sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Montanha Mágica - A ilha flutuante - Os Felpudos


O povo das duas cidades vivia um momento de tristeza e ansiedade, os dois soberanos tinham partido para a pescaria sazonal. Havia dez dias que não apareciam, nem havia sinais da sua existência. Os ministros tentaram manter a situação em segredo, contudo uma criada língua de trapos chibou-se sem pensar e a notícia correu célere.
Os habitantes de Branca e Preta estavam abatidos e receosos do futuro, os príncipes herdeiros ainda não estavam à altura de governar o seu país, naquele mundo mágico, e os ministros não inspiravam confiança. Tratava-se de adolescentes um pouco inconscientes como o demonstraram no “Regresso à Montanha Mágica” quando partiram para o castelo do Sábio sem se prepararem para a excursão, nem pedirem conselhos ou ajudas a quem de direito. Por sua vez as rainhas estavam mais preocupadas com a arte do que terem de governar as suas cidades.
Então, os conselheiros dos dois reinos reuniram-se na Casa da Bifurcação (instalações na floresta na qual eram feitas as reuniões entre os dois estados) para analisar o problema e tomarem uma decisão. Como sempre, após muita discussão e não menos palpites não chegaram a nenhum consenso. Os príncipes queriam partir para o mar à procura dos pais, mas aí sim, os ministros não deram autorização. Então que fazer? Simples! Como sempre, neste tipo de complicação, foram pedir ajuda ao Sábio da Montanha Mágica, nosso já conhecido amigo, feiticeiro e sábio de muitos variados saberes.
Uma ave dourada voou até ao alto da montanha com uma missiva para o ancião, pedindo a sua comparência urgente. Não tardou demasiado a chegar, aparecendo como sempre envolto em fumo branco que rápido se dissipou. Embora já soubesse o que se passava fez a sacramental interrogação.
- Então que se passa meus senhores?
Os conselheiros quiseram falar atabalhoadamente todos ao mesmo tempo, o Sábio meteu logo ordem no comício, ou seja na reunião.
 – Fale um de cada vez porque assim fazem-me dores de ouvidos. Vamos lá com calma.
 O Barba Ruiva, falou então em nome de todos.
- Sábio, os dois soberanos partiram há dez dias para a pesca, quiseram ir sozinhos, dizendo demorar dois ou três dias. Estamos todos muito preocupados com medo do que possa ter sucedido. Depois falou o Gordo.
 - Queremos o teu conselho, como sempre é decisivo! Mas já te dizemos que não sabemos se foram para norte, leste ou oeste, por isso a solução é difícil e a decisão a tomar ainda mais complicada.
O velho acariciou a longa barba, branca com fios dourados, reflexo dos raios do por do sol que pouco a pouco foi desaparecendo lá para oeste afundando-se no grande oceano. O Sábio fez sinal com o dedo indicador para todos se sentarem e fazerem total silêncio. Coçou outra vez a barba que agora parecia cinzenta devido ao escurecer, os candeeiros de pedra florescente começaram a iluminar o vasto salão, a luz era fraca com cambiantes amarelas, dando ao ambiente um ar lúgubre mas acolhedor.
No barulho do silêncio, o Sábio pensava, pensava nas alternativas para poder tomar uma decisão. Para já era conveniente não espalhar o pânico nas populações, mas o velho sabia há muito que uma ameaça pairava no ar. Sabia mas não conseguia dominar os contornos desse perigo. Pensou. -- Vamos lá ter calma, se o veleiro real tivesse ido para oeste ou leste já teriam chegado noticias, tudo indica que viajaram para norte, nenhuma tempestade tem havido, por isso a hipótese de naufrágio são mínimas e os Logues (peixes gigantes e ferozes) não atacavam barcos do Continente Encantado. Podia enviar o Dragão amigo, investigar com dois homens no seu dorso, mas seria uma longa viagem e o Dragão não teria aonde pousar. Caissa podia dar uma ajuda, mas viajou para um planeta chamado Terra aonde é a Deusa do Xadrez e só voltará para o próximo Festival da Clareira para assistir ao jogo inventado por mim.
No grande Oceano, existe uma ilha flutuante que se desloca nas correntes, através dos tempos retorna aos mesmos pontos, de muitos em muitos anos ela aproxima-se do Continente Encantado, mesmo assim passa muito longe, não sendo visível de lá.
Ninguém nas cidades Branca e Preta sabe da existência dessa ilha, porque perto é uma expressão simplista de dizer, mesmo perto fica a dez dias de viagem de veloz veleiro e com vento a favor. Só o Sábio e a neta Zara sabiam da existência deste fenómeno, mesmo eles só sabiam parte.
Há muito que uma raça estranha andava a espionar o Continente naquela região, indo inclusive até à Montanha Mágica, depois ficavam escondidos até ao regresso da Ilha, apresentando depois o relatório na sua fala de grunhidos. Alguns morriam nestas andanças e o nosso Sábio um dia descobriu o cadáver de um deles, depois muito mais tarde de outro, acabou através dos tempos por encontrar dez. Mas todos mortos e bem mortos. Era uma raça muito esquisita, nada parecendo com os vários tipos de habitantes do Continente Mágico. Eram seres muito peludos, orelhas grandes em bico, braços que batiam no chão, pernas pequenas com cascos na extremidade, mãos com seis dedos, seres com metade da altura média dos seres da cidade Branca e cidade Preta, os olhos pequenos pareciam deitar faíscas, vestiam uma tanga de pele e comunicava por grunhidos, pareciam monstros que na verdade o eram!
O Sábio desconfiava que estes seres, a que alcunhou de Felpudos, vinham de tempos a tempos da ilha flutuante, mas nunca pensou que podia haver perigo de maior. Os Felpudos, já tinham tentado no passado enviar uma jangada enorme com cento e cinquenta passos de comprimento por cinquenta passos de largura carregada de seres, mais de duzentos, remando para tentar percorrer a longa distância. Nunca chegaram ao Continente porque os Logues afundaram a jangada e deglutiram os Felpudos sem excepção. Desta forma os peixes gigantes protegeram os dois reinos, sem se aperceberem disso porque estavam sob controlo da deusa Zara.
O problema dos Felpudos, era esse, como ultrapassar este obstáculo e enviar peludos em quantidade para dominarem os reinos mágicos. Começaram a mandar dois ou três batedores de cada vez, viajando em pequenas canoas feitas de troncos de árvores exóticas de interior mole fácil de escavar. Uns chegavam outros não, dos que chegavam raramente conseguiam retorno, a ilha flutuante no seu perímetro de viajem regressava muito tempo depois, os espiões escondiam-se mas acabavam por não sobreviver. Não estavam preparados para lidar com as feras do continente encantado e eram com o tempo dizimados. Assim o tempo sem tempo ia passando!
Naquele dia os dois reis tinham partido para a pesca, queriam conversar em privado e segurança, exigiram ir sós. Os conselheiros bem os tentaram dissuadir, mas eles teimosos fizeram ouvidos de mercador.
O pequeno veleiro deslizava em boa velocidade e os dois soberanos velejavam com saber, um vento forte e constante ajudava. Partiram ao alvorecer de um pequeno porto encravado na fronteira comum. A bordo tinham mantimentos para bastantes dias se necessário, biscoitos, pão, queijo, e muita fruta, não esqueceram a água, bom sumo de laranja e chá.
Embora o vento fosse forte, não era época de tempestades, por isso os riscos não eram nenhuns, pensavam eles. Como é óbvio, a pesca era uma desculpa de mau pagador, eles queriam conversar e trocar ideias sobre os interesses de Branca e de Preta. Não queriam testemunhas, há muito que usavam esta técnica inteligente, mas todos sabiam o porquê, e outros porquês também, pesca é que nada.
O rei de Branca gostava de fazer poesia, o rei de Preto pintava de imaginação, ambos adoravam música, de tudo faziam uma sinfonia. Além disso, jogavam xadrez horas e horas sem se aperceberem de mais nada. O veleiro deslizava, deslizava, deslizava, a corrente ajudava e cada vez estava mais a norte. As horas foram passando, o dia engolido pela noite e esta depois pelo dia, assim se passaram vinte e quatro horas.
Então aconteceu jogarem uma partida particularmente renhida, a luta no tabuleiro durou mais um dia. Entretanto o veleiro navegava à sua vontade. O vento cada vez mais forte encaminhou o barco muito para norte ajudado pela corrente, também ela muito rápida. Sem darem atenção e sem intenção, quando deram por ela estavam muito longe do continente, não fazendo mínima ideia da distância. Estava a nascer o dia, eles bem olharam para o lado da Montanha Mágica, o céu estava com limpidez, mas nada viram. O rei de Branca exclamou.
- Estamos muito longe, a montanha vê-se quase do fim do mundo e ela não está no horizonte!
- Desta vez exagerámos.
 Respondeu o outro rei. Ao olharem no sentido oposto ao continente, viram começar a aparecer pouco a pouco uma enorme massa de terra.
 - E esta!
Comentaram os soberanos ao mesmo tempo.
 - Devemos estar a chegar a outro mundo.
Disse um dos reis.
- Nunca imaginei haver terra para este lado, será um continente ou um simples ilha?
Retorquiu o outro. Começaram a pensar que fazer, que riscos poderiam haver. A curiosidade foi mais forte que a prudência, decidiram visitar essa massa de terra, não antes de contornarem a costa.
- Parece que a terra se está a mexer como nós!
Disse um dos reis, o outro confirmou. Após várias investigações chegaram à conclusão que era uma ilha flutuante.
- Como é possível?
Disseram os dois em uníssono. A ilha não tinha grandes relevos, mas tinha densa floresta. Os reis velejaram até uma pequena enseada que tinha pouca profundidade de água e nessa baía desceram a âncora de madeira e pedra. Num bote dirigiram-se para terra. Tudo era luxuriante, flores nunca vistas por eles, árvores estranhas de grande porte e beleza, algumas quase com trinta passos na altura e quatro no diâmetro, era um belo jardim natural e uma floresta virgem. Parecia virgem mas não era… Entretanto os reis começaram a reparar que pares de luzes apareciam entre a folhagem, pensaram ser olhos de animais e eram! Eram os faiscantes pares de olhos dos Felpudos. Logo que puseram os pés na areia foram atacados, despidos e metidos numa gaiola, esperando aí a sua sorte.
Voltando ao salão, onde o sábio ia pensando, os conselheiros dormindo e os príncipes chorando. Dois homens mantinham-se na posição de sentido, atentos esperando que o velho dissesse de sua justiça. Era o nosso conhecido capitão Valente herói da cidade Preta e o comandante Bravura, herói da cidade Branca. Este cavaleiro, vivia há pouco tempo no reino, tinha vindo de paragens longínquas, chegara com semblante carregado de tristeza, nostalgia e saudade. Nunca se abrira com ninguém, muitos desconfiavam haver ali desgosto de amor. Comandante Bravura era um mistério, oferecera a sua bravura e dedicação à cidade Branca, em breve se transformara em herói local. Ninguém mais tentou desvendar o mistério da sua vida.
Entretanto o Sábio falou, pediu a todos para esperar. De seguida dirigiu-se sozinho para uma falésia junto ao oceano e perto do ponto de partida do veleiro. Deitou-se nas rochas, fazendo uma concentração tremenda mesmo para um mágico. Apelou a Zara sua neta deusa dos Logues. Após muito prolongado esforço foi atendido.
- Que se passa avô? Pareces atrapalhado. Assim falou a ruiva jovem de olhos verdes e longos cabelos.
- Preciso de saber aonde pára o veleiro em que viajavam os reis de Branca e Preta? Estamos todos preocupados!
- Isso é fácil avô, o veleiro está a muitos dias de viagem, atracado na Ilha Flutuante, lá para norte, mais não sei.
Após esta informação, ela desapareceu da mente do velho e ele voltou a si. Já entendia tudo, os reis tinham sido aprisionados pelos Felpudos. Estariam vivos? Pensou. Assim com partiu, chegou ao salão, envolto numa nuvem de fumo branco. Na grande sala todos estavam na expectativa.
Ao chegar, o Sábio disse aos conselheiros e príncipes que estava tudo bem, não abrindo o jogo. Tudo se iria resolver não se preocupassem. Depois chamou Valente e Bravura e fecharam-se numa pequena sala, com vista para o vasto oceano.
 - Então Sábio, quando avançamos com a acção?
Perguntou Valente que tinha mais confiança com o velho da Montanha Mágica.
- Amigos, os vossos soberanos devem ter-se metido numa enrascada, estão a muitos dias de viagem. Atracaram o veleiro numa ilha flutuante que se aproxima do nosso continente de anos a anos. Devem estar prisioneiros de uma raça estranha a que alcunhei de Felpudos, não sei se ainda estarão vivos, a minha neta Zara não me soube informar. Temos de lá ir com urgência!
Após uma pausa geral Bravura questionou.
- Mas como vamos? De barco será muito demorado! Que forças irão?
Valente ripostou.
- Podemos ir no nosso amigo dragão, mas só poderão ir meia dúzia de guerreiros. Será o suficiente para derrotar os tais Felpudos?
Por sua vez, Bravura acrescentou.
- Será que o dragão aguenta tão longa viagem, como poderá descansar no mar por causa dos Logues?
Assim falou por fim o Mágico.
- Com os Logues não se preocupem, eles são nossos amigos, minha neta é a deusa deles. Vamos os três no dragão e levamos também o nosso amigo urso que vale por dez homens. Chamem os nossos amigos, partimos ao alvorecer.
Ao raiar do dia, Sábio, Valente, Bravura, urso e dragão, partiram para uma jornada sem fim previsto nem desfecho. Era pena Caissa não estar presente, seria uma boa ajuda. Viajaram várias horas, por fim o dragão descansou sobre as águas do calmo oceano, de seguida após viajarem mais meia dúzia de horas avistaram a enorme massa de terra coberta por densa floresta. Lá estava o veleiro, rodeado por uma centena de estranhas criaturas.
Na areia da praia e perto da densa vegetação uma enorme jaula servia de prisão aos dois soberanos que na altura dormiam de cansaço. Os nossos amigos não se fizeram esperar, num ápice o dragão voou rápido para o local deitando fogo pelas ventas.
Os Felpudos foram apanhados de surpresa, mesmo assim tentaram uma reacção mas em vão. Valente lutava com denodo, cortando tudo com a sua espada, o urso em cada sapatada era um Felpudo que despachava, o dragão queimava as defesas inimigas, mas quem lutava com mais fúria era o comandante Bravura, com raiva incontida. Rapidamente como começou assim acabou a batalha, os reis foram libertados. O Sábio da Montanha Mágica fez forte critica aos soberanos, pela imprudência, afinal semelhante aquela dos príncipes na narrativa “O Regresso à Montanha Mágica”. De repente repararam que o comandante Bravura de joelhos chorava. A sua amada tinha sido assassinada por aquela raça maldita, há muitos anos no seu país distante!
FIM
José Bray 17/3/2012




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