quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Carta ao Pai Natal


João andava na terceira classe daquela Escola que ficava longe do bairro onde morava. A Escola era no asfalto, mas o João vivia no bairro dos pobres.
O governo obrigava todas crianças a frequentar o ensino primário. Por isso o nosso pequeno, contra a vontade do pai, teve essa possibilidade: aprender a ler e a escrever. Já os irmãos mais velhos foram arredados dessa hipótese porque a lei, na idade deles, não impunha essa obrigatoriedade.
O nosso rapaz morava,  num bairro da lata, com os pais, dois irmãos mais velhos e uma irmã com pouco mais de dois anos.
Todos os dias o João fazia uma hora de caminho para alcançar a Escola e outra hora para chegar a casa. No regresso parava numa cantina para pobres, lá comia um prato de sopa e uma fatia de pão escuro.
Depois de chegar à sua barraca, João deixava a saca dos livros e ia ajudar o pai a apanhar ferro velho pelas ruas da cidade. Já noite e à luz do candeeiro a petróleo o miúdo fazia então os trabalhos de casa, neste caso os escolares.
João não era um super aluno, mas era razoável. Muito introvertido, pouco falava, mas escutava tudo com muita atenção,  inclusive as conversas dos seus camaradas, quase todos de famílias com grande poder económico.
Os tais colegas não lhe passavam cartão. As roupas, o calçado e o cabelo comprido denunciavam o estatuto de menino pobre. Naquela época não havia a moda do cabelo comprido e quando um rapaz tinha o cabelo um pouco maior era sinal da sua humilde condição.
Estávamos a chegar ao Natal, as férias iam começar já daí a dois dias. Na hora do recreio, o João e na sua inocência de criança, aproximou-se disfarçadamente do Eduardo, do Pedro e do David, eles eram os meninos ricos. O João sentia alguma inveja, porque tudo possuíam e ele nada tinha, e assim começou a ouvir as conversas.
Diziam eles:
- Sabes Pedro, já escrevi ao Pai Natal a pedir os brinquedos que quero. E tu?
- Eu, também Eduardo, só não sei se o Pai Natal traz todos, porque pedi muitos. E tu David?
- Já escrevi sim amigos, pedi uma bicicleta maior e uns patins. Tenho a certeza que os vou receber. A mim o Pai Natal nunca falhou.
- E tu João? Que estás a ouvir a conversa, já escreveste ao Pai Natal?
Assim falou o Eduardo com sorriso de gozo… a que os outros fizeram parelha.
O João apanhado desprevenido não quis dar parte de fraco e disse que sim.
No regresso a casa, foi matutando. Se aqueles colegas escrevem e recebem, porque razão não escrevo também?
Se assim pensou melhor o fez. Com os cinco tostões que tinha, para comprar uma carcaça e um rebuçado, passou nos CTT e comprou um postal para escrever e pedir o que gostava de ter nesse Natal.
Depois sentou-se num banco do Jardim e com uma letra cuidada começou a escrever o seu, tão desejado, pedido.

Querido Pai Natal,
Nunca tinha escrito a pedir um presente para mim no Natal, porque ainda não sabia escrever e tinha vergonha de pedir a alguém que soubesse, pois lá em casa todos são analfabetos.
Hoje na Escola ao ouvir os meus colegas, dizendo que já tinham escrito ao pai Natal, tomei coragem e aqui estou.
Pai Natal, eu quero pouca coisa, gostava de ter uma bola a sério, daquelas com que o Benfica joga. Também queria pedir uma boneca para a minha irmã que tem dois anos.
Se o Pai Natal achar que é muita coisa, então traga só a boneca para a minha irmã: eu não me importo de não receber a bola.
Muito obrigado Pai Natal
Beijos do João
Nota: a minha irmã chama-se Ana Maria.

O Natal passou e o João não recebeu a bola nem a irmã a boneca.
Na Escola perguntou ao Eduardo, ao David e ao Pedro, se tinham recebido os presentes. Eles com um largo sorriso de meninos com superioridade, disseram que sim e que até tinham recebido outros que o Pai Natal levara sem eles terem pedido.
Nesse dia,  João regressou a casa muito triste. Porque razão é que o Pai Natal levava os presentes aos meninos ricos e aos pobres não? Se ele não trouxesse a bola ainda perdoava ao Pai Natal, mas não ter trazido a boneca para a irmã não lhe perdoaria nunca.
Um dia, muito mais tarde compreendeu e então não mais acreditou no Pai Natal nem no menino Jesus. Agora também não tinha mais importância, sua irmã morrera, infelizmente já não precisava da boneca.
Comeira, Noite de Natal de 2014
Dedicado à minha irmã Ana Maria que partiu com dois anos e meio.
José Manuel Bray




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