quinta-feira, 30 de junho de 2016

Cooperantes - O dia 28 de Junho de 1976

21 - O dia 28 de Junho de 1976
Era domingo, o casal Castro tinha passado a fim de semana em casa, porque não havia condições para sair. À missa não iam porque os meus amigos são ateus e por isso muito afastados das coisas da religião. O Alberto podia no sábado ter dado um salto à Academia de Xadrez que distanciava pouco mais de trezentos metros da sua casa, mas o momento não era oportuno, ele nem pensar, deixaria a Inês sozinha.
A noite vinha aí e com ela o recolher obrigatório. Há muito que esta lei estava implementada. As noites eram iluminadas pelas balas tracejantes que saíam para o céu, disparadas em todos os musseques da capital. A sinfonia das balas mais parecia foguetes em arraial de festa popular.
Está a dar-me um prazer imenso escrever este texto, enquanto oiço mornas cantadas por Cesária Évora, adoro esta música que meus pais me ajudaram a amar. No fim desta narrativa sobre o 28 de Junho de 1976 vão entender o porquê de me sentir feliz. Voltemos ao texto…
A partir de certa hora, as ruas, avenidas e largos de Luanda eram de um absoluto vazio, só quebrado pela passagem das patrulhas militares. O recolher obrigatório era a única forma das autoridades conseguirem alguma ordem na cidade. Havia milhares de soldados fora dos quartéis, desenquadrados de um qualquer controlo. Depois ainda havia a bandidagem, com armas distribuídas pelo movimento no poder quando foi de sua conveniência. Agora tinham uma batata quente entre as mãos, muito mesmo, a escaldar.
A Inês tinha uma barriga enorme, o tempo de o bebé ver a luz do dia ou da noite estava aí, ou seja, os nove meses estavam atingidos. Por tudo isto as águas podiam rebentar a qualquer momento. Quem viria aí, seria menino ou outra menina? Nesse tempo ainda não era normal saber o sexo devido à falta de tecnologia, ainda mais num país em que faltava tudo.
Alberto de Castro andava preocupadíssimo com o que poderia acontecer, tanto à sua companheira como ao bebé. A Inês além de preocupada andava cheia de medo. No fundo estavam os dois receoso, por diversos motivos.
Toda a gestação tinha sido muito complicada, uma aventura perigosa. Falta de uma alimentação adequada, falta de assistência médica, falta de família, falta de tudo.
Em Luanda nessa fase só havia um médico de mulheres, falo de um doutor verdadeiro. Era o velho Viriato, pai de muitos filhos. Como estes se recusaram a abandonar o seu país. Bom pai e médico competente: ficou firme no seu posto. Um seu filho morrera nas confusões da guerra da Independência entre os outros movimentos. Os irmãos além de baterem o pé para ficar foram servir no exército, eles como comandos elas como enfermeiras.
O doutor Viriato fazia o que podia, mas esforçado, dando assistência dia e noite, muito acabava por fazer, mas pouco para tanta necessidade. A Inês foi lá duas vezes, no resto do tempo esteve entregue ao destino.
A gravidez da Inês veio no momento mais inoportuno, cerca de dois meses antes da independência de Angola. O casal embora sabendo o que os esperava, decidiram assumir. Alberto de Castro insistiu com a Inês para vir para Portugal, mas ela recusou com firmeza. A filha mais velha do casal, já estava em Portugal entregue a familiares, era complicado chegar com mais uma criança, ainda mais, não tendo os Castros bens na Europa, nem forma de subsistir financeiramente.
Naquela época em Portugal qualquer branco regressado de Angola era peçonha para os imbecis da metrópole. Ser retornado como chamavam aos refugiados, era um estigma.
O mais curioso é que a Inês não era muito de engravidar. Na brincadeira ela dizia aos amigos. – A culpa deve ser da Toca na rua Silva Porto, aquela casinha era muito íntima, muito propícia para o amor! Ou então era a nossa menina que nos estava a guardar, foi preciso ela partir para acontecer isto.
Na verdade a menina partira para Lisboa no verão quente de 1975 e a gravidez aconteceu a seguir.
O tempo foi passando com muitas dificuldades, muitas frustrações, com o fim de utopias. Aos poucos o Alberto Pereira de Castro e Inês de Castro foram perdendo a esperança naquela treta toda.
O casal entretanto foi-se mexendo e acabou por descobrir uma parteira moradora no bairro de Alvalade. Tratava-se de dona Madalena mulher valente e determinada, dona de uma vivenda de grande valor, não queria partir para a não perder. De imediato colocou-se ao dispor dos Castros para ajudar no momento fulcral, do milagre da vida. A distância entre as residências não distanciava mais de quinhentos metros.
O enxoval para o bebé era pobre e exíguo, baseado principalmente nas roupas guardadas da mana, para o que desse ou viesse. Era tudo muito difícil, muito mesmo! A Inês passara grande parte da gravidez com o mesmo vestido feito não sei por quem.
Nesse Junho o casal ainda pensava ficar em Angola, pelo menos um tempo para tentar angariar umas massas que lhes pudesse mudar a vida para Portugal. Para isso o Castro negociara com a sua empresa regressar após fazer um tempo para garantir a continuidade da empresa em Angola.
Contudo o casal já tinha decidido que após o nascimento do bebé, tratariam logo da papelada para mãe e o pequeno ser, partirem para Lisboa, seria uma temporada para sua segurança. Depois se a coisa melhorasse regressariam.
Como todos sabemos tudo correu a favor dos Castros. A bela e extrovertida Inês nunca mais regressou, ficando o Alberto de Castro em Angola até fins de 1977, sozinho, sem mulher e filhos. Inês tivera a sorte de retornar ao seu antigo emprego. Mas não nos antecipemos.
No sexto mês da gravidez, ainda os Castros não tinham desistido de Angola, no quinto andar do seu prédio vagou um apartamento maior, que até dava para a frente do prédio. Tinha mais uma divisão, quem partiu deixou o dito quarto mobilado. Era de uma menina porque os móveis eram em cor-de-rosa, por isso ideal para a filha se regressasse. Com muita pena da casa anterior e do seu pôr-do-sol, os Castros mudaram-se. Era uma boa casa, num excelente prédio com elevador a funcionar e gente decente a morar. Os Castros entusiasmaram-se e a mudança foi motivo de alguma alegria.
A barriga da Inês ia crescendo, os três sobrevivendo na luta para conseguir alimento nas terríveis filas (bichas) com as suas pedrinhas que se desmultiplicavam a cada minuto.
Um facto curioso tinha a nova casa, um pormenor que foi de grande utilidade no decorrer dos acontecimentos. Na residência estava instalado um telefone ligado e a funcionar. Esse aparelho foi magia na estória. Para aumentar essa magia digo-vos que nunca ninguém cobrou o que quer que fosse, ou seja até à partida da Inês de Castro, o casal não pagou um tostão e o telefone funcionou sempre.
A nova casa tinha um defeito para o Alberto. Embora fosse um quinto andar as frondosas arvores, chegavam quase até ao topo do prédio. Estavam afastadas cinco ou seis metros, mesmo assim o odor que delas imanava punham o nosso amigo com um mau estar terrível, devido a qualquer alergia que ele tinha e já comprovada em contacto com certas árvores.
Nesse domingo de Junho a noite chegou e o cacimbo fazia a temperatura descer. Ao longe já se viam balas tracejantes vindas dos musseques a atravessar o céu em diversas direcções, assim como o matraquear das automáticas se faziam ouvir. Intervalando com momentos de silêncio. A escumalha voltava ao seu divertimento diário. Era o pão-nosso de cada dia após a hora do recolher obrigatório, até de madrugada. Era uma sinfonia de angústia, quando a manhã chegava tudo parecia renascer mas a esperança era nada.
Ainda era dia vinte e sete, quando pelas vinte e três horas o primeiro sinal se deu. Alberto telefonou à parteira que pediu para ele a ir informando dos sinais e do arrebentar das águas. Aos poucos as dores foram aumentando e para as duas da manhã foram muito fortes, rebentando de seguida as águas. Rápido, Alberto Castro correu para o telefone e ligou à parteira.
A porra é que havia o recolher obrigatório. E se a Madalena se recusasse devido ao adiantado da hora? Mas não, era uma mulher forte, habituada a grandes batalhas.
- Alberto! Ponha já um panelão cheio de água ao lume e venha-me esperar à porta da entrada.
Após quase encher de água uma grande panela e de a meter ao lume, pediu calma à companheira, o nosso Alberto desceu até ao hall de entrada para esperar a salvadora. Felizmente o elevador estava a funcionar.
Esperou impaciente, parecia uma eternidade a chegada da parteira. Mas na verdade Madalena pouco demorou, vinha num modelo antigo da Volvo e acompanhada por um enorme cão, um pastor alemão. Quando entraram no quarto, Inês estava de cóqueras, no chão ao lado da cama.
Levou um ralhete da Madalena porque não era posição correcta, mas foi mais para a fazer reagir. A Inês estava com medo que o bebé nascesse antes de a parteira chegar e ainda mais sem o marido junto.
- Alberto vá para a cozinha saber da água e espere que eu o chame.
Impaciente e muito nervoso o rapaz assim fez, mas depois foi tudo muito rápido. Minutos depois um forte chorar se ouviu, Alberto correu, mais uma menina tinha nascido. Mãe e pai choravam, eram três horas do dia vinte oito de Junho de mil novecentos e setenta e seis, uma segunda-feira, 
A minha afilhada acabara de nascer! Lá fora as balas tracejantes não paravam, assim como o som das balas que mais pareciam foguetes a festejar o nascimento de mais uma angolana branca.
Antes de partir a parteira deu diversas indicações e conselhos ao casal e em especial ao pai da bebé Alberto Pereira de Castro. Madalena ficou de ir passando por lá coisa que aconteceu. O nosso amigo acompanhou a senhora ao carro, abraçou-a e depois feliz subiu.
Entretanto no prédio ninguém deu por nada. Durante a manhã desse dia a vizinha do andar foi informada e ficou aparvalhada, de imediato deu colaboração, em especial na lavagem da roupa. Era uma senhora negra com muito nível.
Claro que o Alberto através do telefone mágico ligou para Portugal dando a feliz noticia aos vários familiares. Os pais Castro falaram com a menina mais velha, prometendo estar em breve em Portugal.
A Inês recuperou felizmente muito depressa e a menina estava bem. Ia começar outra luta, as condições para sobreviver.
O registo da bebé foi feito na conservatória do bairro de Alvalade. E tem uma estória curiosa e cheia de humor.
Naquela fase o governo de Angola estava a forçar o registo legal de todo o povo. Poucos tinham registo oficial, por isso as filas eram intermináveis. Com se ia fazer? Horas e horas na porta à espera de vez era uma merda.
Quem mandava na conservatória era uma doutora ainda muito jovem. Então, o nosso amigo José d’ Barcellos com o seu charme muito especial, a que nenhuma mulher resistia, convenceu a senhora a fazer o registo fora de horas. E assim foi! Ele e eu fomos os padrinhos.
Conforme decidido pelo casal, o Alberto começou logo a tratar de tudo para mulher e filha partirem para Lisboa. Era impossível continuar em Luanda com as condições existentes.
O casal Alberto e Inês de Castro assim como a minha afilhada, correram um risco imenso. Tudo foi ultrapassado, mas as condições para se dar o drama estavam criadas: estavam todas no terreno. 26/1/2014
Djapam (Cooperantes)