queridos amigos, achamos os vossos desejos muito válidos. Têm toda razão, embora não o mesmo tipo de razão. Uns terão mais que outros.
Os livros querem ser lidos!
Os troféus querem ser vistos, apreciados!
Os tabuleiros, peças e relógios querem ser usados!
Conjugar a solução para todos a contento não foi fácil. Com a ajuda dos meus heterónimos chegámos a um consenso! O seguinte:
Vamos todos construir um edifício com amplas salas e boas condições.
Esse edifício utópico vai ter:
Terá um clube de leitura, onde as crianças e adultos poderão ler, ou requisitar livros para levar para casa e para os amigos. Havendo prémios para quem ler mais.
Os livros estarão numa vasta biblioteca, protegidos e organizados.
Num amplo salão os troféus, taças, medalhas, medalhões e diplomas estarão todos em exposição com as devidas informações e explicações.
Haverá um clube e escola de xadrez e damas, onde todos poderão aprender e jogar dando utilização a tanto material existente. Podendo ainda os tabuleiros, peças e relógios, serem emprestados a escolas para as crianças jogarem.
Meus amigos, é este o nosso programa em traços gerais.
Terminei.
Bem-haja a todos!”
Quando terminei a minha dissertação, um imenso clamor se fez ouvir. Uma explosão de alegria. Em todas as frentes cantavam vitória.

Hino da vitória
Em frente amigos em frente
Já conseguimos uma vitória
Alma e um coração ardente
Vai nos transportar à glória
Os livros serão desvirginados
Em prolongadas leituras
Os materiais serão usados
Nas mais variadas procuras
Os troféus mostram a beleza
Nas montras e exposições
Todos admiram a sua riqueza
Fazendo explodir as ilusões
Para a futura memória
Destas três revoluções
Ficará escrito na estória
As utopias e as emoções!

As três revoluções tinham triunfado!
Este ortónimo e seus heterónimos estavam felizes, devidos às nossas utopias e ao dever cumprido!
Comeira, 27/9/2018
José Bray







domingo, 5 de agosto de 2018

Visitantes


Visitantes
Nestes dias de Agosto de calor intenso com o país a arder torna-se difícil estar deitado quanto mais dormir.
Bem cedo fui até á varanda para tentar apanhar o fresco da madrugada, que afinal não havia. Havia sim uma atmosfera com fumo ou poeiras à mistura que dificultavam a respiração. Que porcaria de tempo; pensei!
Então vi:
Uma camioneta grandona, fechada, toda pintada de branco, aproximando-se devagar do meu bairro.
Parou defronte da minha residência.
Por um lado fiquei a pensar se seria uma ambulância, por outro se seria um carro para transporte de prisioneiros; talvez de um manicómio.
De dentro do autocarro saíram dois homens e uma mulher, os três vestidos de branco. Tudo era branco dos pés à cabeça, incluindo o cabelo.
Vieram bater à minha porta. Achei tudo muito estranho e fiquei de pé atrás. Inquiri:
--Que desejam?
--Viemos buscá-lo e à família para fazer uns testes a que a lei obriga.
--Mas que lei?
--A nossa lei e nada de mais perguntas.
Entretanto minha família tinha saído dos quartos e estava nas minhas costas. Todos com ar receoso.
Um dos homens, aquele que parecia mandar, avançou para mim e tentou agarrar-me. Recuei e ele avançou…
Comecei a bracejar e a tentar agredir o homem de bata branca sem botões.
Não consegui agredir o seu corpo, pois a minha fúria trespassava a imagem e ele nem reagia. Continuei a dar murros e pontapés, mas nada causava efeito.
--São fantasmas pai! - Disse a minha filha.
Pensei. – Sim. São fantasmas, não há dúvida.
A minha mente trabalhou veloz. Disse à minha família que amedrontada de agarrava a mim.
--Não se mexam que eles não podem fazer nada. Fechem os olhos, só abram quando eu disser. Tentem não pensar em nada.
Mulher, filha e neto assim fizeram.
Por minha vez, fiquei imóvel, mas de olhos bem abertos. Fixei intensamente os fantasmas.
Assim estivemos vinte minutos. Foi então que aconteceu.
Os fantasmas sentiram-se derrotados e num ápice explodiram como bolhas de sabão. Tudo voltou ao normal.
--Podem abrir os olhos!
Assim fizeram os meus e acabámos todos abraçados!
5/8/2018 – JB

Nota: Este conto baseia-se num sonho onde entrei na noite de 4 para 5 de Agosto de 2018

terça-feira, 8 de maio de 2018

Ufa...que estória


Ufa…que estória!
Primeira parte
Abel Pires tomava o seu terceiro café do dia, na última Estação de Serviço, antes de entrar no Algarve. Sentado, aproveitava para tomar algumas notas, pequenas ideias que podiam ser úteis, para utilizar como argumento no julgamento, em que ia estar presente, como defensor de um trabalhador, marginalizado pela máquina capitalista.
Uma tarefa sempre difícil, a força do dinheiro era o diabo...
Estava descontraído, o tempo que precisava para tratar da sua vida profissional, sobrava e muito. Por isso Abel tinha de fazer alguma coisa para ocupar parte desse tempo. Não estava preocupado com isso, era fácil no Algarve conseguir programa. Por um lado havia as praias durante o dia, à noite locais de interesse não faltavam dentro das mais diversas actividades; inclusive no mercado da sedução.
Abel ainda tinha a eterna opção para os tempos livres, estudar as leis e seus meandros, mas isso no fundo era trabalho. Podia ler, escrever, visitar museus ou monumentos.
Mas havia uma outra hipótese: visitar amigos ou mesmo família, em ambos os casos, as alternativas eram variadas
Uma das opções, seria visitar uma prima direita, mulher com menos dez anos que Abel. Familiar com imensa prole entre filhos e netos. Na verdade Paula tinha uma vida com muita vivência o que lhe deu anti corpos e capacidade para lutar com o mundo. Muito traquejo tinha a prima Paula.
Esta prima gostava muito dele, talvez devido a um passado em que via o primo como um príncipe inatingível. Por sua vez, Abel sentia muita ternura por Paula, mas nunca nesse passado longínquo teve a intenção de a seduzir. Embora soubesse que a bonita rapariga estava desejosa que o interesse de Abel por ela se manifestasse.
Na actualidade, sempre que Abel Pires ia ao Algarve em serviço. A prima exigia que ele ficasse em casa dela. Paula estava viúva com a vida bem equilibrada. Com a idade, voltou a mostrar interesse e atracção pelo primo.
Escusado será dizer que Abel nunca lá ficou em casa, dormia sempre num hotel onde se fizera cliente há muito ano. Ele tinha receio que a mulher, ainda com muito folgo na guelra, entrasse durante a noite na sua cama. Paula talvez não o fizesse, contudo Abel não estava interessado em pagar para ver…
Não! A casa da prima Paula não iria e muito menos lá ficaria. Abel respeitava a prima e admirava a capacidade que ela tinha para gladiar com a puta da vida.
Pensou… Talvez visitar o Tapadas, seu camarada da guerra, que vivia numa aldeia para os lados de Lagos.
Se melhor o pensou melhor o decidiu. Iria visitar o amigo que já não via há cerca de dois anos.
Entretanto foi recordando, enquanto fazia o ultimo troço da Auto-estrada. O tempo antigo e o tempo mais actual da sua ligação de amizade com os Tapadas.
O Jacinto Tapadas era um camarada muito simples e muito tímido que tinha grande amizade por Abel. Este não sabia mas o homem tinha  mesmo uma cisma pelo amigo. Qualquer gajo com experiência em paneleiros topava logo isso. O Abel criado num culto machista, não podia imaginar nem conceber que isso podia acontecer entre dois homens ou duas mulheres.
Abel era um conservador!
Para o Abel quando jovem, paneleiros eram gajos acima dos quarenta anos, esquisitos e cheios de taras.
O Jacinto, contudo teve sempre uma postura sem nada demonstrar ou a querer. Mas andava sempre borboleteando à roda da luz que irmanava do Abel. Este adorava miniaturas de casa feitas em madeira. Então o Tapadas que era marceneiro, fazia-as só para agradar ao amigo.
A guerra para eles terminou um dia e cada seguiu o seu destino. Durante muitos e muitos anos não se viram e não souberam nada um do outro.
Em Lisboa, Abel Pires abriu um gabinete de advogados, foi crescendo com sucesso. No Algarve, o Jacinto Tapadas abriu uma empresa de construção civil e empurrado pelo boom do desenvolvimento imobiliário, enriqueceu. Casou entretanto com Matilde e foi pai de um rapaz.
Até que um dia, através dos almoços anuais da Companhia Militar, os amigos se voltaram a encontrar. Nesta altura estavam todos a entrar na casa dos sessenta. Mas no Jacinto, rápido se voltou a revelar a antiga fascinação pelo Abel.
A mulher do Tapadas, a Matilde, era uma mulher magra com aspecto fino, sempre muito simples no vestir mas com gosto. O cabelo comprido já com bastante grisalho que ela não se preocupava em esconder. Embora magra, mas não em excesso, tinha uma figura sedutora.  Via-se que era culta mas que não gostava de dar nas vistas. Não mostrando má cara, era muito simpática mas raramente dava um sorriso.
Como já disse o casal teve um filho, que como o pai também se dedicou à construção civil. O Luís Tapadas, devido à actual crise, emigrou para Angola, terra onde seu pai e Pires lutaram.
A residência do casal Tapadas ficava numa pequena aldeia a meia dúzia de quilómetros de Lagos. Era aí que o Abel queria ir no seu tempo livre. Visitar com calma os amigos.
Abel Pires chegou a Lagos por volta do meio-dia. Estacionou o seu Jaguar num parque pago. Depois foi à procura de um tasco, que um amigo lhe indicara e onde se comia peixe de primeira. O nosso homem lá conseguiu encontrar a taberna e sentado junto a uma janela numa pequena mesa, pediu o peixe, a salada, o queijo, o pão e claro o vinho.
Enquanto deglutia os salmonetes e bebia um verde de reserva, o Abel ligou ao Jacinto.
Uma voz feminina, melodiosa com sotaque alentejano, fez-se ouvir no outro lado da linha.
- Estou sim, faz favor de dizer…
- Minha senhora o Jacinto Tapadas está?
- Quem procura por ele?
- É o Abel Pires, velho camarada da guerra.
- Como estás Abel? É a Matilde a mulher do Jacinto. Um momento vou chamar o teu amigo…
- Obrigada amiga…estou bem, E tu Matilde?
- Vai-se indo…vai-se indo!
Após aguardar breve segundo, uma voz aflautada surgiu do outro lado.
- Abel, como está o meu velho amigo? Por onde andas que nunca apareces?!
- Vai tudo dentro do normal Tapadas. Estou em Lagos e pensava fazer-vos uma visita. Estás por aí?
- Já devias cá estar! Não era preciso perguntar. Porque não vieste para o almoço?
- Já era um bocado tarde e não queria incomodar.
- Que raio de disparate! Já sabes onde é a casa, esperamos por ti…vem rápido.
E assim aconteceu! Após pagar o almoço, Abel avançou no seu Jaguar na direcção da aldeia onde moravam há muitos anos os Tapadas. A residência era uma vivenda de bonita traça nada exagerada na dimensão, mas construída com todos os requintes de quem sabe o que quer, e sabe como se faz.
Quando Abel estacionou a sua bomba no jardim do Jacinto, este e Matilde já o esperavam na escadaria da vivenda. Seguiu-se uma demonstração de amizade de quem realmente sente felicidade. Tapadas estavam mesmo eufórico com a chegada do amigo e este também estava contente. Matilde olhava para os dois com a sua aparente calma mas com expressão de pessoa inteligente. Por fim a mulher abraçou Abel, este teve uma pequena reacção, como se tivesse recebido uma injecção de química.
Como o tempo estava agradável, os três sentaram-se em cadeirões de verga no jardim debaixo de um frondoso pinheiro manso. Durante algum tempo, cavaquearam sobre tudo e mais alguma coisa. Dos filhos, do trabalho, da politica, do desporto e como não podia deixar de ser, sobre o tempo de guerra no passado já longínquo.
- Abel…vou num instante à loja comprar conquilhas para o nosso lanche. Fica a cavaquear com a Matilde que eu não demoro.
- Não queres que vá contigo?
O amigo disse que não com a mão, depois foi à garagem tirar o Mercedes e na calma dirigiu-se para a loja do marisco que ficava já perto de Lagos.
Após algum silêncio…Jacinto perguntou à Matilde.
- Então amiga, como tem passado de saúde?
- Abel…a tua amiga Matilde não tem andado muito bem. Ando muito nervosa, mas não sei porquê. É como se sentisse a falta de qualquer coisa. Mas que coisa? Não sei, amigo!
- E o Jacinto… está bem? Há algum problema entre vós, ou com o vosso filho e netos?
- Não Abel, o Tapadas é uma jóia como tu sabes. Muito atencioso e tratando-me sempre com carinho e muitos cuidados. O filho e netos estão bem lá na vida deles.
- Ainda bem Matilde, ainda bem. Já pensaste ir ao médico, ver se tens algum problema de saúde desconhecido?
- Mas não me sinto mal do corpo, não tenho dores. Que vou dizer ao médico? Ainda me diz que sou maluca.
Enquanto iam conversando entraram em casa e foram para o vasto salão. O Tapadas entretanto apetrechou-se e voltou para casa. Ao entrar na sala, ainda foi a tempo de ouvir Matilde dizer.
- Sabes Abel, o meu marido está muito feliz por teres aparecido, ele tem uma grande admiração por ti. Tu és o herói dele. Penso que a ti ele dava tudo e mais alguma coisa.
Neste diálogo havia um óbvio segundo sentido. Tapadas ouviu e não se ofendeu.
Eram dezassete horas, até às dezanove os três petiscaram e deitaram abaixo algumas garrafas de branco do Algarve, de elevado teor alcoólico. Ficaram dessa forma mais que jantados e bem bebidos.
Matilde pediu autorização para ir ver a telenovela da moda. Por sua vez os amigos por sugestão do Jacinto foram fazer uma caminhada junto ao mar, que ficava a escassos quinhentos metros da casa dos Tapadas.
Jacinto olhava fascinado para o Abel, a mesma fascinação de há muitos e muitos anos, quando ambos tinham pouco mais que vinte anos.
Em dado momento, Jacinto disparou.
- Abel, por favor, não quero que te ofendas com a pergunta que vou fazer. Basta que me mandes calar e tudo fica como dantes.
O nosso Abel ficou em pânico e pensou preocupado. – Não me digas que este gajo vai fazer uma declaração de amor. Travo já a conversa se for esse o caso.
- Amigo diz lá, não deve ser morte de homem.
- Então lá vai. Abel, continuas a gostar de fornicar e ainda o fazes regularmente?
O nosso homem ficou abestalhado com a pergunta, mas não viu razão para não responder.
- Sim Jacinto, continuo a foder e cada vez com mais técnica. Mas porque essa pergunta?
- Porque queria pedir um favor mas tenho vergonha.
- Homem de Deus, já que começaste acaba.
O Abel estava mesmo a ver que o amigo queria ser enrabado. - Que raio de situação, onde me vi meter. - Pensou ele.
Entretanto um longo silêncio imperou entre os dois homens. Só se ouvia a sinfonia do oceano. Jacinto não sabia se devia avançar ou não.
- Oh homem…desembucha, podes confiar em mim. Após o que disseres, tudo continuará igual entre nós.
Então o Jacinto Tapadas tomou coragem e venceu a sua natural timidez.
- Abel gostava muito que fodesses a minha mulher!
Após dizer isto, baixou a vista e ficou sem coragem para encarar o amigo. Este por sua vez ficou mais aliviado e tentou animar o amigo.
- Jacinto, não fique envergonhado, não é nada do outro mundo. Já vi coisas muito piores. Vamos lá escalpisar o problema. Faço já várias perguntas para ficares mais à vontade. Primeira, a Matilde está de acordo? Segunda, fiques bem se isso acontecer? Terceira, que se passa contigo e com tua mulher? Jacinto Tapadas, velho amigo, fala sem rodeios nem complexos.
Então o Jacinto Tapadas falou.
- Com a Matilde entendo-me eu, mas para já digo-te o seguinte. Há bastante tempo, falámos um pouco a brincar e um pouco a sério, nessa hipótese. Ela a sorrir disse que não, pensando em sim. Abel, se ela fizer amor contigo fico feliz. Terceira questão, ao fim e ao cabo o fulcro da questão. Entre mim e Matilde está tudo bem, menos na cama. Abel, eu sou gay, mas nunca assumi nem vou assumir. Fiz um esforço e Matilde tentou ajudar. A provar isso foi termos o nosso filho. Mas depois com o tempo não consegui mais. Matilde é uma mulher boa e séria. Nunca teve coragem de me trair. Mesmo quando dei a entender que não me importava. Não nego que tive e tenho uma sisma por ti, que começa e acaba na admiração e fascinação.
Jacinto parou para descansar, olhou atentamente para Abel que o fixava com emoção e lhe deu coragem para continuar.
- Como já disse atrás. Há muito tempo tinha falado com a minha mulher. Há pouco tempo, voltei a abordar o assunto com a Matilde. Disse-lhe que devido há grande amizade que tinha e tenho por ti, não me importava que fizessem amor os dois. Ela compreendeu tudo e riu-se dizendo. – Mas se estás tão longe do teu amigo como resolves isso? – Agora aconteceu este acaso de apareceres em Lagos, se é que foi um acaso e não uma armadilha do destino. Então ganhei coragem e falei hoje contigo. Abel, todo o mal no sistema nervoso de Matilde é devido há falta de sexo. Eu sei isso e sofro.
- Ah Tapadas, Tapadas, Tapadas. E agora?
- Agora Abel? Está na tua mão. Desculpa esta situação.
- Jacinto vou pensar na situação. Amanhã tenho julgamento em Portimão. Depois regresso a Lisboa. Mais tarde falamos…
- Vou voltar a abordar o assunto, subtilmente, com a Matilde. Depois digo-te alguma coisa. Gostava que vocês se entendessem. Ela merece e eu fico feliz.
- Mas não digas nada à Matilde que falaste comigo. Deixa que haja sedução. Só assim entrarei no jogo, meu amigo.
- Com certeza, tens razão. Obrigado meu grande amigo.
Após esta complexa conversa, os dois amigos despediram-se. O Jacinto foi para junto de Matilde. O Abel, por sua vez com a cabeça zonza, foi para o seu hotel em Portimão.
Fim da primeira parte  

Segunda parte
O tempo passou. Cerca de um mês depois do Abel Pires ter estado no Algarve na casa do Jacinto, o nosso homem trabalhava no seu gabinete. Estudando um processo complexo de regulamentos dúbios. Estava concentrado tentando compreender toda a lógica daquelas tretas, em que uma vírgula alterava todo o sentido ao texto.
Parou para tomar mais um café, o seu vicio mais vicio…nesse entretanto entrou no gabinete a sua secretária.
- Senhor doutor…está n linha dois um senhor para falar consigo. Diz ser o Jacinto Tapadas. Passo a chamada?
- Passa sim Branca e obrigado.
- Olá Jacinto, então como vai isso?
- Estou bem meu amigo. A Matilde é que está cada vez mais destabilizada. Ando muito preocupado…
- Que posso fazer por ti e por ela, Jacinto?
- Abel, voltei a abordar a questão que tínhamos, tu e eu conversado, há um mês. Claro que não lhe disse nada sobre as nossas conversas.
- Que disse a Matilde? Como reagiu desta vez?
- Disse-me que para me fazer feliz não se importava de fazer sexo contigo.
- Repara que ela disse fazer sexo e não fazer amor. Não achas que essas conversas são uma afronta à tua mulher?
- Nada disso, Abel. Aquilo que ela diz é só da boca para fora. Que querias que ela dissesse? Ela quer, eu sei. Mas mais importante que ela querer, a minha mulher precisa mesmo…senão fico sem a minha Matilde. Vem Abel, por favor!
- Eu vou sim amigo. Mas temos de tratar tudo com punhos de renda, tem de ser tudo muito natural, para não parecer uma coisa promíscua.
- Abel é simples, vais cá passar uns dias, aproveitando a tua vida profissional. Vens ficar em nossa casa, como temos muitas vezes convidado. Depois quando for oportuno e ausento-me para tratar de assuntos. Coisa normal sair por duas ou três noites.
- E depois?
- Depois fazes a tua sedução, o que for soará. Se não for à primeira, será à segunda ou à terceira. Vais ver que tudo será natural. Eu fico feliz e ela poderá ficar bem da cabeça. Agora sou eu que peço, tem coragem Abel e não te atrapalhes.
Durante uns minutos ficaram em silêncio. Minutos que pareceram horas. Por fim Abel Pires falou.
- Está bem Jacinto, daqui a duas semanas posso estar uns dias em Lagos ou na tua casa. Tenho um julgamento que deve durar uns dias, pois é um assunto polémico. Quando for avisarei. Está bem assim Jacinto?
- Muito bem, cá te esperarei. Tem calma, tudo vai correr bem. Para ser mais natural, não direi nada à Matilde sobre a tua vinda.
Após desligar o telefone, Abel ficou muito tempo a matutar. Ufa…que estória! Vamos lá ver se ninguém sai magoado deste imbróglio.
Sem cabeça para continuar a analisar o chato regulamento, saiu para ir ao bar. Queria encontrar alguém para cavaquear e beber uns copos de preferência com um amigo ou amiga.
Afinal não foram quinze dias mas sim um mês, que passou rápido. Abel Pires partiu de manhã cedo para o Algarve. Levava duas missões na bagagem. Um julgamento polémico e conquistar Matilde. Mas não estava muito convencido que ia vencer nas duas frentes. Vencer não era a expressão correcta. Alcançar os objectivos, seria mais bem dito. No primeiro caso conseguir fazer justiça, no segundo, seduzir a mulher do Jacinto com a concordância dele.
Após pedir à sua empregada domestica que lhe preparasse a mala para oito dias, Abel Pires, numa segunda-feira, partiu bem cedo para o sul.
Um bom amigo pediu-lhe para dar boleia a um filho que ia para a Universidade do Algarve. O nosso homem ficou satisfeito, sempre tinha alguém para o distrair, assim falando com o David, ia-se abstrair e não pensar no trabalho ou no Tapadas.
David era um rapaz muito inteligente. Para além disso era bem formado como cidadão, não sendo colonizado pelo dinheiro do pai. Pires gostava muito do puto e estava satisfeito de o levar na viagem para o Algarve.
- Mas o doutor não quer mesmo ficar no meu apartamento, tenho um quarto livre?
- Não David, talvez numa próxima viagem, desta vez vou ficar na casa de uns amigos. Terei de resolver uma complexa missão.
- Doutor, o senhor tem fama de grande conquistador. Posso fazer uma pergunta?
- Força David, posso não responder!
- Qual a melhor técnica para conquistar uma mulher?
O advogado deu uma gargalhada, depois com cara séria falou:
- Não há uma receita única. Depende de vários factores. Depende do emissor e do receptor. Teríamos de escrever um tratado e muita coisa ficaria por dizer.
- Mas doutor, um só conselho!
- Sê tu mesmo!
- Só isso?
O carro seguia a uma velocidade moderada, a pressa não era muita. Abel Pires achou imensa piada à questão colocada por David. Como tinha tempo, decidiu contar uma estória da sua vida…
- David para não estar com filosofias que no fundo não levam a nada, vou contar uma estória passada tinha eu exactamente vinte anos. Cá vai…
“Um dia fui para a praia na linha do Estoril com um amigo que mais tarde foi meu cunhado.
Tinha na altura vinte anos e pensava ter o mundo nos meus braços.
Estávamos nós já perto da arrebentação quando reparei numa mulher jovem sentado na sua toalha a ler uma revista.
De volta dela meia dúzia de macacos faziam acrobacias tentando chamar a atenção.
A rapariga era uma visão sensual que virava a cabeça a qualquer um. Loura, com tudo no sítio conforme moda para a época. Era na verdade uma provocação.
Disse ao meu amigo: - Vou avançar, se der algo, segue o teu dia.
O meu amigo respondeu: -Força Abel, amigo não empata amigo.
Que fiz? Simples, sentei-me ao lado dela numa conversa delicada, ela respondeu e ao fim do dia regressámos a Lisboa.”
- E depois doutor?
- Depois rapaz? Será estória para outra lição um dia.
- Mas afinal que fez?
- Fui natural, fui eu sem vício na cabeça nem carro à frente dos bois.
David sorriu com expressão de entendido. Fiquei feliz, o rapaz era esperto.
E assim nesta maneira divertida chegámos ao Algarve. Fui levar o David ao seu apartamento e de seguida segui para a aldeia do meu amigo Jacinto Tapadas.
Cheguei já perto do meio-dia, hora que avisara de véspera.
Na escadaria da vivenda estavam Jacinto e Matilde com cara feliz, por receberem este amigo de há longos anos.
Jacinto estava como sempre, mas a Matilde, no seu estilo simples e com muita classe estava elegantemente produzida, incluindo o penteado trabalhado sobre o seu excelente cabelo.
Foi um abraço sentido emocionalmente por todos.
Depois entraram abraçados em casa, fechando-se a porta maciça logo que eles entraram.
Fim da segunda parte

Terceira parte
Nota: como noutros contos, cada um fará o seu próprio final.

4/3/2015
Antobar