João andava na terceira classe daquela Escola que
ficava longe do bairro onde morava. A Escola era no asfalto, mas o João vivia
no bairro dos pobres.
O governo obrigava todas crianças a frequentar o
ensino primário. Por isso o nosso pequeno, contra a vontade do pai, teve essa
possibilidade: aprender a ler e a escrever. Já os irmãos mais velhos foram
arredados dessa hipótese porque a lei, na idade deles, não impunha essa
obrigatoriedade.
O nosso rapaz morava, num bairro da lata, com
os pais, dois irmãos mais velhos e uma irmã com pouco mais de dois anos.
Todos os dias o João fazia uma hora de caminho para
alcançar a Escola e outra hora para chegar a casa. No regresso parava numa
cantina para pobres, lá comia um prato de sopa e uma fatia de pão escuro.
Depois de chegar à sua barraca, João deixava a saca
dos livros e ia ajudar o pai a apanhar ferro velho pelas ruas da cidade. Já
noite e à luz do candeeiro a petróleo o miúdo fazia então os trabalhos de casa,
neste caso os escolares.
João não era um super aluno, mas era razoável. Muito
introvertido, pouco falava, mas escutava tudo com muita atenção,
inclusive as conversas dos seus camaradas, quase todos de famílias
com grande poder económico.
Os tais colegas não lhe passavam cartão. As roupas,
o calçado e o cabelo comprido denunciavam o estatuto de menino pobre. Naquela
época não havia a moda do cabelo comprido e quando um rapaz tinha o cabelo um
pouco maior era sinal da sua humilde condição.
Estávamos a chegar ao Natal, as férias iam começar
já daí a dois dias. Na hora do recreio, o João e na sua inocência de criança,
aproximou-se disfarçadamente do Eduardo, do Pedro e do David, eles eram os
meninos ricos. O João sentia alguma inveja, porque tudo possuíam e ele nada
tinha, e assim começou a ouvir as conversas.
Diziam eles:
- Sabes Pedro, já escrevi ao Pai Natal a pedir os
brinquedos que quero. E tu?
- Eu, também Eduardo, só não sei se o Pai Natal traz
todos, porque pedi muitos. E tu David?
- Já escrevi sim amigos, pedi uma bicicleta maior e
uns patins. Tenho a certeza que os vou receber. A mim o Pai Natal nunca falhou.
- E tu João? Que estás a ouvir a conversa, já
escreveste ao Pai Natal?
Assim falou o Eduardo com sorriso de gozo… a que os
outros fizeram parelha.
O João apanhado desprevenido não quis dar parte de
fraco e disse que sim.
No regresso a casa, foi matutando. Se aqueles
colegas escrevem e recebem, porque razão não escrevo também?
Se assim pensou melhor o fez. Com os cinco tostões
que tinha, para comprar uma carcaça e um rebuçado, passou nos CTT e comprou um
postal para escrever e pedir o que gostava de ter nesse Natal.
Depois sentou-se num banco do Jardim e com uma letra
cuidada começou a escrever o seu, tão desejado, pedido.
Querido Pai Natal,
Nunca tinha escrito a pedir um presente para mim no
Natal, porque ainda não sabia escrever e tinha vergonha de pedir a alguém que
soubesse, pois lá em casa todos são analfabetos.
Hoje na Escola ao ouvir os meus colegas, dizendo que
já tinham escrito ao pai Natal, tomei coragem e aqui estou.
Pai Natal, eu quero pouca coisa, gostava de ter uma
bola a sério, daquelas com que o Benfica joga. Também queria pedir uma boneca
para a minha irmã que tem dois anos.
Se o Pai Natal achar que é muita coisa, então traga
só a boneca para a minha irmã: eu não me importo de não receber a bola.
Muito obrigado Pai Natal
Beijos do João
Nota: a minha irmã chama-se Ana Maria.
O Natal passou e o João não recebeu a bola nem a
irmã a boneca.
Na Escola perguntou ao Eduardo, ao David e ao Pedro,
se tinham recebido os presentes. Eles com um largo sorriso de meninos com
superioridade, disseram que sim e que até tinham recebido outros que o Pai
Natal levara sem eles terem pedido.
Nesse dia, João regressou a casa muito triste.
Porque razão é que o Pai Natal levava os presentes aos meninos ricos e aos
pobres não? Se ele não trouxesse a bola ainda perdoava ao Pai Natal, mas não
ter trazido a boneca para a irmã não lhe perdoaria nunca.
Um dia, muito mais tarde compreendeu e então não
mais acreditou no Pai Natal nem no menino Jesus. Agora também não tinha mais
importância, sua irmã morrera, infelizmente já não precisava da boneca.
Comeira,
Noite de Natal de 2014
Dedicado
à minha irmã Ana Maria que partiu com dois anos e meio.
José
Manuel Bray
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