07
- A Morte do Freitas
O país estava sem
rei nem roque, três exércitos com armas e outro sem armas e rendido, todos
convivendo no meio das suas contradições, numa cidade que crescia em população
e diminuía em infra-estruturas, tudo isto gerido por um governo misto sem
preparação, tudo marinheiros de primeira viagem.
Estava a chegar o
tempo de tudo se desmoronar, muitos ainda tinham esperança, mas era fácil de
ver que aquilo não ia dar em nada. Ou melhor, ia dar uma grande confusão e quem
se ia lixar era o mexilhão, branco, preto ou mulato. Mas esta escrita é para
falar de um drama passado nessa época.
Era o tempo em que
ainda havia utopias, por isso os idealistas tentavam fazer alguma coisa. Era
necessário abrir uma Escola na cidade de Carmona (Uíge), a minha Empresa ganhou
o concurso. Preparou-se os materiais e planificou-se a execução, tudo sob a
minha gestão. Pensei, despacha-se os materiais e mais tarde uma equipa de
montadores chefiado pelo Freitas, vão executar a obra em dois ou três dias,
deslocando-se numa carrinha própria para o efeito. Tudo muito simples.
Havia dois
percursos para chegar a Carmona, por Salazar (Dalatando) cerca de seiscentos
quilómetros, caminho seguro durante a guerra colonial, ou um percurso curto
cento e cinquenta quilómetros mas muito perigoso direito ao Caxito: durante a
luta armada só era possível ir em coluna militar. Mas agora com o fim das
hostilidades (uma treta) a via estava aberta.
Quando foram
informados da montagem, o pessoal pensou logo em fazer uma excursão até
Carmona, não era trabalhar era passear, o Freitas chefe dos montadores, o Cunha
motorista da nossa camioneta, vieram falar comigo para terem autorização. Com
uma dose de bom senso e sendo responsável, não autorizei, explicando as razões
que eram muitas. Trabalho é trabalho conhaque é conhaque.
Nessa altura
estava na Filial um gerente que era uma porcaria de homem e gostava muito de
ser engraxado. Os meninos, nas minhas costas foram pedir autorização ao dito
superior que acabou por interferir numa área que não devia. A autorização foi
concedida.
Numa dada
madrugada, camioneta cheia, Cunha a conduzir, Freitas ao lado, em cima da carga,
o Coluna mais os seus ajudantes, à saída da cidade no Cacuaco deram boleia a
mais três pretos e lá foram cantando e rindo.
Os brancos na
cabine rindo com as anedotas que contavam à vez, o Cunha fumando a sua
cigarrilha com o cotovelo apoiado na janela aberta, o Freitas falando de gajas
e do ódio que tinha à mulher, da admiração que tinha pelo pai e do grande amor
ao filho de oito anos.
Em Luanda,
entretanto uma discussão entre mim e o gerente tinha lugar, tratei o homem
abaixo de cão, ele ameaçando fazer queixa à administração. - Faça, faça que eu
assino por baixo.
Entretanto a
viatura de carga continuava a sua viagem através da floresta virgem, por
estradas sinuosas com bruscas inclinações. A carga era perigosa, volumosa mas
leve, exigindo condução cuidada. O pessoal ia cantando e bebendo, em certo
momento o drama deu-se…
Numa curva
surpresa o Cunha não conseguiu controlar a Toyota Dina e lá foram pela
ribanceira. Não foram longe devido às árvores. Mas os estragos foram muitos.
Alguns pretos morreram, outros, ninguém mais os viu, o Coluna ficou muito mal
tratado o Cunha nem tanto, mas o pior foi o Freitas, ficou entalado entre a
porta e uma árvore com diagnóstico reservado.
Após o almoço tive
conhecimento do grave acidente. Uma viatura do desarmado exército português
trouxe os feridos para uma Clínica privada da capital, para lá me dirigi de
imediato e lá passei muitas horas. O Cunha foi tratado e teve logo alta, o
Coluna com fracturas múltiplas tinha para muitos meses mas não corria perigo de
vida, o pior era o Freitas, tinha a coluna partida e estava paraplégico da
cintura para baixo. O pai e o filho estavam na Clínica, o sofrimento deles era
tão intenso que não consigo descrever.
Fazia tudo para os
animar mas não conseguia, também não sabia como. A clínica estava como o país,
sem rei nem roque, por isso a assistência não tinha qualidade, muito preto
ignorante nos serviços, tratando outros pretos ainda mais atrasados.
Ao fim do dia,
quando saí da clínica ia muito preocupado com aquilo que se passaria durante a
noite. Ainda hoje pergunto a mim mesmo, qual a verdade dessa noite?
No dia seguinte
quando cheguei o Freitas tinha falecido. Foi um choque embora já o esperasse,
mas num futuro próximo. Pensei logo no menino e no pai, mas a criança era a
minha principal preocupação. Agora tinha de cumprir a ingrata missão de dar a
triste noticia. Informar um pai e um filho numa situação como esta, não o
desejo a ninguém.
Lá cumpri a missão
com grande emoção, a imagem de sofrimento dos dois nunca mais saiu da minha
mente. Então o rosto, a expressão de tristeza daquela criança que adorava o seu
pai, ficou para sempre colada a mim. O leitor deve imaginar a minha revolta por
terem estupidamente alterado uma ordem minha.
José d’ Barcellos
– 3/08/2010 – Este é um drama verdadeiro, vivido em Angola após o 25 de Abril
de 1974.
Esta estória é
muito dramática! Porque razão, uns tantos portugueses insistiram em ficar em
Angola, num país sem rei nem roque como diz José d’ Barcellos, um herdeiro da
coroa que lá ficou por utopia. O nosso amigo também regressou desiludido com
tudo e todos. Todos não! Nunca o desiludiram o José Brandão, o Alberto de
Castro, e eu também, o que me deixa muito feliz.
Um dia, muito mais
tarde recebi uma carta do José d’ Barcellos.
Meu
bom Djapam,
Espero
que estejas bem assim como a tua preta e a tua criançada. Cá por mim, continuo
com a esperança que esta gente um dia pense que é mais lógico uma monarquia que
a porcaria de uma república pseudo democrática.
Mas
não é para falar da porcaria do regímen que te escrevo. O motivo é outro,
infelizmente é com muita tristeza que o faço.
Lembras-te
do nosso amigo Freitas meu subordinado aí em Angola? Claro que sim, é
impossível esquecer. Bolas para aquilo tudo, ainda hoje me faz sofrer.
A
família do Freitas regressou a Portugal após a sua morte. O pai nunca mais
reagiu e acabou por desaparecer em coma alcoólica, a mãe acabou numa cama do
manicómio. Mas é do filho que quero falar. Criado ao Deus dará, rápido se meteu
na droga. Há poucos dias através do nosso comum amigo Laurindo soube que deixou
este mundo através de uma mortal overdose.
Escrevo-te
porque precisava de desabafar. Não consigo tirar da minha mente a expressão
daquele menino de oito anos que adorava o pai, quando lhe disse que o seu mais
que tudo morrera. Djapam, foi das coisas mais difíceis que fiz na vida.
Obrigado
meu amigo, e desculpa.
Um
abraço do tamanho de Angola.
José
d’ Barcellos
Meu querido amigo,
fizeste bem em desabafar comigo. Por favor fá-lo sempre! Djapam, 20/1/2014
Sem comentários:
Enviar um comentário