segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O Viajante

Introdução.
No século XX, em especial na primeira metade, mas que ultrapassou o próprio 25 de Abril, muitas empresas tinham uma forma sugéneris de vender os seus produtos através da província. Enviavam vendedores que passavam a semana fora, por vezes duas e alguns andavam por lá um mês. Eram os chamados caixeiros-viajantes, mais vulgarmente só designados por viajantes. Eram muito importantes para o bom funcionamento comercial e industrial desses mundos desfasados dos grandes centros. Era vulgar ouvir-se nas pequenas cidades e vilas. - O viajante vem aí. - Quando o viajante chegar. - O viajante está ai. - O viajante trás esse produto. - O viajante resolve. Com a modernidade a necessidade de haver caixeiros-viajantes foi-se evaporando. Hoje só em situações especiais eles se justificam. Muitas empresas conservadoras levaram tempo a entender esta mudança de paradigma.
Esta é a estória dessa mudança e do drama dos homens que viveram na pele a situação.
José Bray

O Viajante
Etelvina lavava a loiça do jantar que por sinal era pouca, dois pratos, dois copos, uma pequena panela, alguns talheres, entre os quais uma concha. A janta como era hábito, tinha sido uma sopa, neste caso de legumes. Um pouco de queijo, maçã e no fim um chá para ajudar a dormir. Quase todas as hortaliças e fruta vieram da horta/pomar que ficava na traseira da pequena casa situada na periferia daquela cidade industrial. Tudo, Etelvina cultivava com carinho e por necessidade. Diga-se de passagem que também era um entretém para a monotonia e solidão da sua existência.
Etelvina continuava a arrumar a cozinha, tinha o corpo presente mas a alma estava ausente. O seu pensamento voava através dos tempos do passado. Recordava a sua meninice, menina pobre e triste, que sonhava em viajar e ser tratada com carinho. Viajando à velocidade da luz na sua mente trespassou toda a sua vida já vivida. Lá estava o seu grande amor, bonito, charmoso, cheio de lábia, capaz de vender areia no deserto e gelo nos pólos. Depois os filhos, dois, nascidos quase de seguida. Um bem instalado na vida, o outro não tanto. Ambos com companheiras, raparigas decentes e senhoras do seu nariz. Ainda bem que assim era, chega de tanta descriminação. Depois os três netos, duas raparigas e um rapaz. Com a viagem através memória a chegar ao presente, pensava no seu envelhecido companheiro, que tão ausente andava. O grande amor da sua vida e único. Namorado, marido, companheiro, amante: fora quem a tratara pela primeira com verdadeira meiguice numa entrega total a que ela sempre correspondera.
Adalberto Costa, diga-se de passagem, estava duplamente ausente. Ausente sim, desde segunda-feira de madrugada até ao almoço de sábado. Ausente em casa de tudo e todos. Só animava um pouco após a vitória do seu clube, misturada com alguns copos de vinho tinto.
Naquele preciso momento, em que a sua companheira arrumava a cozinha e desbobinava memórias, Adalberto com a cabeça entre as mãos e cotovelos apoiados na mesa redonda, pensava na frustração que era a sua actual vida profissional. No dia seguinte ao amanhecer sairia de casa para pôr o pé na estrada. O destino era uma pequena cidade, distanciada uma centena de quilómetros. Depois, durante toda a semana iria saltar de povoação em povoação. O seu transporte era uma velha carripana tão cansada como ele. Uma carrinha de caixa fechada, para levar as amostras dos produtos que ele comercializava há mais de trinta anos.
O Adalberto, Berto para a família e amigos, era um caixeiro-viajante, como era designado nos velhos tempos, os vendedores que andavam pela província e lá dormiam mais ou menos noites, dependendo do seu mercado.
Etelvina de Jesus olhou para o marido, sentiu pena do seu homem, embora ninguém tivesse pena dela, nem da sua vida monótona e trabalhosa. A mulher alta e escanzelada, há muito perdera a frescura dos anos. Nunca engordara, ou era dela ou dos problemas da vida. Criara praticamente sozinha, os três filhos e ajudara também as noras na criação dos netos. A comida também nunca fora muita, além disso ainda tirava à boca para dar aos seus. Em nova fora uma mulher bonita, que ainda criança se apaixonara e muito pelo seu Berto, que também era um belo homem, alegre e falador.
Meu Deus que lábia tinha… pensou Etelvina. No princípio do casamento tudo era um sonho, tudo era paraíso. Seu homem era um triunfador. Vendedor, ganhava bem a vida. Não era muito instruído, mas a sua simpatia e magnetismo compensava tudo.
Na primeira dezena de anos, o companheiro ainda não andava em viagem, mas com o tempo o patrão assim exigiu. A sua falta de instrução obrigou-o a aceitar essa imposição. Na altura não houve problemas, o homem ganhava bem. Adalberto tudo fazia para chegar a casa na sexta ao cair do dia, depois em três noites recuperavam as carícias ausentes. Por vezes, nesse tempo, ela ia com o companheiro na viagem. Eram semanas maravilhosas que ela recorda com saudade.
Depois…depois com o passar dos anos, chegaram os filhos e tudo foi mudando, menos a paixão pelo seu homem.
- Então Berto, que se passa? Vem deitar querido… não te esqueças que amanhã tens de levantar às seis.
Assim falou a mulher após terminar a arrumação da cozinha. Nesse dia, a família directa não viera almoçar conforme era costume ao domingo. Tinham ido para uma festa de anos. Embora convidados, o casal já a entrar no outono da vida, não quisera ir. Adalberto não estava para festas e ela como sempre esteve solidária com o seu homem. A nossa Etelvina estava muito preocupada com o seu marido. Sentia nele, um imenso desânimo e receava que ele desistisse.
Na verdade um drama estava a acontecer com o velho vendedor…ele muito orgulhoso não contava à companheira. Pensava: ela também nada pode resolver só iria ficar muito preocupada e a sofrer. Já chegava ele estar amargurado.
Há duas semanas, através da secretária da administração, o Adalberto Costa, tinha sido convocado para ir ao escritório central. Na segunda-feira antes de partir para a viagem tinha de estar presente para falar com o director de vendas. O chefe directo do nosso viajante, era um jovem recem formado, cheio de tecnologias modernas e muitas manias no seu cérebro imaturo. Faltava ao rapaz, a experiencia e a patine do tempo.
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Adalberto Costa à hora marcada lá estava à porta do vistoso e imponente gabinete. O homem maduro, com quarenta anos de luta no mercado das vendas, estava em alta tensão e com as tripas a darem voltas e mais voltas. Estava dominado pelo medo, cheio de ansiedade. Sabia que coisa boa não vinha aí.
Depois de esperar meia hora, atraso normal, até porque o doutor tinha isenção de horário, coisa que ensopava todas as faltas ao serviço. Por fim o nosso homem recebeu ordem para entrar no gabinete.
- Bom dia senhor doutor, cá estou… conforme sua convocatória.
Após o aperto de mão da praxe, forte do Adalberto, pastoso e mole do seu superior. Este com um falso sorriso. Falou… com falinhas mansas.
- Olá senhor Costa, bom dia, sente-se por favor. Esteja à vontade. Quer um café?
Ali estava: de um lado um homem maduro, experiente na vida, com mil batalhas travadas, com filhos e netos. Com expressão de derrotado e sem armas para se defender. Do outro lado, do alto do seu pedestal, estava um miúdo sem nenhuma estrada percorrida, nada sabendo da vida, com o curso tirado a custo e com muitos custos. Tinha um ar de vitorioso, sem nunca ter feito nada, a não ser ter ocupado aquele cargo por ser filho de um dos maiores accionistas daquela poderosa empresa.
Tanta simpatia não era presságio de nada de bom…assim pensou o nosso viajante, tentando manter dignidade na pose. Ele que no passado era um profissional confiante e sempre na crista da onda, sentia-se agora um derrotado. Fora um senhor nos tempos do velho patrão. Na verdade o fundador da empresa era muito seu amigo. Costa, tinha sido um dos obreiros do negócio, no seu inicio. O patrão sempre reconheceu isso e ficou agradecido. Essa amizade permitiu que todos respeitassem durante muitos anos o Costa. Mas esses tempos e esse estado de graça tinham passado há muito.
- Obrigado doutor mas parei com o café, agora só chá.
O crescimento da empresa, a falta de ambição do Costa, o não querer benesses e postos de comando, juntando o handicap de não ter estudado mais e mais. Tudo isso deu origem a uma ultrapassagem que se foi acentuando, dia após dia, ano após ano.
Um dia, o Costa acordou para a vida e chegou à conclusão que perdera o jogo. Era agora um insignificante dentro da imensa empresa. Nascera vendedor e queria morrer vendedor, estava no seu ADN, nada mais quis da vida. Só vender e amar a sua Etelvina.
- Faz bem, faz bem! Então senhor Costa como vai a vida? Vai mal, não é?
O jovem parou uns segundos e depois fazendo uma expressão séria no seu rosto imberbe e sem barba continuou.
- Costa, as suas vendas continuam a baixar. O seu volume está cada vez mais na zona vermelha. O senhor já não rende o suficiente para aquilo que custa à empresa. Não podemos continuar assim. Ou recupera ou teremos de resolver o problema.
O Costa apresentou os seus argumentos, mas o director nem o ouvia. O viajante era uma unidade a abater, o resto não contava. O Costa estava a mais!
- Em conclusão senhor Adalberto Costa, vou dar-lhe mais três ou quatro semanas. Se o volume de vendas não aumentar, apresentarei o caso à administração e eles que resolvam. Isto será assim porque a senhor tem um velho estatuto e merece alguma consideração. Bom dia e boa semana com muitas vendas.
O Costa ia novamente argumentar, mas o jovem director já estendera a mão direita para o cumprimentar e despedir e a esquerda para pegar no telefone e atender uma chamada, ou falsa chamada.
O condenado saiu do gabinete vergado ao peso do seu drama. A secretária olhou para ele e sentiu um aperto no coração. Ou na alma tanto faz. Conhecera o Costa ainda ele estava na flor da vida cheio de charme e dinâmica. Tinha sido quando entrara miúda na empresa e ele tinha sido um bom amigo.
Agora caros leitores, já conhecem o drama deste velho viajante, ao fim e ao cabo igual a milhares de outros nas gerações do passado.
Nessa madrugada Etelvina sentiu que algo andava no ar, nessa noite o casal amou como já não era muito habitual. Tinham sessenta anos e tudo se tornou um hábito, e depois até o hábito se foi. Amor havia sempre, mas nessa noite foi paixão, como quando eram novos. Adalberto empregou-se a fundo e Etelvina foi sempre igual a si, com em todos os momentos que o seu homem a procurava. Nessa noite, ambos pareciam ter voltado à juventude, a felicidade reflectia-se no rosto de ambos: na sua mente e no coração, a sua Etelvina estava bonita e feliz como fora no inicio…
Enquanto Adalberto tomava banho, a companheira preparou o mata-bicho, após dar uma vista de olhos à pequena mala, para conferir a roupa para a semana. Depois em silêncio comeram, mas sorriam um para o outro.
A despedida aconteceu à porta da pequena vivenda, o dia já clareava. Etelvina manteve-se no exterior até a carripana desaparecer lá longe no fundo da estrada visível: foi sempre dizendo adeus com as lágrimas a correrem pelas faces marcadas pela idade.
Há muitos anos, talvez vinte e cinco ou mais, o Adalberto Costa partia para aquelas viagens. Umas vezes para o sul, outras vezes para o interior a leste. Era preciso cobrir muitos clientes, visitar e convencer o mais possível. Leva-los a comprar os seus produtos. Depois no fim do dia, no hotel ou similar, enviar as encomendas para o escritório central, através do telex.
Com o passar dos tempos, cada ano era mais difícil atingir os objectivos. O nosso viajante bem sabia as razões, pelo menos grande partes dela. Na actualidade já não justificava andar um desgraçado pela província. Havia outras técnicas. Mas a sua administração era muito conservadora e insistia na metodologia do passado. Por sua vez os directores e chefes de venda não tinham força nem vontade para insistir na mudança. Depois ao acontecer quebras no volume de vendas a culpa era sempre dos vendedores.
Mas também havia pormenores que o Costa, não abrangia ou fingia não ver, enterrando a cabeça na areia.
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A tarde estava agradável, estávamos perto do Natal, contudo a temperatura continuava amena. Etelvina após o frugal almoço foi para a horta tratar de arrancar as ervas que competiam com os legumes que cresciam mais lentamente. Depois as ervas serviam para alimentar o pequeno bácoro e alguns coelhos que enchiam a coelheira. Estava a mulher concentrada na tarefa quando ouviu o portão do quintal ranger, de seguida soou uma voz conhecida.
- Posso entrar Etelvina?
- Entra mulher, não era preciso pedir licença. Bons olhos te vejam. Então que te trás por estas bandas?
- Como tu nunca apareces, decidi vir até cá. Nem na igreja te vejo…
- Tens razão, mas sabes que sou pouco de igreja. Também não me convém sair, não gosto de deixar a casa sozinha e normalmente tenho cá netos. Por sinal hoje não.
Enquanto Etelvina ensacava a erva, a amiga foi observando a horta. Ela bem não se importava de também de ter uma, mas não podia ser, vivia num andar, além disso era mais dada à costura.
Rosa dos Santos era uma mulher pequena e roliça, da mesma idade da Etelvina, eram amigas de infância. Casara com João Emanuel companheiro de vendas do Adalberto. Foi através da amiga que ela conhecera o marido. Tudo normal para uma pequena cidade.
- Rosa, vamos entrar, vou fazer chá e umas torradas. Preferes cidreira ou camomila, ou queres antes chá preto.
- Não te incomodes mulher. Faz o te der mais jeito, até pode ser café e o pão pode ser normal.
- Então vou fazer cidreira que é melhor para o sistema nervoso.
Depois das torradas feitas e da água a ferver deitada no bule onde estavam duas saquetas de cidreira, as mulheres sentaram-se à volta da mesa redonda da cozinha. As tardes eram curtas por isso rápido uma penumbra invadiu a divisão, mas ninguém acedeu a luz.
- Agora Rosa diz-me o que cá te trouxe? Não dás ponto sem nó, já te conheço há mais de cinquenta anos.
A Etelvina, achou estranha aquela súbita visita da amiga, que até costumava telefonar, ou convidá-la para ir até ao centro da cidade. A Rosa era vivida e manhosa, mas a mulher do Adalberto era mais inteligente.
- Tens razão, precisava de falar contigo, o assunto é melindroso, mas tinhas de ser informada.
- Credo! Já estou em pânico. É alguma coisa com os meus filhos ou netos?
- Não mulher, não é com eles mas é com o teu homem e com o meu…
O coração da Etelvina começou aos pulos. Sentiu desmoronar-se o seu frágil mundo….ficou muda na expectativa.
- Calma amiga, não é morte de homem, nem nada que se pareça. Mas com calma vou pôr-te ao corrente. Mas por amor de Deus, acalma Etelvina, minha amiga.
Rosa acalmando a amiga bebeu mais uma chávena de cidreira e forçou a outra a beber também.
- Então é assim… de um tempo a esta parte, notei que o João não andava bem, macambúzio e rezinga, coisa pouco habitual nele: que é um deixa andar. Apertei com o meu homem, só consegui que dissesse que eram coisas do trabalho e que não me preocupasse. Ao dizer-me isto ainda me deixou mais com a pulga atrás da orelha. Como sabes, o João gosta de andar na viagem, não é por gostar de vender, ao contrário do teu. O meu quer é rédea solta…
- Então e depois, descobriste alguma coisa? O que tem o meu homem a ver com isso?
Já era noite fechada, as mulheres continuavam a conversar às escuras na mesa redonda da cozinha.
- Espera, já lá vamos. Pensei com os meus botões. Não me vais comer por parva. Montei-me nas minhas tamanquinhas e fui espiolhar lá na empresa. Cheguei à pessoa certa e fui informada.
- És uma mulher do diabo! Conta lá então a desgraça.
- Parece que as vendas na província andam más. Devido a isso os dois viajantes, o meu homem e o teu marido, foram chamados ao director e levaram um apertão. Melhor: uma ameaça…
- Que ameaça?
- Ou vendem mais ou vão para a rua. Como não têm idade para a reforma têm de ir para o fundo de desemprego, ganhando uma ninharia durante um tempo e depois esperar pela idade da reforma.
- Mas eles têm tantos anos de empresa, então o meu nem se fala. Não é justo, depois de uma vida a dar carne, a pele e os ossos, sacrificando mulher e filhos, para não falar nos netos. Merda, é mesmo uma vergonha, uma sacanagem. Isso vai dar cabo do Adalberto. Pobre marido, para o fim vem tudo de mau.
- Não desanimes amiga, vamos lutar ao lado deles. Afinal o prejuízo não é muito grande, eles ficarão mais tempo em casa. O problema do meu João, não é igual ao do teu homem. O meu fica com a corda curta, coisa que ele não quer.
- Também não será tanto assim, o João gostará de estar mais tempo contigo. Agora para o Adalberto é uma questão de orgulho, ele que se considerava um dos pilares da firma.
- Amiga, não ponhas as mãos no lume pelo meu homem, tenho a certeza que há muito tem uma amásia, lá longe. Em qualquer dos casos, vamos esperar o próximo fim-de-semana, para pôr isto a limpo e lutar com eles para encontrar uma solução.
- Sim Rosa, és uma mulher valente. Vamos aguardar sim. Obrigado por teres vindo ter comigo!
As duas amigas que se conheciam desde a época da escola primária, ficaram mais um tempo sentadas no escuro, o que impedia cada uma de ver as lágrimas da outra.
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A carripana seguia pela estrada estreita a caminho do sul. Adalberto Costa não reparava na bonita paisagem que circundava o seu caminho. Aquela estrada já tinha sido percorrida por ele centenas de vezes, ora para lá ora para cá. Ia concentrado nos seus problemas, por isso nem dava por nada, conduzia por automatismo. Pensava chegar à pequena cidade pouco depois das nove. Não iria sequer ao minúsculo hotel onde costumava ficar, deixaria para o fim da tarde. Sentia uma solidão muito doentia, gostava de ter junto a si a Etelvina mulher da sua vida e única, embora ela não acreditasse nisso. Ainda a estava ver menina à esquina da rua onde moravam esperando por ele. Já tinham passado quase cinquenta anos, mas as imagens estão firmes na sua biblioteca da memória. Contudo neste momento, a razão do desejado apoio era a sua situação actual, o drama que estava vivendo. O seu amigo João, viajante como ele, também estava na mesma situação. Mas esse estava-se borrifando, era um bom vivant, queria putas e vinho verde. A Rosa tinha muita paciência para o marido, mas não sabia da missa a metade.
Finalmente chegou ao seu destino, lá ficaria um dia, dormiria no hotel e no dia seguinte partia para outra cidade. Na verdade uma vila, embora um pouco maior que a povoação onde chegara. Nunca entendera bem a diferença que caracterizava a cidade da vila. Agora iam começar as visitas da praxe.
Na primeira visita, o cliente não comprou porque argumentou que o produto era muito caro, embora reconhecesse a qualidade. Para o que a sua fábrica produzia não justificava tanta qualidade.
Na segunda visita, o cliente comprou só um pouquinho, porque teve uma urgência de matéria-prima e um concorrente foi-lhe entregar no mesmo dia. O senhor Artur, cliente de muitos anos ainda declarou. – Senhor Costa. A sua empresa é muito demorada nas entregas.
Na terceira visita, o cliente desabafou. – Amigo Costa, um concorrente fez um saldo e eu aproveitei.
Na quarta visita, o cliente afirmou. – Gosto muito de trabalhar consigo Costa, mas precisei de um maior prazo no pagamento e a sua direcção não aprovou o meu pedido. Vou encomendar-lhe alguma coisa mas é por amizade.
Na quinta visita, o cliente quis encomendar tudo mais alguma coisa. O Costa desconfiou, foi saber informações e descobriu que o homem estava falido. Era por isso uma golpada.
As visitas continuaram, muitos casos poderiam aqui ser relatados, mas para quê torturar mais o viajante (leitor) que me acompanha nesta leitura.
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 A semana estava a chegar ao fim, era quinta-feira, hora de jantar. Costa desta vez pensava regressar mais cedo, queria estar em casa à hora da refeição da noite na sexta-feira. A Etelvina todos dias telefonava a dar-lhe carinho, havia algo no ar: como se ela soubesse o que se estava a passar.
Estava a ser uma semana muita má para as vendas. Os clientes, alguns com dezenas de anos arranjavam todas as desculpas para não comprar. Algumas encomendavam alguma coisa só por amizade. O velho viajante, cada vez estava mais deprimido. Não queria reconhecer de maneira nenhuma a sua derrota. Não podia ser…que se passava?
Se não fosse a sua companheira, os filhos e os netos, dava cabo dele. Jantara num pequeno restaurante, bom e muito barato. Nesse dia e contra o costume bebeu muito, o que só aumentou o seu estado emocional. Depois da janta decidiu fazer uma longa caminhada, dando uma volta até fora da povoação. Quando regressasse à pensão telefonaria à sua companheira.
Adalberto Costa cambaleando, andou, andou, andou. A noite foi avançando e com ela a chuva também veio. Primeiro de mansinho, depois mais brava. O nosso homem não ligou, não estava frio e os vapores do álcool tudo aqueciam, ele parecia nem reparar. Estava apático!
Ao regressar à vila parou sobre a ponte. Sob a dita a água era mais que muita, fortes enxurradas faziam chegar a água ao nível da estrada.
O nosso viajante num transe que não controlava encostou-se à guarda da ponte e começou a ser atraído para a forte corrente. Parecia tudo incontrolável e sem recuo possível. Foi então que ouviu uma voz forte que mais parecia um trovão.
- Então Adalberto Costa, que vais fazer? És louco ou estás muito bêbedo. Se calhar é tudo misturado. Reage homem!
O nosso homem voltou a endireitar-se e tentou ver quem falava. Não era fácil, estava escuro e a chuva fazia uma barreira à vista. Nos extremos da ponte, uma luz mortiça marcava a presença da dita. Com esforço Adalberto começou a visionar um vulto, era um velho conhecido que já não via há muito. Um bom amigo do tempo da guerra.
- Que fazes aqui Carlos? Há tanto tempo que não te via, estás na mesma. Porra que coincidência. Dá cá um abraço que bem preciso.
- Também estou feliz por te encontrar. Que se passa contigo? Porque ias cair ao rio? És parvo ou quê…
- Já me sinto melhor só com tua presença. Vamos até ao bar que fica na curva da estrada, está aberto até de madrugada. Vou contar-te a meu actual drama.
Os homens lá foram até ao bar, que estava vazio devido à chuva que não parava de cair. Os dois pareciam não ligar nenhuma às roupas molhadas.
Adalberto Costa, foi contando a sua estória e mostrando os seus sentimentos em relação ao problema. Não escondeu nada de nada. Também nada tinha para esconder.
O Carlos tudo ouviu na calma, nada bebendo a não ser água. Ao contrário do viajante que continuou a encharcar a vela. A visita surpresa, foi fazendo uma ou outra pergunta, parecia alguém muito entendido naquilo que conversavam.
- Agora diz-me Carlos que hei-de fazer? Ajuda-me!
- Nada de especial velho amigo. Vive a vida com os teus. Brinca muito com teus netos, ajuda teus filhos e faz amor com a tua mulher sempre que tiverem desejo e força para isso.
- Mas então e o meu problema como vendedor derrotado?
- Adalberto Costa, não há nenhum problema. Tudo isso é uma tempestade num copo de água. Tu não vendes, não é por culpa tua. Os produtos são demasiado bons para as necessidades do mercado. Tua empresa está errada, é demasiado conservadora. Não faz concessões no prazo de pagamento. Não faz saldos como mandam as regras. Entrega tarde os produtos. Usa pouca dinâmica. Além disso, os viajantes deixaram de ter razão de ser. Na sede através de uma dinâmica comercial o mercado pode ser acompanhado. Há muito que vocês viajantes deviam ter regressado à base. Eu digo-te mais, se eles complicarem, exige pagamento do tempo que estiveste fora de casa. Garanto que em tribunal levam um estoiro.
Um raio de luz e de felicidade iluminou a expressão do nosso viajante.
- Garantes que isso é mesmo assim?!
- Garanto sim e cá estarei para te ajudar. Amanhã logo de manhã partes para casa. Já irás almoçar com a tua fantástica companheira que um dia vou querer conhecer. Depois marcas uma reunião, mas com a administração, não aceites intermediários, vai logo a Deus, deixa os santos de fora. Com calma expões tudo o que acabei de dizer e mais aquilo que tu aches vantajoso e não tenhas lembrado ao falares comigo. Durante o fim-de-semana toma apontamentos e chama o teu amigo João para a luta.
- Obrigado meu amigo, vou ficar eternamente grato. Agora fala-me de ti.
- Costa, eternamente é muito tempo, não penses mais nisso. Trata da tua vida. Agora vou levar-te à tua Pensão, estás nas últimas.
Saíram para a estrada, a chuva parara, os dois amigos abraçados desapareceram na negrura da noite.
Na manhã dessa sexta-feira, o dia nascera limpo e tudo parecia mais brilhante e bonito. Adalberto acordou bem-disposto, tudo indiciava que o vinho da véspera não tinha molestado o seu organismo. Aos poucos foi-se lembrando de tudo. Cada vez estava mais feliz. Ia fazer tudo conforme o amigo Carlos lhe tinha transmitido e ensinado. Claro que aquilo tinha sido um sonho, um bom sonho, nunca podia ser real. Desceu para tomar o pequeno-almoço e pagar a noite lá dormida. Ao passar na recepção o rapaz de serviço, chamou.
- Senhor Costa, um senhor deixou este dossier para si, para lhe entregar quando descesse.
- Obrigado Manuel, dê cá.
Admirado, o nosso Costa abriu a encomenda. Era uma pasta azul, com tudo o que fora conversado no bar da curva da estrada. À margem estava escrito o plano de acção que o viajante devia encetar com a sua empresa. Um cartão acompanhava o dossier. Força meu amigo. Um abraço do teu camarada Carlos.
Nesse momento Adalberto Costa caiu na real. Tudo aquilo era um milagre. O seu amigo Carlos, seu camarada na tropa, tinha morrido na campanha do Rovuma durante a Grande Guerra.
Cantando canções nostálgicas, regressou a casa para a batalha final. Como ia ficar feliz a sua Etelvina. Agora a paisagem era sublime e ele sentia-se um homem novo. De vez em vez uma lágrima espreitava nos seus olhos já cansados.
FIM
Comeira, 12 de Novembro de 2014

José Bray

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