domingo, 5 de abril de 2015

Cooperantes - A Morte do Freitas

07 - A Morte do Freitas
O país estava sem rei nem roque, três exércitos com armas e outro sem armas e rendido, todos convivendo no meio das suas contradições, numa cidade que crescia em população e diminuía em infra-estruturas, tudo isto gerido por um governo misto sem preparação, tudo marinheiros de primeira viagem.
Estava a chegar o tempo de tudo se desmoronar, muitos ainda tinham esperança, mas era fácil de ver que aquilo não ia dar em nada. Ou melhor, ia dar uma grande confusão e quem se ia lixar era o mexilhão, branco, preto ou mulato. Mas esta escrita é para falar de um drama passado nessa época.
Era o tempo em que ainda havia utopias, por isso os idealistas tentavam fazer alguma coisa. Era necessário abrir uma Escola na cidade de Carmona (Uíge), a minha Empresa ganhou o concurso. Preparou-se os materiais e planificou-se a execução, tudo sob a minha gestão. Pensei, despacha-se os materiais e mais tarde uma equipa de montadores chefiado pelo Freitas, vão executar a obra em dois ou três dias, deslocando-se numa carrinha própria para o efeito. Tudo muito simples.
Havia dois percursos para chegar a Carmona, por Salazar (Dalatando) cerca de seiscentos quilómetros, caminho seguro durante a guerra colonial, ou um percurso curto cento e cinquenta quilómetros mas muito perigoso direito ao Caxito: durante a luta armada só era possível ir em coluna militar. Mas agora com o fim das hostilidades (uma treta) a via estava aberta.
Quando foram informados da montagem, o pessoal pensou logo em fazer uma excursão até Carmona, não era trabalhar era passear, o Freitas chefe dos montadores, o Cunha motorista da nossa camioneta, vieram falar comigo para terem autorização. Com uma dose de bom senso e sendo responsável, não autorizei, explicando as razões que eram muitas. Trabalho é trabalho conhaque é conhaque.
Nessa altura estava na Filial um gerente que era uma porcaria de homem e gostava muito de ser engraxado. Os meninos, nas minhas costas foram pedir autorização ao dito superior que acabou por interferir numa área que não devia. A autorização foi concedida.
Numa dada madrugada, camioneta cheia, Cunha a conduzir, Freitas ao lado, em cima da carga, o Coluna mais os seus ajudantes, à saída da cidade no Cacuaco deram boleia a mais três pretos e lá foram cantando e rindo.
Os brancos na cabine rindo com as anedotas que contavam à vez, o Cunha fumando a sua cigarrilha com o cotovelo apoiado na janela aberta, o Freitas falando de gajas e do ódio que tinha à mulher, da admiração que tinha pelo pai e do grande amor ao filho de oito anos.
Em Luanda, entretanto uma discussão entre mim e o gerente tinha lugar, tratei o homem abaixo de cão, ele ameaçando fazer queixa à administração. - Faça, faça que eu assino por baixo.
Entretanto a viatura de carga continuava a sua viagem através da floresta virgem, por estradas sinuosas com bruscas inclinações. A carga era perigosa, volumosa mas leve, exigindo condução cuidada. O pessoal ia cantando e bebendo, em certo momento o drama deu-se…
Numa curva surpresa o Cunha não conseguiu controlar a Toyota Dina e lá foram pela ribanceira. Não foram longe devido às árvores. Mas os estragos foram muitos. Alguns pretos morreram, outros, ninguém mais os viu, o Coluna ficou muito mal tratado o Cunha nem tanto, mas o pior foi o Freitas, ficou entalado entre a porta e uma árvore com diagnóstico reservado.
Após o almoço tive conhecimento do grave acidente. Uma viatura do desarmado exército português trouxe os feridos para uma Clínica privada da capital, para lá me dirigi de imediato e lá passei muitas horas. O Cunha foi tratado e teve logo alta, o Coluna com fracturas múltiplas tinha para muitos meses mas não corria perigo de vida, o pior era o Freitas, tinha a coluna partida e estava paraplégico da cintura para baixo. O pai e o filho estavam na Clínica, o sofrimento deles era tão intenso que não consigo descrever.
Fazia tudo para os animar mas não conseguia, também não sabia como. A clínica estava como o país, sem rei nem roque, por isso a assistência não tinha qualidade, muito preto ignorante nos serviços, tratando outros pretos ainda mais atrasados.
Ao fim do dia, quando saí da clínica ia muito preocupado com aquilo que se passaria durante a noite. Ainda hoje pergunto a mim mesmo, qual a verdade dessa noite?
No dia seguinte quando cheguei o Freitas tinha falecido. Foi um choque embora já o esperasse, mas num futuro próximo. Pensei logo no menino e no pai, mas a criança era a minha principal preocupação. Agora tinha de cumprir a ingrata missão de dar a triste noticia. Informar um pai e um filho numa situação como esta, não o desejo a ninguém.
Lá cumpri a missão com grande emoção, a imagem de sofrimento dos dois nunca mais saiu da minha mente. Então o rosto, a expressão de tristeza daquela criança que adorava o seu pai, ficou para sempre colada a mim. O leitor deve imaginar a minha revolta por terem estupidamente alterado uma ordem minha. 
José d’ Barcellos – 3/08/2010 – Este é um drama verdadeiro, vivido em Angola após o 25 de Abril de 1974. 
Esta estória é muito dramática! Porque razão, uns tantos portugueses insistiram em ficar em Angola, num país sem rei nem roque como diz José d’ Barcellos, um herdeiro da coroa que lá ficou por utopia. O nosso amigo também regressou desiludido com tudo e todos. Todos não! Nunca o desiludiram o José Brandão, o Alberto de Castro, e eu também, o que me deixa muito feliz.
Um dia, muito mais tarde recebi uma carta do José d’ Barcellos.
Meu bom Djapam,
Espero que estejas bem assim como a tua preta e a tua criançada. Cá por mim, continuo com a esperança que esta gente um dia pense que é mais lógico uma monarquia que a porcaria de uma república pseudo democrática.
Mas não é para falar da porcaria do regímen que te escrevo. O motivo é outro, infelizmente é com muita tristeza que o faço.
Lembras-te do nosso amigo Freitas meu subordinado aí em Angola? Claro que sim, é impossível esquecer. Bolas para aquilo tudo, ainda hoje me faz sofrer.
A família do Freitas regressou a Portugal após a sua morte. O pai nunca mais reagiu e acabou por desaparecer em coma alcoólica, a mãe acabou numa cama do manicómio. Mas é do filho que quero falar. Criado ao Deus dará, rápido se meteu na droga. Há poucos dias através do nosso comum amigo Laurindo soube que deixou este mundo através de uma mortal overdose.
Escrevo-te porque precisava de desabafar. Não consigo tirar da minha mente a expressão daquele menino de oito anos que adorava o pai, quando lhe disse que o seu mais que tudo morrera. Djapam, foi das coisas mais difíceis que fiz na vida.
Obrigado meu amigo, e desculpa.
Um abraço do tamanho de Angola.
José d’ Barcellos

Meu querido amigo, fizeste bem em desabafar comigo. Por favor fá-lo sempre! Djapam, 20/1/2014

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