quinta-feira, 16 de maio de 2013

A capa escarlate



Há muitos anos atrás, ainda as aldeias não tinham electricidade e a água era das fontes, um rapaz da Ermegeira foi ao habitual baile de sábado que se fazia no Maxial. Era um evento rotineiro frequentado pelos rapazes e raparigas vindas de duas léguas em redor da pequena freguesia. No excelente salão de um palacete com função social, juntava-se imensa gente, mas de um modo geral quase todos se conheciam, em especial os mais assíduos.
Aquele baile no sábado, dia seis do mês de Março de mil novecentos e quarenta e três, ficou para sempre gravado a letras de fogo na memória do rapaz da Ermegeira.
Ela apareceu ninguém sabe de onde, embrulhada numa longa capa escarlate que deixou no bengaleiro. Os longos cabelos negros desciam-lhe pelas costas até aos quadris, que se adivinhavam através do vestido branco enfeitado por fitas azul-marinho. A fazer contraste com o cabelo, um rosto belo mas que não sorria, muito alvo quase transparente, uma boca carnuda, um nariz arrebitado e uns olhos negros enormes. Sem dúvida uma visão quase divina, se sorrisse, o quadro seria perfeito.
A rapaziada do baile ficou toda com os corninhos no ar, sentindo-se inferiorizados não tiveram coragem de avançar com pedido para dançar com enigmática rapariga, o famoso sinal à distância. Foi então que o rapaz da Ermegeira decidiu tentar a sorte, com uma táctica diferente, avançou devagar olhando a rapariga nos olhos, perguntou à estranha se precisava de alguma coisa. Ela disse que não, então ele convidou-a para uma dança, a rapariga sem dar um sorriso disse que sim. A beldade avançou para ele e ao som de uma valsa rodopiaram pelo salão. Foram horas de dança, ninguém sabe do que falaram, se é que houve diálogo, especialmente da parte da rapariga.
A manhã vinha aí, em breve. A jovem pediu a capa no bengaleiro, solicitou depois ao seu par um copo de água. Quando o jovem regressou com a bebida ela já tinha partido, sem hesitar foi a trás dela.
A rapariga parecia voar, dirigindo-se na direcção do Vilar, no fim da povoação virou à direita encaminhando-se na sentido do Montejunto e do cemitério. O portão fechado parecia ser obstáculo, mas não foi, atravessou-o como uma cortina de fumo. O rapaz viu isso ao longe, o portão estava fechado à chave e tinha pontas de seta no topo, então,sem hesitar ele saltou o muro e entrou também no cemitério. Olhou para todos os lados e não a viu mais, procurou entre os mausoléus mas nada. A madrugada chegara, os primeiros alvores apareceram do lado da montanha. Foi então que o rapaz viu algo que o aterrorizou, sobre uma campa estava a capa escarlate que a mulher usara, fugiu em direcção à sua aldeia e só parou quando entrou em casa.
A campa tinha um pequeno monumento erigido em honra de Maria das Dores falecida a 6 de Março de mil oitocentos e oitenta, um sábado. O jovem da Ermegeira estivera a dançar toda a noite com o fantasma da sua bisavó.
José Bray, 13/5/2013

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