quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Enigma do casal apaixonado



Era um casal muito apaixonado, seu romance de amor vinha dos confins do tempo. Após muito namoro decidiram juntar os destinos, que há muito estava definido. Casaram porque tinham medo que a vida passasse por eles e no fim dos tempos não deixassem descendência. Tomaram a importante decisão do matrimónio numa madrugado mesmo ao nascer do dia. Padrinhos logo tiveram, o Sol e a Lua, nem podiam ser outros, conhecidos dos noivos de longa data. Ao cair da tarde e ao chegar da noite de certo dia, aconteceu o enlaço para a eternidade. Mas já vos digo que não foi uma união fácil, ao fim e ao cabo como qualquer casal que se preze. Os padrinhos bem os avisaram: vejam lá no que se metem? Tinha razão, o casal era muito desfasado, ela doce e calma, ele brilhante e turbulento. Mas meu Deus quando os dois se encontravam era momentos de loucura. Faziam todos os dias amor, uma vez no nascer do dia, outra no nascer da noite. Depois era como se não conhecessem. Conheço este estranho casal, todos os dias o vejo. O amor continua, mas sempre com encontros e desencontros. Um dia apresento  a todos vós este admirável e complexo par.
Sabem a quem me refiro? É um enigma mesmo! É o Dia e a Noite, estão casados desde sempre, em cada dia têm dois fugazes encontros sublimes e eternos!
Bray, 18/5/2012

Irmão abandonado




O polegar estava triste, uma tristeza sem fim. Uma mágoa imensa, melancolia e saudade da sua época áurea. Deixado ao abandono, ele sentia na alma e no corpo o desprezo dos irmãos. Até o mais pequeno que nada fazia, nem antes nem agora, ria-se do irmão polegar, acompanhando os outros três irmãos na árdua tarefa de debitar letras. O polegar sonhava com o tempo em que ele sozinho fazia metade da tarefa. O polegar sentia revolta e ódio pelo avanço da modernidade que anulara os seus préstimos. O polegar sentia-se inútil. Não podia abandonar os irmãos mas sentia raiva por eles serem felizes, enquanto ele fora posto de fora como parasita do talento dos outros. Mas um dia houve glória. O polegar, a caneta e o papel, uniram-se fazendo um pacto. Avançaram para o manuscrito em força, com desejo e talento. Assim a obra nasceu! Nesse dia ao deitar o polegar estava feliz!
Bray, 5/6/2012 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Improviso da Noite de Natal 2012

Hoje apetece-me escrever de improviso, ainda não sei do que vou falar ou escrever neste caso, mas alguma coisa vai sair. Começo já por dizer que não gosto do Natal, a hipocrisia é muita e todos, ou quase todos embarcamos na farsa. Digam-me lá! Alguém pode ter a consciência tranquila ao ver a mesa recheada de tudo, para depois deitar para o lixo o que foi desperdiçado  sem contudo haver a percepção que dois terços da população do mundo passa fome, e uma grande parte dessa gente morre por falta de alimento devido a isso?  É justo que crianças tenham brinquedos às pazadas e depois a maior parte nem a prenda mais insignificante tenha? Afinal onde está o menino Jesus, ou outro Jesus qualquer para permitir tanta desigualdade? O Pai Natal sai da Lapónia com brinquedos para as crianças do mundo, mas afinal só alguns têm o brinquedo pedido.
Já sei, vão-me dizer! Mas isso é uma fantasia para alimentar o imaginário dos meninos. Todos sabemos que o Pai Natal não existe e o menino Jesus tem mais em que pensar. Então pergunto eu, é com essas fantasias que vão enraizar nas crianças valores? Onde esta a fraternidade? Onde está a igualdade? Onde está a justiça? Onde está o direito a SER! Onde está a Carta das Nações dos direitos das crianças?
Na verdade, somos todos controlados como  carneiros, para este jogo infernal do "mundo ao contrário" que os poderosos foram criando a partir da revolução industrial. Mas as crianças senhor (Deus) porque não são protegidas?
Hoje é noite de Natal, nem sei porquê? Jesus nem nasceu nesta data como todos sabem, era preciso ocupar o espaço devido ao marketing dos interesses. Hoje nesta noite de Natal tenho recordado os amigos, em especial os que partiram. A amizade quando verdadeira é algo sublime, não falo de amor homem mulher, falo da amizade entre seres humanos. No xadrez tenho tido através da vida muitas dezenas de amigos, talvez mesmo centenas. Como é característica da modalidade, passámos muitas horas frente a esses amigos no tabuleiro do xadrez e também no tabuleiro da vida. Já partiram muitos, quase todos deixaram gratas lembranças que vão perdurar em quanto formos habitante desta bola de todos nós, mas que alguns pensam que é só deles. Dos mais representativos o primeiro a partir foi o Victor Cardoso o jogador número um de Monte Real, depois seguiram-se o Mário Silla o meu querido amigo de Angola, oficialmente o primeiro campeão daquele país após independência, seguiu-se o Valter Tarira filósofo do xadrez e da vida, uma mistura de tudo que fosse lusitanidade. António Mamede Diogo partiu em Setembro de 2009, após luta heróica contra a doença que o acabou por vencer, entretanto partiu o senhor Loureiro grande desportista que também travou luta tenaz com o terrível mal. Em 2010 partiu o nosso inigualável Carlos Quaresma companheiro de trinta anos de xadrez e de amizade. O último amigo a partir foi o Álvaro Gonçalves o campeão de Figueiró dos Vinhos, os seus amigos vão-lhe perpetuar uma homenagem ao irem fundar o Museu do Xadrez na sua terra e com o seu nome. Muitos outros partiram, mas estes vieram hoje falar comigo e dei-lhes toda a atenção. Vi nítido os seus rostos, ouvi as suas vozes, até o cheiro deles eu senti!...
Acabei por beber por todos eles! Discutindo os pontos de vista sobre o xadrez, lá partiram com saudade  do amigo que com eles tinha confraternizado na noite de Natal.
Como vêm, alguma coisa saiu, mesmo de improviso!
Bray, 24/12/2012

domingo, 23 de dezembro de 2012

O Rabisco - (para sorrir)

Era a época do rabisco da azeitona. Na minha aldeia, as pessoas válidas sem trabalho, iam quase todas para essa tarefa. Idosos, desempregados e sobretudo crianças. Cada um com o seu cesto, lá iam os miúdos a partir dos cinco e seis anos, rabiscar. Estava nessa altura em casa do Zé Mosca, irmão da minha avó materna. Período marcante da minha vida de criança. As memórias dessa época são já em razoável quantidade. Recordo-me dessa tarefa feita todos os anos. Também havia o rabisco da uva, mas a sua importância era insignificante e na verdade confundia-se com as vindimas. Essas sim cheias de carisma. Mas voltemos às azeitonas. O rabisco era importante para a economia das famílias pobres. Após o rabisco as azeitonas eram levadas ao lagar, depois recebíamos azeite em contrapartida ao produto entregue. Um dia com o cesto na mão, desci a ladeira da igreja até à estrada principal. Depois segui no sentido da Abrunheira até à ponte romana. Os quatro plátanos, dois de cada lado da estrada, lá estavam imponentes e lindos como sempre. Virei à direita e acompanhei o rio da Várzea durante duas centenas de metros, no sentido da nascente. Depois atravessei as vinhas até ao olival. Caminhei até lá, brincando com tudo que aparecia. O dia estava lindo, frio, mas o sol a partir de certa hora aquecia tudo um pouco, sabia mesmo bem. Curiosamente ia sozinho, não devia ter mais de sete anos feitos há pouco. Mas na aldeia era assim, os garotos começavam muito cedo naquelas lidas. O primo António Luís, costumava andar comigo, mas naquele dia não ia, devia ter outra tarefa. Junto às oliveiras comecei a minha missão. As azeitonas já escasseavam, o trabalho ia durar muito. Enfim lá fui fazendo o que podia, de vez em quando olhava para a Ermegeira, lá estava a casa do tio Zé, sede da música, a capela, o monte com o moinho, através do arvoredo via-se o telhado da quinta. A minha aldeia era uma terra maravilhosa, própria de um conto de fadas. De repente parei. Na base de uma imponente oliveira, vi um enorme avental preto, estava gordo com o seu conteúdo. Aproximei-me e espreitei, gloriosa visão, estava cheio de azeitonas. Olhei em volta, não vi ninguém, pumba, despejei até encher o meu cesto. A seguir desandei rápido, não chegando a ver a dona do avental. Com passo apressado avancei rápido para casa do tio Zé. Sem parar, mudando o cesto de mão,por diversas vezes devido ao peso, lá cheguei ao pobre casebre, em menos de dez minutos. A minha tia ao ver-me chegar ficou admirada, por ter conseguido tanto rabisco em tão pouco tempo. Sorriu, fez qualquer breve elogio e lá continuou no seu lidar. Nesse dia subi uns pontos na sua consideração. À tarde fui brincar com a rapaziada para o centro da aldeia, defronte da casa do tio Mário. Quando não é o meu espanto, uma velha bem conhecida estava a falar com outras mulheres. Toda enervada, contando que lhe tinham roubado as azeitonas. Fazia insinuações e ameaças, rogando pragas a torto e a direito e eu a ver e a ouvir calado, e amedrontado, mas nunca me desmanchei. A velha era só, vejam lá, a bruxa oficial da Ermegeira. Fraca bruxa porque não adivinhou quem a tinha roubado. José d' Barcellos, 25 de Janeiro de 1999

Natal - O milagre do menino Jesus!




Noite de Natal – O Milagre!
As fábricas da Lapónia que fabricam brinquedos trabalharam em três turnos ou seja 24 horas sobre 24 horas, ao longo destes doze meses. Era preciso fabricar todo o tipo de brinquedo para oferecer como prenda de Natal, aos meninos e as meninas de todo o mundo. Mas este ano havia uma novidade, decretada pelo pai Natal principal, todos a partir dos sessenta, homens e mulheres (sim Mães Natal) eram convocados para a tarefa do Natal. Sim porque da Lapónia não pode vir só um trenó, era demasiado trabalho para um velhote e suas renas. Podemos mesmo dizer que os cinquenta mil idosos daquela região fazem a entrega das prendas e mesmo assim ficam de fora a maior parte dos meninos e meninas, curiosamente os mais pobres. Porque será? Porque razão tanta azáfama na Lapónia este ano? Vou contar porque aconteceu essa mudança!
Um dia o menino Jesus, agora já adolescente ouviu uma criança a cantarolar os seguintes versos:

Natal
Vem aí o Natal
Tempo de fartura
Mas muito animal
Racional ou não
Tem falta de ternura
E falta de pão.
É só simpatia
É só bondade
É só hipocrisia
É só falsidade.
Cuidado com as feras
Elas tudo comem
Elas são beras
Elas são o homem!
O ser humano
É o pior bicho
Após o fim do ano
A comida vai para o lixo.
Quando o pobre se unir
E exigir o que é seu
Quem se vai rir?
Vão ser eles vou ser eu!
Quem muito tem
A alguém o roubou
Porque nunca alguém
Tanto ouro amealhou.
Haverá um dia
Que o vosso Deus
Com muita alegria
Se juntará aos ateus.
Deitam comida fora
E também muita roupa
E sem mais demora
Tudo gasta nada poupa.
Vem aí o Natal
Com ele muito frio
Os pobres passam mal
Mas não podem dar pio.
Jesus da Nazaré
Com sacrifício e humilhação
Deu exemplos ao Zé
Mas este quer ostentação.
Vem aí o Natal
E a tosca humanidade
Que faz muito mal
É toda caridade
Falsa humildade
Para aliviar consciências
Falsa castidade
Das super potências
Jesus dos despojados
Fica envergonhado
Porque, mal amados
Estão desalojados
E ele já cansado.
Vem aí o Natal
Coitados dos sem abrigo
Têm fome, frio e passam mal
Excluídos vivem no perigo
O Natal é tempo de dor
Para quem tem coração
É tudo um horror
Que nos leva à emoção.
Que esperanças, que alegrias,
Tem o pobre?
Tem sonhos!
Tem fantasias!
Ser nobre
Ter filhos risonhos.

O menino Jesus após dois mil anos de história aprendeu muita coisa, ao ouvir este poema ficou muito abalado e decidiu abordar o seu pai espiritual o Deus. Este na sua natural prepotência disse ao filho para não se meter onde não era chamado. – Mete-te nas coisas das crianças e deixa os assuntos sérios para o pai, as coisas são mais complexas do que tu pensas. E assim despachou o adolescente que não ficou convencido.
Mais tarde Jesus ouviu outro menino, por sinal uma menina troteando o seguinte poema:

Natal traidor
Está aí o Natal!
Menino pobre olha,
Procura ansioso lá longe
Procura olhando o céu
O carro do pai Noel.
Sonha no real, sonha acordado.
É noite escura, noite límpida.
Menino pobre tem frio,
Menino pobre tem fome,
Fome de comida e amor,
Frio no corpo e na alma.
Olha, lá vem o pai Natal,
Olha, lá vem o carrossel.
Está negra a noite!
 Brilham as estrelas
No coração do menino.
Vem aí o pai Noel,
Lá vem o seu presente!
Mas… mas… desilusão!
Com mil luzes
O trenó passa… sem parar,
Vai para o palacete.
No quarto do menino rico
Mais uma prenda vai entregar
Às mil existentes!
Menino pobre chora!
Pai Natal seu sacana!
Traíste o menino pobre
Traíste o menino Jesus.

O menino Jesus que já não era menino há muitos séculos mas sim adolescente, ficou outra vez angustiado e decidiu desta vez tomar uma atitude, seu pai tinha dito para ele se meter em assuntos de criança, então ele ia mesmo meter-se em assuntos dos mais novos. Se assim pensou mais depressa o executou. Pediu ao seu anjo escudeiro para chamar o São Nicolau padroeiro do Natal. Este, gordo, afogueado e cambaleando no seu fato verde apareceu pouco depois. – Que deseja menino Jesus? O menino que já era adolescente, pensou um pouco e depois determinou. – São Nicolau, quero que todos os meninos pobres do mundo tenham este ano o seu brinquedo! Parou para apreciar a reacção do velhote, tomou ar, depois continuou. -- De futuro será sempre como desta vez. O Santo ainda argumentou. -- Mas assim é capaz de não chegar as prendas para os meninos ricos! -- Não faz mal, a esses mandas um postal a explicar a razão, vais ver que eles aceitam e ainda ficam felizes!
Foi assim que aconteceu o milagre! Jesus estava feliz!
David – 24/12/2010

sábado, 22 de dezembro de 2012

Por favor critiquem

Meus amigos, como no xadrez vão aparecer de vez enquanto no meu blogue duas versões do mesmo tema, peço aos meus amigos que façam uma análise e digam qual preferem! Nos textos, muitas vezes basta um sinonimo diferente para alterar o sentimento do mesmo! Não o sentido claro está! Podemos dizer o mesmo por palavras diferente. Por exemplo, não é o mesmo dizer rapariga, miúda ou menina. Há palavras que são autentico arame farpado, por exemplo gaja, ou doces como por exemplo amor! Ajudem-me a melhorar o que escrevo! Façam todas as criticas que desejarem! Muito obrigado a todos! Bom Natal 2012 Bray

Milagre de Natal! (versão nova)

O jardim estava quase vazio, uma velhinha sentada no banco, mais central, junto ao denso arvoredo e cheia de frio recordava o passado longínquo em que,sentada naquele mesmo banco via as crianças, filhos de gente abastada brincar com lindos brinquedos e vestidas a rigor com roupas bonitas e quentes. Ela, ainda menina, tiritava de frio no seu roto vestido de chita e os seus pequeninos pés enregelados não encontravam qualquer conforto nos chinelos já coçados pelo tempo. Hoje, depois de tantos anos passados, via que à sua volta brincavam os netos das crianças de outrora, e que era mantido o mesmo rigor das boas roupas e dos mágicos brinquedos. Pouco tempo lhe restava de vida, ela sabia isso. Continuava pobre, como pobre sempre fora desde menina. Agora, triste e saudosa recordava o filho que partira há muito para o fim do mundo. Poucas notícias recebera e dinheiro ainda menos. O dinheiro tinha dado jeito, mas as notícias eram bem mais importantes. Coitada! Não sabia ler nem escrever, precisava sempre de alguém para a ajudar, mas as pessoas e olhando o seu estado de pobreza pouco lhe ligavam, e ela tinha vergonha de pedir auxilio. Um dia teve a notícia que o filho morrera. Reviu todo o seu passado e recordou o amor da sua vida, falecido prematuramente devido às vicissitudes da vida. Então a velhinha chorou, chorou, chorou…e adormeceu enregelada no banco do jardim. Sua alma preparava-se para partir… foi então que suaves toques na sua enrugada mão impediu o abalar da alma. Recobrou os sentidos, abrindo aos poucos os seus olhos já cansados. À sua frente uma linda menina igual à outra de há setenta anos, sorrindo, estendia-lhe uma rosa branca. --Sou eu avó! Vim de muito longe para a beijar. A menina abraçou e beijou a velhinha que feliz partiu para a eternidade. Yarb, 6/12/2012

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Os meus cães - 2

Um filósofo meu amigo disse um dia, os seres humanos dividem-se em duas classes, os que gostam de cães e os que não gostam de cães. Quis a natureza que eu pertencesse à primeira categoria. Gosto de cães, toda a minha família gosta também e os meus amigos quase sem excepção não fogem a esta regra. Quando era menino pobre e triste o meu maior amigo foi o Tejo, um animal grande e pachorrento, castanho para o amarelo com convém a um bom rafeiro, também conhecido nas cidades por vira latas. Passei muitas manhãs e iguais tardes a brincar com ele, sempre paciente para as minhas pequenas maldades. Um dia foi ele que me encontrou numa noite de inverno em que estava desaparecido. Antes de fazer a tropa levei para casa da mãe Alice um aristocrata que se havia de tornar num pequeno tirano, quando regressei de África mal cheguei a quinhentos metros de casa o cão começou aos saltos porque o seu olfacto me detectou. Em Luanda tínhamos um simpático rafeiro chamado Shane, que nos foi roubado, a minha companheira procurou, procurou e descobriu o animal preso e sem condições num quintal de labregos, veio para casa doente e morreu jovem, ficou a saudade. Em mil novecentos e oitenta e três entrou na nossa vida o mais belo cão a que pusemos o nome de Yarb, este era nobre em todos os sentidos, nervoso, leal, punha os miúdos em respeito mas nunca fez qualquer mal aos mesmos. Gostava imenso de andar de carro, quando passeava com ele era fácil meter conversa com toda a gente! Catorze anos depois, o nosso amigo já velho e doente obrigou-nos a ajudá-lo a partir, foi muito difícil, está a descansar no Pinhal do Rei em local que só eu sei! Em mil novecentos e noventa e oito chegou a Morgana, uma boxer castanha, feitio calmo, grande companheira, nem se dava por ela, devido a problemas de saúde gastou-se uma fortuna com a Morgana, mas nunca nos arrependemos de o fazer. Minha companheira de passeios no pinhal, passava os dias sentada onde eu estivesse sempre olhando com uns lindos olhos castanhos. Hoje, vinte e sete de Dezembro de dois mil e dez, às 15h e 15m o coração da Morgana deixou de bater, partira para o céu dos cães, dorme no nosso quintal junto ao damasqueiro, sobre a campa plantei quatro pés de roseira branca em homenagem à pureza do seu carácter. Adeus minha amiga! Bray – 27/12/2010

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A menina da cheia

A cheia chegou e tudo cobriu, tudo não, as copas das árvores de maior porte ficaram à vista. As aldeias da região ribeirinha ficaram quase todas debaixo de água, os telhados não. Era sempre assim quando o rio transbordava devido ao excesso de água enviada pelo Deus lá de cima. Nunca ninguém descobriu se a chuva era programada ou era obra do acaso. Um ano havia cheia, depois um, dois, três, quatro não havia água em abastança. Também acontecia haver cheia anos seguidos e por vezes duas enchentes no mesmo ano. O manda chuva lá do alto tinha tudo mal programado, devia usar fraco computador. Ao contrário do que pensavam as pessoas do resto do país, na região das cheias todos gostavam delas. Os campos adubavam dando origem a boas colheitas. Por sua vez as reservas do precioso líquida eram repostas garantindo água para os anos de seca. Os homens descansavam, bebiam uns copos e jogavam sueca ou dominó. Por sua vez as mulheres, não indo para os campos tinham mais tempo para as tarefas domésticas e assim como para tagarelar e regatear na vida dos outros. A vasta miudagem das aldeias era quem mais adorava a vinda da cheia. Todo o dia mediam a evolução na subida ou descida da água, fazendo pequenas marcas. Estas eram feitas com pedras ou paus espetados. A sua atracção pela cheia preocupava os adultos, obrigando a uma alerta constante. As estórias através dos tempos relacionadas com a cheia são muitas. Aqui vou relatar as peripécias de uma menina que podia já não existir. A água parecia ter íman para ela. Começo por dizer que ela nasceu no auge de uma enorme cheia, daquelas que entram em algumas casas até ao telhado. Numa outra cheia não muito grande a menina brincava perto da sua porta. Aí a água teria dez a vinte centímetros, nada de muito perigoso. Para ela, sonhadora, tudo que passava na corrente era barquinhos que conduzia com uma varinha feita de cana fina. No entusiasmo da brincadeira a menina escorregou e caiu na água, ficando um pingo tão molhada estava. A mãe viu, pegou na cachopa deu-lhe um ralhete e mudou-lhe a vestimenta. A menina logo que a mãe entrou em casa voltou aos seus barquinhos. Pumba! Outra vez no charco. Foi a correr para casa chorando. Levou uma palmada da mãe e nova roupa lhe foi vestida. --Não voltas para a cheia, senão levas a sério. Embora a tentação fosse muita a miuda que não devia ter mais que três anos, lá resistiu com medo da tareia. Entretanto pediu à mãe para ir ter com outra menina que vivia numa zona sem cheia. Mas ao sair de casa tropeçou e caiu numa poça e toda molhada ficou. Aquilo parecia um íman para a menina. Mas desta vez estava inocente, não tinha ido brincar para a cheia. Sua mãe ficou mesmo muito irritada, não lhe bateu, não era pessoa disso. Vestiu-lhe desta vez a roupa de dormir e meteu a menina na cama e de lá não saiu mais nesse dia. Como se comprova há grande atracção das crianças pela cheia. Agora a estória que se segue é mais séria. Numa cheia muito maior, três anos depois esta mesma menina foi salva por milagre, vamos contar… A garota estava ao postigo da porta de entrada de sua casa, em pé em cima de uma cadeira. A cheia desse ano era das maiores que há memória. A água dava pelo meio da porta, impedindo a sua abertura, contando com o poial a profundidade devia ser de quase dois metros. A rua principal era um largo rio com correntes perigosas. A menina cantarolando, brincava com a sua varinha tentando tocar tudo o que passava na corrente junto ao postigo. Na cozinha a sua mãe ia tratando da vida. Numa tentativa de tocar um objecto que passava mais distante a miúda caiu na cheia. Ninguém viu por que a rua/rio estava deserta. Tudo estava preparado para uma morte certa. Por milagre a mãe não ouviu o cantarolar e veio a correr. Por milagre ainda conseguiu agarrar a vestido da filha. Mas a correnteza e a posição não permitia que conseguisse puxar a menina para cima e para dentro de casa. Gritou a mãe em pânico mas nenhum vizinho podia ajudar, todos encarcerados em casa. Deu-se terceiro milagre. Uma lancha apareceu ao longe, coisa rara de acontecer, era um homem que ia levar medicamentos a um doente. Rápido virou o barco e remando bravamente conseguiu chegar e ajudar a mãe desesperada. Por sorte ou milagre um rapaz vizinho que estudava medicina, encontrava-se em casa, veio a correr ou a nadar, prestou os primeiros socorros à menina. Esta recuperou os sentidos e voltou à vida. --Mãezinha, era tão bonito, descer e subir. Só pensava que à quarta vez já não subia mais conforme a avó disse há tempos. Yarb, 7/12/2012

O conflito!

A noite passada estava sem sono, às escuras dirigi-me pelo tacto até à sala grande, sentei-me no sofá que fica de costas para a lareira. Aí fiquei no negro da noite pensando nos enredos das minhas fantasias para o livro “Inertes com vida! Nada me vinha à mente, por isso concentrei-me no barulho do silêncio e nas memórias do nada. Comecei a viajar no passado, como observador somente. Subitamente comecei a ouvir vozes que iam pouco a pouco subindo de tom. Era uma algaraviada difícil de entender, pareciam canas rachadas com som metálico. Apurei o ouvido, para entender as falas o que consegui com esforço. Dizia um: --Vocês são todos uns pantomineiros! O mais importante, sou eu! Sou o mais velho e o primeiro de uma longa saga. Sem nada dizer, pensei. Quem será o pateta que assim fala? Depois outra voz se ouviu acima da confusão. --Não digas disparates, já viste o teu tamanho? Se não te puserem um pedestal ninguém te vê. Raio de anão que não se reduz à sua insignificância. Sou maior que tu e represento uma cidade e tu uma vilazita. No meio do meu silêncio falei para dentro de mim. Isto está bonito, vamos ver o que vai dar. Entretanto uma terceira fala entrou na conversa. --Vocês estão cegos pela vaidade, nada valem. Um é pequeno e torto, o outro é grande mas marreco. Além disso representam um país em decadência. Igual a mim, só o meu irmão mais novo um ano, nós representamos um país imenso e belo. Sempre calado para não dar nas vistas queria ouvir para saber aonde chegaria aquela conversa da treta. Mais um entrou na liça. --Porque razão são todos uns pedantes? Para já representam uma modalidade em vias de desaparecer. Eu sim sou o maior, o meu país é pequeno mas a modalidade é universal. Alem disso sou mais bonito que vocês. Um é minúsculo e sem graça, outro grande e ferrugento, outro tem uma mão de cada cor e o outro, uma esfera armilar empenada. Aquilo estava a ficar uma tremenda confusão, começava a ficar com medo da tragédia que se sentia na noite. Então uma voz grossa se sobrepôs a todos. --Que são vocês comparados comigo? Atingi o topo da carreira e fui senhor da nação! Houve um breve silêncio. Depois começaram todos a falar ao mesmo tempo e cada vez com mais agressividade. Aos berros, aos guinchos, parecia uma batalha campal. Não aguentei mais. Precisava de entrevir antes da desgraça. Bruscamente levantei-me, acendi as luzes e dando um violento murro na mesa, decretei. --Tudo calado, seus filhos de uma oficina, o vosso mérito não é nenhum! O vosso valor é zero! Tudo o que vocês dizem ser, foi à minha custa e do meu neto. Então, num instante, todos ficaram quietos, num total silêncio, as taças, os troféus e as medalhas! Bray 8/6/2012

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Folha de papel

Esta folha de papel quadriculado, a4 de tamanho, até há pouco solitária e vazia começa agora a ganhar vida, através da seiva preta da minha caneta. A vida dela própria, vida sem rumo, nem desejo, vida da vida que há-de vir. O espaço em branco vai diminuindo ao ritmo da entrada das palavras. O papel treme de emoção e desejo, quer mais, mais e mais. Quer conhecer o prazer através das palavras que deslizam na quadrícula da folha. Folha e papel têm o destino traçado, para eles isso não tem significado. Muitas palavras, algumas de uma só letra, outras chegam á dezena. Por vezes uma só letra significa mais que extensas palavras. A folha de papel já sorri, agora já está mais composta. Sente que está cumprindo a sua função. Parir letras e construir palavras é a sua ambição, coisa que não pode fazer sem colaboração, desejos que não podem ser cumpridos, sem a tinta da caneta e a mão que a desliza. O fim da folha de papel em branco, não está longe, ela sente nostalgia nesse tão provável fim. Sente que cumpriu a missão para que foi criada, usada e abusada, ela sente o parto sem dor e fica ansiosa para conhecer o recém-parido, para testar se mereceu ter vindo à vida e esperar que alguém escreva na folha de papel solitária, que alguém seja digno da humilde folha de papel, que não mais quer do que honra na escrita feita no seu corpo. Bray, 1/6/2012 Uma folha em branco não representa nada, só tem valor após receber palavras.

A lenda das palmeiras (versão b)

Era uma vez uma Sanzala, rodeada por um bosque de palmeiras. Povoação feliz, povo saudável, mulheres graciosas plantando mandioca, homens vigorosos caçando e pescando, crianças chilreando no meio das galinhas e dos porcos. A chefia pertencia ao Soba Republicano, velho sábio que servira em jovem num batalhão Republicano quando da queda da Monarquia, razão do nome adorado por si. Homem bom que governava com mestria de Salomão. O povo respeitava-o e tinha grande adoração por ele. Todos sem excepção gostavam de vinho de palmeira o marufo, tirado por sangria que podia levar à morte da árvore. O óleo dela era fundamental para a vida da Sanzala, como tal o velho geria os processos e os tempos de cada exploração, para manter o desejado equilíbrio. Um dia uma grande tristeza se abateu sobre a Sanzala, entrando em todas as cubatas. O velho Soba já muito idoso entregou a alma à natureza deixando o mundo dos vivos. A vida continuou na pequena povoação e foi preciso nomear um novo Soba, após alguma discussão foi escolhido um jovem para o lugar vago. Devia ter sido um velho sábio. Mas o espertalhão lá conseguiu manobrar e subverter a tradição. Negro malandro, tipo convencido da sua ousadia da ignorância, alterou a rotina há muito estabelecida e deu prioridade ao fabrico da bebida que entorpece o povo. Devido à sangria descontrolada, a pouco e pouco as palmeiras foram morrendo, uma após outra. Passando algum tempo já não havia produção de óleo, a bebida por fim também se foi ao morrer a última palmeira. A euforia evaporou-se como fumo, o povo voltou a si acordando mas já não tinha força para sobreviver. Foram morrendo a começar por aqueles que eram mais fracos, acabando nos mais resistentes, algumas mulheres e crianças ainda conseguiram partir, metendo os pés no mundo caminhando na picada vermelha na procura do nada, tentando atingir o nada… A Sanzala ficou em silêncio morrendo também. À sombra de um embondeiro, o espírito do velho Soba encarnado num jovem leão chorava a sorte do seu povo… José Bray – 03/06/2000

A lenda das palmeiras (versão a)

Os meninos e as meninas conhecem a lenda das palmeiras? Era uma vez uma Sanzala muito pequena rodeada por um bosque de palmeiras e governada por um Soba sábio, a muita idade tinha-lhe dado bué de experiência e bué de saber! Era um homem bondoso, muito preocupado com o futuro do seu séquito, pequeno por sinal. A Sanzala ficava longe, muito longe mesmo, lá para as bandas do leste, no coração de África. Para complicar, a povoação estava afastada de outras iguais, muitas dezenas de quilómetros. O povo governado pelo seu líder sobrevivia com todo o tipo de dificuldades, mas com a imaginação e prudência do Soba lá se iam aguentando. As palmeiras faziam parte da vida daquele povo, óleo para a alimentação e outros fins, a seiva para fazer a bebida que eles tanto gostavam. Plantavam mandioca e no rio havia bastante peixe! O sabedor Soba controlava a exploração do palmeiral, de modo a não criar os desequilíbrios. O chefe no momento próprio indicava as palmeiras a sangrar, a sua seiva servia para fazer a desejada bebida alcoólica, não deixando haver exageros, porque para a sobrevivência do povo o óleo era mais importante, mas eles gostavam mais da bebida que lhes dava um estado de embriagues feliz. O trabalho do Soba ano após ano era não deixar a vício avançar, coisa que conseguiu, assim a vida decorreu com alguma tranquilidade! Um dia o velho Soba Republicano, assim era o seu nome em honra da oposição à monarquia, morreu! Uma grande tristeza abateu-se em todas as cubatas! Para suceder ao falecido foi escolhido não um sábio mas um jovem bêbedo, vaidoso convencido na sua ousadia da ignorância. Começou por alterar os procedimentos do velho Soba, especialmente no que respeita à colheita do óleo e do marufo. De imediato começou a sagrar as palmeiras para fazer muita bebida e andarem todos felizes. Aquele povo passou a andar sempre drogado e em grande euforia, cada dia que passava mais alcoolizados estavam, era uma tristeza ver aquela gente deitada nas cubatas e à beira do rio, sem capacidade para pescar nem plantar a mandioca. A produção do óleo diminuiu rapidamente, também ninguém se lembrava disso, estavam sempre noutro mundo, o fim lentamente começou para aquela gente…ninguém já trabalhava a não ser na sangria, pesca nada, mandioca nada. As crianças começaram a ficar doentes e a morrer por falta de substância, e os adultos também. Por fim devido às sangrias as árvores morreram e acabou a bebida, a euforia foi-se, chegou a depressão e a ressaca, agora o povo já não tinha forças para sobreviver. Continuaram a morrer os mais fracos, os restantes meteram as pernas ao caminho, tentando atingir o nada… A Sanzala ficou em silêncio morrendo também, perto, debaixo de um enorme embondeiro o espírito do velho Soba encarnado num jovem leão chorava a sorte do seu povo! José Bray – 31/05/2000

A Lenda dos Plátanos e a Princesa Moura

Tinha pouco mais de seis anos, o Inverno aproximava-se, estava um dia lindo, límpido. O azul do céu, o verde dos prados, faziam contraste com as árvores que não tinham folhas. Andava ao rabisco lá para os lados da Várzea. Durante a tarde o calor do Sol disfarçava o frio da época, o corpo sentia algum conforto. Decidi afastar-me do rio indo para as bandas da floresta que ficava para poente. Sabia que havia lá umas oliveiras e assim encheria mais facilmente o meu cabaz. Rabisco misturado com muita brincadeira, o tempo foi passando, sem pensar que os dias são curtos na época, fui-me afastando mais. Por fim o cesto ficou cheio e pesado. Regressei! Rapidamente, o Sol desapareceu lá para os lados do oceano, a noite chegou e o frio também cada vez mais intenso, a roupa era quase nenhuma e os pés a gelar nos sapatos de pele natural. O medo apoderou-se do meu pequeno corpo, olhei, a aldeia estava longe, já tinha vontade de chorar. Era noite de Lua Nova, cada vez estava mais escura e fria. O Céu era um manto negro enfeitado por uma imensidão de estrelas, brilhando como nunca tinha visto ou reparado. A povoação ainda sem luz eléctrica, já não se vislumbrava. Com o coração apertadinho, lá fui indo. Atravessei as vinhas, estas despidas de folhas pareciam um exército de aranhas gigantes. Segui depois junto ao rio, uma árvore era o retrato da morte com a sua gadanha. Finalmente cheguei à ponte romana. De repente, vi! Lá estava ela a Moura Encantada, abraçada a um dos plátanos. Fiquei parado sem conseguir dar um passo, fascinado mas sem medo. Ela sorriu, fez um gesto para me aproximar, cheguei a um metro e a jovem estendeu-me a mão. Uma luz vinda de cima iluminava-lhe o rosto, era linda, feições muito correctas, olhos pretos, cabelo da mesma cor e pele muito branca. Deu-me um beijo e falou para os plátanos. «Já viram um menino tão bonito e bonzinho?» As grandes árvores, parecendo tocadas pelo vento, ondulavam em sinal de confirmação. Após fazer mais uma carícia, com um lindo sorriso mandou-me para casa, mas antes com voz muito doce sussurrou. «Se tiveres saudades minhas vem até aqui nas noites de Lua Nova, cá estarei à tua espera.» Cheguei são e salvo ao casebre, mas não contei a ninguém o que tinha visto. Nas noites de Lua Nova lá ia ver a minha amiga. Um dia levei comigo o meu primo António Luís, ela estava lá mas o meu parente não a conseguiu ver, olhou para mim com uma expressão de tristeza e reprovação, desapareceu como uma bolha de sabão que rebenta. Voltei lá sozinho, mas a Moura Encantada nunca mais apareceu. A partir daí, sempre que podia ia para o junto dos quatro gigantes, sentava-me na ponte e eles contavam-me histórias de encantar. Falavam de coisas passadas nas suas longas existência. Um dia, parti para África, criei família e os anos passaram. Regressei à pátria dois anos após a entrega da última colónia portuguesa do continente negro. Logo que me foi possível passei na aldeia e fui visitar os meus amigos plátanos que tão bons foram para mim quando era um menino e um pobre menino, tinham-se passado trinta anos. Fiquei abismado quando cheguei ao rio! A velha ponte romana já não existia e dois dos plátanos tinham sido assassinados. Abracei os sobreviventes, sentei-me na nova construção, eficiente mas sem vida. Pouco depois, uma brisa começou a fazer as folhas sussurrar, hipnotizado comecei a sentir e ouvir através de todos os poros do meu corpo e alma. Os dois gigantes transmitiam a história que vou resumir e contar à minha maneira. Há muito tempo, ainda Jesus da Nazaré não filosofava nas pedras da Palestina, havia um vale maravilhoso no oeste da Ibéria. Um pequeno rio de águas límpidas, cheio de peixe, fazia companhia ao vale da serra ao oceano. O Sol nascia nos montes e tinha o seu ocaso na floresta junto ao mar, banhando com o seu calor as boas terras do vale que tudo davam. Nesse paraíso terrestre os homens viviam desde os confins do tempo. Estavam sempre a chegar novos povos, uns morenos e outros louros, uns bárbaros, outros cultos. Iam-se misturando com os naturais e todos se adoptavam à vida do vale. Um dia o invasor romano chegou, o maior império da altura, metade do mundo conhecido estava sob a sua alçada. Bons militares, excelentes políticos e engenheiros eficientes. Construíram cidades, estradas e pontes. No vale construíram uma estrada e para atravessar o rio uma ponte, a ponte romana da nossa história. Depois vieram os bárbaros, a pouco e pouco expulsaram os romanos, embora muitos tenham ficado e assimilado no contexto local. Um dia os árabes atravessaram o estreito e invadiram a Ibéria, conquistando quase tudo em 711, menos as Astúrias. Era um povo muito culto, com uma arte bastante desenvolvida, gente asseada e profundamente tolerante relativamente aos povos conquistados. Alem disso, grandes amantes da natureza. Nessa época uma menina de seis anos, uma bela princesa moura, plantou quatro plátanos, junto à ponte romana, um em cada canto. Cresceram com alguma dificuldade. Durante vinte anos, a princesa protegeu os irmãos que pouco a pouco se transformaram em gigantes. Antes de morrer, a princesa exigiu que queria ser enterrada em campa simples, junto dos seus meninos. Consta que a linda moura aparecia nas noites de lua nova, para os agasalhar com o seu carinho. Havia esta lenda nas redondezas, mas nunca ninguém falou que tinha visto a princesa, mas eu sei que é verdade. Século a pós século, os irmãos foram acompanhando a vida do vale. Em especial sentiam a alma das duas aldeias, uma a leste outra a oeste. As pessoas ao passar sentavam-se na ponte, para descansar, fugir ao calor e à chuva ou simplesmente por gostarem de estar ao pé das árvores. Aí, os aldeões, ficavam com os seus pensamentos e os irmãos captavam esses fluidos e tudo sabiam da vida deles e dos outros. Os animais, em especial as aves, vinham acolher-se na imensidão da sua protecção, para fugir ao calor, frio, ou qualquer predador, muitos faziam aqui o seu ninho. Ali havia um equilíbrio profundo, a deusa da natureza e a princesa moura, faziam a protecção do vale, do rio, da ponte e de tudo o que tivesse vida. Através dos tempos, continuaram as invasões, as guerras e as revoluções! Ainda no tempo dos árabes, regressaram pouco a pouco os bárbaros, mas agora convertidos a Cristo. Aconteceram inúmeras guerras com o vizinho espanhol, guerras civis pais contra filhos e irmãos contra irmãos. Vieram as invasões francesas, queda da monarquia e implantação da república. Por fim o estado novo. Gerações e gerações nasceram e morreram. Sobre a ponte passaram multidões através dos tempos, os quatro irmãos tudo viram, tudo ouviram, tudo sentiram… Um dia chegou o chamado dia da liberdade. Os quatro irmãos, disseram uns para os outros. Agora é que este povo vai ser feliz, vai haver mais justiça social, todos vão ter possibilidade de estudar. Não vai haver, extremos, nem excesso de riqueza nem pessoas a passar fome. O meio ambiente vai estar protegido e os monumentos recuperados, vai ser um povo com H grande. Mas! O rio começou a ficar poluído, os peixes a boiar. Os campos abandonados. Os jovens a passar dizendo só asneiras faziam os plátanos corar de vergonha. Os estudantes começaram a ser doutores e engenheiros sem saberem escrever um texto ou saberem a tabuada. Os quatro irmãos, a caminho dos dois mil anos, começaram a ficar tristes e desiludidos com os humanos, mal sabiam eles que o pior estava para vir. Um dia chegaram uns senhores bem vestidos, vieram tirar medidas e mais medidas. Eram engenheiros mas as conversas acabavam todas com C. e no meio além do C. também entrava o F., a palavra Pá aparecia sempre em todas as frases. Eram os filhos da revolução. Tempos depois apareceram as máquinas… Dois dos irmãos, os do sul, foram assassinados, séculos de presença e de solidariedade destruídos numa manhã de grande calor. Depois foi a velha ponte romana, com quase dois mil anos de serviços ao povo. Pum!.. Pum!.. Pum!.. Por fim, toda a engenharia utilizada há tanto século ruiu sobre a batuta dos libertadores assassinos! O vale ficou mutilado e muito mais pobre. Levantaram-se algumas vozes, mas foram logo apelidados de reaccionários e fascistas. No lugar da antiga ponte outra foi colocada, ferro e betão, feia, burra e sem vida. Os dois irmãos, lá continuaram a cumprir a sua missão de tantas centenas de anos. Em baixo o rio corre poluído, passando sob a ponte que cumpre a sua missão mas sem alma e sem classe. Quanto à princesa, devido ao desgosto, nunca mais apareceu junto aos plátanos, excepto quando lá vou em sonho nas noites de Lua Nova. Regularmente, vou visitar os meus velhos amigos. Após um longo abraço, ouço os seus lamentos, chorando os irmãos assassinados. Tudo isto transmitido pelo sussurrar das folhas dirigidas pelo sábio maestro que é o vento. Marinha Grande, 06 de Maio de 2003 José M. Bray ´

Shane vai ao mercado!

Shane vai ao mercado! Shane saiu naquela manhã da sua casota com destino pensado. Estava bastante frio, mas o belo macho deu uma corrida para aquecer. Distraído, por pouco não foi atropelado por um automóvel de luxo que passava a cem à hora. O bruto Tedy encostado a um largo portão riu-se do amigo e disse na galhofa. --Então amigão queres ser passado a ferro logo pela manhã? Se calhar vais a fugir da bófia. --Da polícia foges tu que andas sempre na roubalheira. Vou correr para aquecer e também para chegar depressa ao meu destino. Tenho uma missão a cumprir e se chegar tarde, tarde será para a fazer como deve ser. --Continuas um filósofo Shane, mas a filosofia não enche a barriga. Eu quero é boa vida com muita carne. Daqui a pouco vou tentar roubar um bom naco ali no talho do homem gordo, ou então tirar do saco de alguma cliente. --Realmente continuas o mesmo ladrão de sempre, o teu fim não vai ser bom. --Olha parvalhão, pode não ser bom o meu fim, mas ao menos vou de barriga cheia. --Adeus e tem juízo Tedy, vou à vida que já me atrasei. Shane rápido em nova correria foi para a sua programada missão. Dez minutos depois estava no local aonde queria estar presente. Mesmo a tempo. O enorme camião estava nesse momento a chegar. Por pouco não perdia a chegada das novidades, Quem chegava cedo podia escolher as melhores mercadorias. Os mandriões tinham de se sujeitar aos restos. Os homens do camião que eram dois, disseram um para o outro. --Olha o cliente do costume, nunca falha. --É verdade, é sempre o primeiro a chegar, os outros vêm mais à tarde. Fazendo um grande estardalhaço a longa viatura descarregou a sua carga, depois os homens entraram no camião que lentamente arrancou. --Boa sorte Shane até manhã. Shane então rápido mas com muita concentração escolheu os artigos que lhe mais agradaram. Teve muita sorte, alimento bom e um peluche bonito cor-de-rosa foram as mercadorias escolhidas. Agora o tempo já aquecera bastante e o Shane belo exemplar canino regressou feliz à sua casota, com um belo naco de carne e um boneco para o filho ainda cachorro brincar. Tudo adquirido, sem roubar, na estrumeira da cidade. Yarb, 6/12/2012

Pai Natal oportunista!

A menina estava à janela do seu pequeno quarto, seu e do irmão João menino de cinco anos. A casa era da sua avó Gertrudes, uma velhinha com quase oitenta anos. Era noite de natal, enquanto a avó fazia as filhoses e o João brincava com as molas da roupa seu brinquedo favorito, Ana foi para a janela sonhar com uma possível prenda dada pelo Pai Natal. A menina de oito anos ainda acreditava. A noite embora muito fria estava límpida, as estrelas cintilavam na abobada celestial e a lua ria-se para Ana fazendo caretas ao mesmo tempo. Os pais das crianças há muito que tinham partido para uma longa viagem. Isto era o que a avó dizia, mas a Ana sabia que eles não voltariam nunca, tinham falecido devido a uma epidemia que assolara a região. De toda a família só sobreviveram os dois irmãos e a avó materna. Ana nunca disse ao irmão o que sabia. Para quê fazer sofrer o rapazinho que só tinha cinco anos. --Ana, anda para a cozinha que aqui está quentinho. Sai da janela rapariga, ainda te constipas. --Avó, o céu está lindo, a lua está a meter-se comigo. Já vou! --Avó, posso comer um frito? --Ainda não João, estão muito quentes. Vem para o pé da avó. Felizmente, aquela família embora pobre, não passava necessidades básicas. A velhota tinha alguns meios que geria com parcimónia para garantir a sobrevivência dos seus amados netos até eles poderem voar por si. Gertrudes pedia todos os dias a Deus que lhe desse anos de vida para cumprir a sua tarefa. Alimentação e roupa as crianças tinham, mas brinquedos não, era um luxo no pensar da avó. Uns livros para eles aprenderem e pouco mais. As crianças com a sua imaginação inventavam os seus brinquedos. Ana sonhava com uma grande boneca e o João com um trem de ferro. Brinquedos que eles viram há dias numa loja da vila quando a avó os levou ao médico para tomarem as vacinas contra a gripe. Algum tempo após a o chamamento da velhota, Ana decidiu-se a sair da janela, mas antes deu mais uma olhadela ao céu lá para os lados do pólo norte. Subitamente reparou numa estrela cadente que atravessava o espaço na sua direcção, num passeio nunca terminado. As estrelas cadentes não funcionam assim, pensou a miúda habituada a assistir ao fenómeno. Cada vez estava mais perto as luzes e agora já ouvia o som de muitos guizos. Confirmou que não era nenhuma estrela, mas sim um trenó todo iluminado puxado por seis grandes renas. O trenó cheio de grandes sacos era conduzido por um velhote gordo de longas barbas e vestido de verde azeitona. Ana bateu as palmas de contentamento a que se juntou o mano João. Afinal o Pai Natal sempre veio! Ana já se via abraçada à sua boneca. --Boa noite meninos! Que fazem ao frio? --Estávamos à sua espera Pai Natal, mas pensávamos que chegava mais tarde. Entretanto a avó Gertrudes juntou-se ao grupo, incrédula pelo que estava a ver. --Trás os nossos brinquedos? -- Não meu menino, não venho a contar convosco. Não estão na lista dos brinquedos. A resposta do velho caiu como uma bomba, as crianças perderam a alegria e pouco faltou para começarem a chorar. --Desci e parei na vossa casa para pedir ajuda, tenho uma rena doente, muito constipada. Precisava de um chá de limão muito quente e um comprimido forte. Minha senhora por acaso pode ajudar-me a tratar o meu animal? --Sim Pai Natal, terei o maior prazer. Entre que vou já ferver a água. Aproveite para tomar um leite quentinho e comer umas filhoses. O ancião aproveitou a oferta, bebeu leite de cabra e deglutiu seis filhoses, a rena com o chá de limão com mel mais um comprimido forte, recuperou da constipação. O velho preparou tudo para partir e recomeçar sua imensa tarefa. --Obrigado minha senhora, vamos embora porque a minha rena já está boa. As filhoses estão uma maravilha. Deus há-de de lhe dar a paga. As crianças que me desculpem, mas não trago brinquedos a mais. Adeus e bom natal. Aparelhada a rena recuperada, luzes acesas e os guizos tocando o trenó elevou-se aos poucos e desapareceu no horizonte a caminho da cidade dos ricos. A boa anciã ficou perplexa com a atitude do Pai Natal. Ana e João chorando perderam a fé que tinham no velho das barbas brancas e cara bonacheirona. Gertrudes abraçou e beijou os netos tentando animá-los pela decepção apanhada. Sempre sorrindo foi cantando uma canção de amor e fazendo sem parar festas às suas crianças. --Meus queridos vamos à ceia, chamem o cão e o gato para nos fazerem companhia. Depois vamos comer filhoses e beber leitinho. A avó também tem chocolates para comermos. Ana e João lá animaram e foram para a cozinha. Duas horas depois com a barriguinha cheia, foram todos com uma botija de água quente para cama. Mas antes a Ana perguntou à velhota. --Avó, pomos na mesma as meias na lareira? Acha que merece a pena? --Ponham sim queridos, pode ser que aconteça um milagre. Pode ser que o Pai Natal tenha um rebate de consciência. Finalmente a casa ficou em silêncio, só se ouvindo o crepitar do lume na vasta lareira da cozinha. De manhã, após o galo cantar e várias vezes tornar a cantar, Ana e João levantaram-se e ainda estremunhados foram até à cozinha. Dona Gertrudes já lá se encontrava preparando o pequeno-almoço para os netos. Foi então que as crianças repararam nos embrulhos que estavam na lareira, dentro das meias penduradas na noite anterior numa réstia de esperança. Uma expressão de felicidade estampou-se no rosto dos manos. Ao abrir o embrulho Ana deu pulos de alegria ao abraçar a sua boneca. Por sua vez João bateu as palmas de contente antes de pôr a funcionar o seu trem feito em ferro com todos os pormenores de uma máquina a sério. Afinal o Pai Natal sempre se lembrara deles, assim pensou feliz a menina. A um canto da cozinha na leve escuridão com o cão e o gato ao lado, dona Gertrudes sorria. Nunca diria a verdade aos netos, era bom manterem o mais possível a fé no Pai Natal, mesmo sendo este um oportunista. Yarb, 11/12/2012
Dedicado ao menino Alexandre nascido em 2012!

Natal, a vitória do príncipe M!

O príncipe M tinha má fama, as multidões não gostavam dele. Líder charmoso, risonho e irónico, era mesmo uma simpatia, mas não dava nada a ninguém a não ser castigos. Tinha no seu reino muitos condenados, mas a culpa não era dele, mas sim dos prevaricadores. Por sua vez o príncipe B era a antítese do outro, tinha boa fama, não dava maus tratos, embora não fosse amistoso e pouco desse aos outros. Aproximava-se o Natal, faltava pouco mais de um mês. As crianças de todo o planeta já sonhavam com o pai natal. Os ricos tinham a certeza de terem prendas, os pobres só a esperança. Naquele ano o príncipe M decidiu dar uma volta no mercado dos seguidores e dar uma bofetada de pelica ao príncipe B. M elaborou um plano para fazer a conquista de clientes ou seja ampliar a sua influência. Mobilizou os condenados do seu reino e deu-lhes instruções muito concretas. A tarefa era fazer milhões de brinquedos. As condenadas fêmeas ficaram com o trabalho de costurarem imensa roupa. O mês foi muito bem aproveitado, os vastos armazéns do príncipe M ficaram a abarrotar de tudo. Eram, bonecas, soldadinhos de chumbo, carruagens, barcos e muitos outros brinquedos. Roupas eram também milhões de peças, vestidos, calças, camisolas, era um não acabar. Claro que não faltava o calçado variado. A grande tarefa no reino de M durou um mês, terminando a dois dias do Natal. Durante a produção os condenados tiveram direito a melhor rancho e foram aliviados das torturas. O príncipe B também deu ordens para os seus artesãos fazerem brinquedos e as costureiras roupas. Tudo em quantidade reduzida. Pensava o B ter o mercado controlado, então fez só o suficiente para manter a posição. Pensava que não teria concorrência. Sabia que o príncipe M não era dado aquelas beneficências. Mas B estava completamente enganado nesse ano. Os seus espiões não estiveram à altura e desatentos não deram por nada. Estavam todos confiantes na sua superioridade. Na noite de Natal o príncipe B deu as ordens do costume. Levar as prendas a todas as crianças abastadas do reino, era preciso engraxar as famílias poderosas. As crianças pobres não levavam nada porque já estavam habituados. O príncipe M deu as instruções finais aos seus condenados. Estes vestidos a rigor, montados em bichos alados partiram com grandes sacos por todo o planeta a distribuir brinquedos e roupas pelas crianças pobres. Com esta estratégia o príncipe M derrotou em todas as frentes o príncipe B. A sua fama e prestigio subiu em flecha. Nesse ano foi o melhor Natal de sempre para os desfavorecidos. No seu trono o príncipe M, o Diabo, sorria de prazer ao ver no outro trono o príncipe B, Deus, com umas grandes trombas pela derrota sofrida. Yarb, 9/12/2012

Milagre de Natal!

Milagre de Natal
O jardim estava quase vazio, uma velhinha estava sentada no banco mais central junto ao denso arvoredo. Cheia de frio recordava o passado longínquo em que sentada naquele mesmo banco via os meninos e as meninas filhos de gente abastada brincarem com lindos brinquedos e vestidos a rigor, bonitas roupas e quentes. Enquanto ela, menina, tiritava de frio no seu roto vestido de chita e chinelas de pobre nos seus pequeninos pés enregelados. Era nesse distante dia, Natal, como Natal era neste dia em que ela via os meninos e meninas netos dos outros meninos e meninas de outrora, brincando com belos presentes e ainda mais vestidos a rigor. Pouco tempo lhe restava de vida, ela sabia isso. Continuava pobre como pobre sempre fora desde menina. Agora triste e saudosa recordava o filho que partira há muito para o fim do mundo. Poucas notícias recebera e dinheiro ainda menos. O dinheiro tinha dado jeito, mas as notícias eram mais importantes. Coitada não sabia ler nem escrever, precisava sempre de alguém para a ajudar, mas as pessoas são muito egoístas e ela tinha vergonha de pedir. Soube um dia que o filho morrera. Recordou o amor da sua vida, falecido prematuramente devido às agruras da vida. Então a velhinha chorou, chorou, chorou…entretanto adormeceu enregelada no banco do jardim. Sua alma preparava-se para partir… foi então que suaves toques na sua enrugada mão impediu o abalar da alma. Recobrou os sentidos, abrindo aos poucos os olhos já cansados. À sua frente uma linda menina igual à outra de há setenta anos, sorrindo, estendia-lhe uma rosa branca. --Sou eu avó! Vim de muito longe para a beijar. A menina abraçou e beijou a velhinha que feliz partiu para a eternidade. Yarb, 6/12/2012
Dedicado à menina Ana Maria, minha irmã, 1951/1953!

O Casal do lobo!

Era natal, um rapaz da cidade passeando a cavalo parou numa pequena aldeia para a montada descansar. Como era muito tarde decidiu pernoitar na pequena povoação. Curioso reparou numa casa em ruínas no cimo de um monte. A velha casa ficava isolada da pequena aldeia cerca de quinhentos metros, ou seja dez minutos a andar bem. Ficava num pequeno cabeço, donde se avistava uma multifacetada paisagem incluindo a pequena povoação. Fora nova a habitação há mais de duzentos anos, agora não mais era que uma casa em ruínas, sem qualquer tipo de vida. Era excepção a presença de um visitante que lá pernoitava de tempos a tempos mas que ninguém via. O povo da aldeia chamava ao casebre “O Casal”. Sim, era “O Casal do lobo”, assim chamado pelo tio António, devido à estória contada há muito pelas pessoas mais idosas do lugar. As gentes da região nunca subiam ao cabeço. Diziam que estava embruxado! Vou tentar contar a estória conforme relato do tio António velhinho com mais de cem anos, questionado pelo rapaz da cidade que entrara na taberna. --Tio António conte lá a sua versão da lenda do Casal do Lobo”. --Rapaz, a minha não é versão, é a estória verdadeira. O que dizem para aí esses papalvos do bruxedo, é uma treta. Têm medo de lá ir, mas eu não! Não vou lá porque não tenho pernas para subir o monte, mas até há dez anos ia lá com regularidade. Ainda conheci uma das crianças da lenda, já com quase oitenta anos, tinha eu uns oito ou nove anos na altura. --Ainda bem tio, já vi que vim ter com a pessoa certa. Conte, conte tio António. O elegante velho de farta cabeleira branca, barba e bigode desgrenhados mas mais escuro que o cabelo, sorriu maliciosamente fazendo o jovem esperar. Enquanto fazia o seu cigarro de onça beberricou a sua aguardente lentamente. Estava o gozar o momento… --Então foi assim. Há muito tempo, talvez para lá de cento e cinquenta anos vivia na casa do cabeço uma família feliz. Pai, mãe e seis filhos, o mais velho com dez anos o mais novo bebé. Um dia a desgraça bateu à porta daquela família, o pai foi à caça e não mais voltou. Dizem que foi morto pelos lobos, mas ninguém tem a certeza. A partir desse momento a vida complicou-se muito naquele lar e a miséria bateu forte naquela casa. A pobre mãe tudo fazia para sobreviver mas a luta era inglória. Faltava tudo, menos a lenha para pôr na lareira e se aquecerem. Mas lá foram sobrevivendo, muitas vezes à custa de alguma alma bondosa. Naquela noite de Natal de há muitos anos, todos estavam à volta da fogueira comendo pão de milho e um pouco de galinha oferecida por alguém de bom coração, o lume forte dava luminosidade à divisão comum, as crianças olhavam fascinadas as labaredas e sonhavam com coisas boas, primeiro pensavam em comida, depois roupa e por fim a alegria de brinquedos. A mãe ainda jovem, e mulher que fora bonita, tinha agora as marcas do sofrimento patentes no seu rosto. Chorava em silêncio. --Em dado momento devia ser meia-noite, sentiram arranhar na porta. Ficaram em pânico. A mãe levantou-se pronta para defender as suas crias, pegou numa tranca e foi à porta. --Quem está aí? --Nada, a não ser um novo arranhar na madeira carunchosa da porta de entrada. A medo entreabriu uma greta, com a moca pronta para a luta. Mas que viu defronte dela? Neste ponto da narração o tio António calou-se, olhando para o rapaz tentando perceber as suas reacções. Encheu mais um copo de aguardente e fez outro cigarro. Ficou em silêncio como a pensar como continuar. O rapaz impaciente não se conteve. --E depois tio António? --Calma rapaz, és novo ainda podes esperar, eu é que já não estarei cá muito tempo, mas ainda é o suficiente para acabar esta estória. Entretanto meia aldeia rodeava o ancião e o jovem curioso. O velho de repente recomeçou a sua narrativa. --Defronte da jovem mãe, um enorme animal arrastava-se e olhava com uma expressão de súplica, via-se que estava muito doente. Lá fora era só gelo e o pobre lobo branco estava moribundo. Condoída a mulher deixou a fera entrar. Esta arrastando-se foi para o pé da lareira. As crianças não tiveram medo e num acto de grande fraternidade deram um pouco da sua pouca ração, diga-se de passagem mais osso do que carne. --A mãe dos miúdos fez então um chá de ervas que ela conhecia bem, todos beberam e foram para as suas enxergas. A mulher ficou junto ao lume, vigiando tudo e todos, ao mesmo tempo que recordava o seu grande amor, o pai dos seus filhos. Por fim de cansaço adormeceu! Neste ponto o nosso tio António voltou a fazer uma pausa. Estava feliz por ter tanta gente a escutar a sua narração. Costumavam chamar-lhe louco varrido e outras coisas piores. Talvez porque o rapaz da cidade ouvia com toda a atenção, os outros levavam a estória mais a sério. Alguns velhos reclamaram. --Oh António conta lá o resto! Ele suspirou, um golo de aguardente e uma fumaça e continuou. --De manhã, todos acordaram cedo para verem como estava o lobo branco, contudo o animal não estava lá mais. Ninguém entendeu como saíra a fera. Estava tão doente, e como abrira a porta? Esquisito… Depois olharam melhor para a sala comum e ficaram abestalhados! Em cima da velha mesa via-se comida e da melhor. Aos pés das enxergas roupa para todos e junto à lareira seis brinquedos sobressaíam. Mas do lobo branco nem sinal! Novamente o velho se calou! E não parecia querer continuar! Mas depois de muita insistência ele declarou --Na terra ninguém acreditou e declaravam que o casal estava embruxado! Mas não era bruxedo eu sei! Segundo me disse o tal velho, ainda eu era um miúdo. Em todos os anos que se seguiram e até eles serem todos adultos, aconteceu o mesmo. --Oh tio António, isso são lérias! Aquilo não passou de bruxedo! Assim falou o tio Rezinga sempre no contra. Depois todos partiram para casa menos o rapaz da cidade. --Tio António, está tudo dito? --És esperto jovem, não contei tudo a estes paspalhões. Se me levares a cavalo anda comigo ao Casal do lobo. E foram, perto das ruínas esconderam-se atrás de um penedo. Por volta da meia-noite começaram a ver a claridade da lareira e a ouvir uma algazarra de crianças. Para o espanto do rapaz da cidade, um grande lobo branco arrastou-se até á porta da casa arranhando a madeira. A porta abriu-se e o lobo entrou! Yarb, 7/12/2012

O rio da minha aldeia!

O rio da minha aldeia não é rio é ribeira, lá mais acima não é ribeira é riacho, um pouco antes só fio de água cristalina onde só navegam barcos de papel, mas o rio da minha aldeia que nem rio chega a ser tem nome de rio, ao fugir da minha aldeia passa a rio mas deixa de ter nome de rio passa a ter nome importante, vaidoso vai para o mar mas nunca lá chegará, o rio da minha aldeia que ao lá passar não é rio mas ribeira com nome de rio, morre na areia e deixa de ser rio o rio da minha aldeia. Bray, 21/10/2011

Vento do Oeste!

Vento do Oeste!

Vento do Oeste; acaricia meu rosto, aquece meu coração, purifica minha alma. Vento do Oeste; leva-me flutuando entre a terra e a lua aos plátanos da minha infância. Vento do Oeste; sopra com ternura e leva-me a ver as coisas belas da tua zona minha pátria. Vento do Oeste; leva-me ao carvalhal, ao bombarral, ao vimeiro, ao montejunto, corujeira, vilar, vilanova, cadaval, tojeira e mais lugares sagrados. Vento do Oeste; leva-me nas tuas asas, por serras, vales e rios à minha aldeia, local do meu nascimento. Vento do Oeste; leva-me a ver o moinho, a ponte, a fonte, a capela, o rio, e tudo o que a minha memória arrecadou. Vento do Oeste; leva-me a ver quem amei e não esqueci. Vento do Oeste; leva-me a ver as vinhas, pereiras, macieiras e figueiras que mataram a minha fome quando menino. Vento do Oeste; leva-me a ver os entes queridos que já partiram desta vida, mãe, irmã, primos, tios, padrinho e avós. Vento do Oeste; leva-me a ver os animais que amei, em especial o Tejo, cão grande, amarelo e pachorrento. Vento do Oeste; leva-me a ver as minhas memórias de menino pobre e abandonado. Vento do Oeste; suaviza minha alma e leva-me a ver a minha campa no cemitério!

ZM 9/4/2012






A morte da caneta!



Esta elegante caneta está a chegar ao seu destino final, mais palavra menos palavra e a razão da sua existência terminará, ou seja morrerá a sua alma. Mas enquanto tiver tinta ela cumprirá a sua missão. O Deus que é o ser que a manobra tem de estar à altura da alma desta moribunda esferográfica de seu nome BIC. Vai partir sem fama nem glória, mas mesmo que a escrita seja sublime, ninguém irá dar elogios à nobre caneta que tal tinta tem, melhor tinha. Mas ela vai resistindo como se o fim não estivesse perto. Não chora, não geme, nem reza ao seu Deus para que a não deixe partir. Ela vai-se findar, mas vai fazê-lo com toda a dignidade, mostrando ao mundo das canetas quanto gloriosa foi a sua existência e como cumpriu a sua missão de caneta. Enquanto outras, muitas outras, uma quantidade sem fim ficam eternamente infecundas, ao ponto da sua alma secar sem dar nada ao mundo. A agonia continua e ela não se queixa, o esvaziar não pára e ela continua na sua viagem até ao fim como se o seu destino fosse algo sagrado para o seu corpo, no futuro inútil e sem ideias. Caneta que tem direito a um poema final de consagração devido à sua partida para o mundo do nada, mas que a sua alma negra neste caso deixou no quadriculado deste caderno, que a aceitou e acariciou com a delicadeza do seu epiderme de papel reciclado a caneta que foi amada. Também amou com o negro da sua tinta, da sua alma e da ponta do seu corpo, estas folhas com imenso carinho, fazendo amor puro e sem complexos nem ciúmes.

Caneta que vais morrer
Negra é tua alma
Negra de pureza
Em corpo transparente
Inútil no partir, útil no parir
De pura alma negra
Palavras são teu valor
Palavras teu testamento
Céu, purgatório ou inferno?
Nada, nada e nada!
No seu adeus,
Esta caneta moribunda,
Está acima de Deus!

Caneta não está feliz, porque o poema não reproduz o seu viver. Caneta não está feliz, ansiava por igualdade para todas as outras canetas, que nada têm mas nada fazem para ter. No aproximar do seu fim está feliz porque ao morrer sente no corpo a mão do seu Deus que afinal foi o seu mentor e o seu amante que a entregou ao papel num acto de sacrifício mas de muito prazer e desprendimento intelectual. Caneta, sua alma, papel e mão de Deus, amaram através de muitas páginas de aventuras sem fim em verso e prosa. Prazer infinito dos filhos paridos pela alma negra desta caneta que parte para a eternidade com a certeza do dever cumprido.
Bray 4/5/2012
Ao verificar que a minha caneta estava a chegar ao fim apeteceu-me escrever-lhe este requiem de despedida.