sábado, 17 de maio de 2014

O casamento pelo civil

O casamento pelo civil
O rapaz entrou receoso no santuário do mestre Oliveira. Ali, naquela sala, o velhote de bigode retorcido era rei. Tratava-se do Registo Civil daquela modesta Freguesia situada na Lezíria Ribatejana, na margem direita do rio Tejo.
O senhor Oliveira bem viu o visitante, mas fingiu não se aperceber da sua entrada. Continuou a escrever a carta para sua filha que vivia lá para as bandas de Espanha. O idoso era um autodidacta, um dos poucos homens cultos da aldeia, além disso a sua elegante caligrafia fazia inveja a qualquer escrivão. Por tudo isso, ele colaborava nos diversos registos, nascimentos, baptizados, casamentos e óbitos. Tudo no civil, porque o tempo era da separação da Igreja do Estado.
O homem ainda novo, esperou pacientemente, dando voltas e mais voltas ao barrete que tinha entre as mãos, por sinal pouco calejadas. Cinco minutos depois, o secretário Oliveira terminou a sua missiva para a filha Joana, preencheu o subscrito, dobrou cuidadosamente a carta que colocou dentro do dito. Depois sem pressa, retorcendo o farto bigode, levantou o olhar encarando o rapaz, em voz grossa e enérgica, inquiriu, o receoso visitante.
- Então João Marialva, que te trás cá? Fala lá, não tenhas medo que não como criancinhas.
O homem a muito custo foi desbobinando a sua pretensão.
- Senhor Oliveira precisava da sua ajuda, estou numa enrascada e não sei como sair dela.
O velho manhoso com expressão seráfico interpelou o sacaninha.
- João, explica-me tudo com muita calma, não omitas nada.
- Desculpe que quer dizer com não omitas nada?
- Não me escondas nada meu ignorante.
Então, o rapaz lá contou a sua estória e a sua pretensão. O mestre Oliveira já sem o tal sorriso sarcástico, foi ouvindo o enredo, fazendo de vez em vez uma ou outra pergunta.
Para simplificar, vou resumir por palavras minhas.
O João namorava a Maria uma rapariga de uma aldeia vizinha. No namoro o par adiantou-se, a família da moça exigiu uma reparação, senão dava cabo do rapaz. Por sua vez a família do João não aceitava a rapariga. Aconselhado por alguém sabido, armado em esperto o moço pensou fazer um casamento falso para calar a boca aos pais da rapariga e assim ter uma folga para saber que fazer no futuro. Para isso foi ter com o senhor Oliveira, por sinal amigo do seu abastado pai.
Após dar a conhecer o seu problema e fazer o seu pedido, ficou esperando com a viseira descaída a resposta do velhote.
- Quer dizer, comeste a miúda e agora queres uma forma de te safares.
- Era isso mestre Oliveira, ajude-me por amor de Deus.
Seguiu-se um longo silêncio, o rapaz continuava de olhos pregados no chão aguardando a atitude do escrivão. Pensou que não haveria problema porque o Oliveira era amigo do seu pai, nas vadiagens em que os dois homens eram peritos. Por fim o nosso velho sabido, falou.
- João, vais trazer duas testemunhas para tudo parecer mais real. Não podem ser bêbedos, nem malucos. Não te esqueças de trazer também a Maria. Venham cá amanhã à hora da sesta.
O rapaz partiu feliz, estava desenrascado. Não havia nada como ser filho de homem rico, ainda por cima amigo do escrivão e companheiro nas tertúlias de mulheres, guitarradas, cavalos e copos.
No dia seguinte, lá estavam as duas testemunhas e o jovem casal. O senhor Oliveira apareceu vestido a rigor, com os olhos rindo cheios de ironia.
- Vamos lá tratar da papelada.
Mandou sentar os quatro e passou a meia hora seguinte a escrever no livro dos registos, fazendo aqui e ali algumas perguntas sobre dados essenciais. Tudo registado com letra bonita, de escrivão ou doutor. Por fim avançou para o acto final.
 - João, aceitas Maria para tua esposa? Maria, aceitas João para teu esposo? As testemunhas têm alguma coisa a declarar contra?
Eles aceitaram-se mutuamente, as testemunhas nada tinham contra. No fim todos assinaram! O casamento estava feito.
- Muito obrigado senhor Oliveira, quanto devo?
- Nada meu rapaz, foi o casamento que mais prazer me deu fazer. Pega na tua mulher e leva-a para tua casa!
- Mas senhor Oliveira… Que quer dizer?
- Meu sacana, quer dizer que estás mesmo casado! Pensavas que faria um casamento falso? És mesmo burro. Logo falo com o teu pai. Felicidade para ti, Maria.
Marinha Grande, 16 de Agosto de 2013
José Bray
Nota: Esta estória é baseada num acontecimento verídico, passado no limiar da primeira República.


Sem comentários:

Enviar um comentário