O casamento pelo
civil
O rapaz entrou
receoso no santuário do mestre Oliveira. Ali, naquela sala, o velhote de bigode
retorcido era rei. Tratava-se do Registo Civil daquela modesta Freguesia
situada na Lezíria Ribatejana, na margem direita do rio Tejo.
O senhor Oliveira
bem viu o visitante, mas fingiu não se aperceber da sua entrada. Continuou a
escrever a carta para sua filha que vivia lá para as bandas de Espanha. O idoso
era um autodidacta, um dos poucos homens cultos da aldeia, além disso a sua
elegante caligrafia fazia inveja a qualquer escrivão. Por tudo isso, ele
colaborava nos diversos registos, nascimentos, baptizados, casamentos e óbitos.
Tudo no civil, porque o tempo era da separação da Igreja do Estado.
O homem ainda
novo, esperou pacientemente, dando voltas e mais voltas ao barrete que tinha
entre as mãos, por sinal pouco calejadas. Cinco minutos depois, o secretário
Oliveira terminou a sua missiva para a filha Joana, preencheu o subscrito,
dobrou cuidadosamente a carta que colocou dentro do dito. Depois sem pressa,
retorcendo o farto bigode, levantou o olhar encarando o rapaz, em voz grossa e
enérgica, inquiriu, o receoso visitante.
-
Então João Marialva, que te trás cá? Fala lá, não tenhas medo que não como
criancinhas.
O homem a muito custo
foi desbobinando a sua pretensão.
-
Senhor Oliveira precisava da sua ajuda, estou numa enrascada e não sei como
sair dela.
O velho manhoso
com expressão seráfico interpelou o sacaninha.
-
João, explica-me tudo com muita calma, não omitas nada.
-
Desculpe que quer dizer com não omitas nada?
-
Não me escondas nada meu ignorante.
Então, o rapaz lá
contou a sua estória e a sua pretensão. O mestre Oliveira já sem o tal sorriso
sarcástico, foi ouvindo o enredo, fazendo de vez em vez uma ou outra pergunta.
Para simplificar,
vou resumir por palavras minhas.
O João namorava a
Maria uma rapariga de uma aldeia vizinha. No namoro o par adiantou-se, a
família da moça exigiu uma reparação, senão dava cabo do rapaz. Por sua vez a
família do João não aceitava a rapariga. Aconselhado por alguém sabido, armado
em esperto o moço pensou fazer um casamento falso para calar a boca aos pais da
rapariga e assim ter uma folga para saber que fazer no futuro. Para isso foi
ter com o senhor Oliveira, por sinal amigo do seu abastado pai.
Após dar a
conhecer o seu problema e fazer o seu pedido, ficou esperando com a viseira
descaída a resposta do velhote.
-
Quer dizer, comeste a miúda e agora queres uma forma de te safares.
-
Era isso mestre Oliveira, ajude-me por amor de Deus.
Seguiu-se um longo
silêncio, o rapaz continuava de olhos pregados no chão aguardando a atitude do
escrivão. Pensou que não haveria problema porque o Oliveira era amigo do seu
pai, nas vadiagens em que os dois homens eram peritos. Por fim o nosso velho
sabido, falou.
-
João, vais trazer duas testemunhas para tudo parecer mais real. Não podem ser
bêbedos, nem malucos. Não te esqueças de trazer também a Maria. Venham cá
amanhã à hora da sesta.
O rapaz partiu
feliz, estava desenrascado. Não havia nada como ser filho de homem rico, ainda
por cima amigo do escrivão e companheiro nas tertúlias de mulheres,
guitarradas, cavalos e copos.
No dia seguinte,
lá estavam as duas testemunhas e o jovem casal. O senhor Oliveira apareceu
vestido a rigor, com os olhos rindo cheios de ironia.
-
Vamos lá tratar da papelada.
Mandou sentar os
quatro e passou a meia hora seguinte a escrever no livro dos registos, fazendo aqui e
ali algumas perguntas sobre dados essenciais. Tudo registado com letra bonita,
de escrivão ou doutor. Por fim avançou para o acto final.
- João, aceitas Maria para tua esposa? Maria,
aceitas João para teu esposo? As testemunhas têm alguma coisa a declarar
contra?
Eles aceitaram-se
mutuamente, as testemunhas nada tinham contra. No fim todos assinaram! O
casamento estava feito.
-
Muito obrigado senhor Oliveira, quanto devo?
-
Nada meu rapaz, foi o casamento que mais prazer me deu fazer. Pega na tua
mulher e leva-a para tua casa!
-
Mas senhor Oliveira… Que quer dizer?
-
Meu sacana, quer dizer que estás mesmo casado! Pensavas que faria um casamento
falso? És mesmo burro. Logo falo com o teu pai. Felicidade para ti, Maria.
Marinha Grande, 16
de Agosto de 2013
José Bray
Nota: Esta estória
é baseada num acontecimento verídico, passado no limiar da primeira República.
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