terça-feira, 4 de novembro de 2014

A Escola e o Pobre!


A Escola e o Pobre
Parte I - O princípio
O mês de Setembro estava a chegar ao fim. Naquele ano da década de cinquenta, na  escola recem inaugurada, os professores sobre a orientação do director,  o doutor Aníbal Bajouco, estavam reunidos para tratar de diversos assuntos.
A certa altura o director abordou um tema que criou alguma celeuma. 
- Meus senhores, caros colegas: vou começar a quarta classe com quase quarenta alunos. Trinta de bom nível social, dez de famílias muito pobres e disfuncionais. Uma coisa vos garanto, os rapazes de fracos recursos vão ter muita dificuldade em ter aproveitamento para poderem fazer o exame da quarta. No que respeita à admissão ao liceu, nem pensar: não vão conseguir! O que vale é que nenhum se vai inscrever nesse exame, porque o seu destino será uma oficina, marçano ou para as obras…um ou outro vai desistir e cair na vadiagem.
Assim falava o professor director daquela escola primária (situada no extremo do bairro de Alvalade), perante uma plateia de professores. Uma jovem docente com ideias progressistas, chegada há um ano ao ensino, tentou fazer um contraditório.
- Mas senhor director: não quero, contrariar a sua tese, mas não será que um, ou outro rapaz, venha a distinguir-se se for bem apoiado? A inteligência é exclusiva das classes dominantes? Penso que não!
Logo um professor de cabelo untuoso, barriga de calão e carácter subserviente, achou-se na obrigação, desnecessária, de apoiar as ideias do professor sénior, chefe daqueles professores que compunham a pequena plateia.
- Lá vem a menina com as suas ideias “pra-frentex”, para não lhe chamar outra coisa. O senhor director sabe bem do que fala. Também lhe digo…
O Director, que até não simpatizava com aquele professor, interrompeu o paleio do mesmo, antes que o outro dissesse alguma inconveniência.
- Calma Raposo, onde foi descobrir esse calão do pra-frentex? Digo-lhe já que não gostei nada, ainda mais vindo de um professor da minha Escola.
O homem corou e mais parecendo um tomate maduro, pensou. – Era melhor ter ficado calado.
- Professora Celeste, a menina ainda é muito inexperiente por isso o seu idealismo. Não sou só eu que tenho esta opinião sobre os alunos das classes desfavorecidas da nossa sociedade. Claro que me baseio na minha longa vivência. Através dos meus quase cinquenta anos de ensino, passaram por mim muitas turmas e milhares de alunos. Os catedráticos na matéria são todos da minha opinião, incluindo o nosso grande guia: na parede está a sua imagem.
O Mateus, professor de meia-idade, há muito queimado pelo sistema, para o qual se estava nas tintas, achou por bem fazer uma graça, própria do seu cinismo e espírito anárquico.
- Desculpa lá Bajouco, estás a referir-te à imagem da foto ou à imagem do crucifixo? Estão ambos na parede...o guia espiritual e o outro.
A plateia a custo susteve o riso. O director fingiu não ouvir, estava habituado aos dislates do Mateus. Com aquele não havia nada fazer, era um bom professor, simpatizava com ele: achando até graça ao seu humor negro.
- Podem pensar que faço discriminação: não meus senhores. A verdade é: a pobreza não é boa conselheira, os pais são incultos, alguns mesmo analfabetos, o alcoolismo nas famílias também motiva atraso nos miúdos. Mais coisas haveria para focar, mas para terminar; é fundamental criar um mecanismo de auto estima nos rapazes. Podem pensar que não é importante mas é.
Mais uma vez o Mateus se manifestou.
- Concordo com quase tudo que disseste Bajouco, em especial na questão da auto-estima. Experimentem vir para a Escola, esfomeados, rotos e descalços e depois venham-me dizer o que sentem. Não é Celeste, não é Raposo? Mas Bajouco, não aceito que um pobre não possa ser um aluno superior, mesmo não tendo dinheiro para as explicações, que é um dos vossos problemas.

Todos embatucaram, só Celeste sorriu pensando. - Este colega é um porreirão, vou gostar dele…
- Vai agora começar o ano, vamos observar e depois no fim comentamos. Vai uma aposta Mateus? Um almoço para todos os professores? …
- Aceito Bajouco! Mas muito antes vamos tirar conclusões…
- Está combinado: agora meus senhores: vamos à vida.
Com isto o professor doutor Aníbal Bajouco director daquela escola de Alvalade, deu como encerrada a reunião. Dentro de dias, oito de Outubro, iniciava-se o ano lectivo.
Parte II - Primeiros dias
Sou o Manuel Luís Teodoro, filho de pai incógnito e mãe solteira com quem vivo. Hoje comecei as aulas na Escola 112 que fica no extremo do Bairro de Alvalade. As instalações foram inauguradas no ano lectivo anterior, são modernas e muito diferentes das escolas, tipo Estado Novo. Anteriormente frequentava a 33 que ficava mais perto do Campo Grande, mas como mudámos para um quarto na avenida Dom Rodrigo da Cunha, fui transferido para a 112 neste ano lectivo que agora começa.
Todos os dias vou muito constrangido para as aulas. Somos muito pobres, por isso ando muito mal vestido e nos pés os ténis de baixo custo estão rotos. A roupa muito usada e com remendos, está acatitada e não tenho agasalho para o frio. Para completar o ramalhete, ando com a trunfa crescida, que é sinal de pobreza. Todos os dias faço das tripas coração para não desistir de ir para a Escola. Esta cena aconteceu quando andava na segunda classe, quando saia de casa no lugar de ir para a 33, ia para uns terrenos jogar à bola com outros miúdos pobres como eu.
Na minha nova turma da quarta classe, estão trinta e nove alunos, quase todos ricos. Se calhar muitos são só remediados, mas para mim são abastados. Meia dúzia é como eu, pobres, sujos, mal vestidos, mal calçados, e mal-educados. Devo ser o que menos tem, mas não sou sujo nem tenho falta de educação: minha mãe não admitia.
Em relação aos outros pobres, tenho algumas vantagens: sou simpático, não conflituoso e bom aluno. Ser bom na escola é a minha arma para ter coragem para batalhar com a pobreza.
O meu mestre é velhote, chama-se Bajouco e é simultaneamente director da Escola. Nesta há oito turmas, duas por cada um dos quatro anos. Para lá do alto muro, fica a área das raparigas. Não as vemos, só nos exteriores, mas elas saem a horas diferentes para evitar os encontros de sexo oposto. Há mais sete professores, sendo três homens e quatro mulheres. Ainda não os conheço…
Gostei já de alguns colegas e não embirrei com nenhum. Eu, mais os outros pobres fomos colocados nas últimas carteiras e o professor mal olhou para nós. O senhor Bajouco, disse ser provisório, porque a distribuição dos lugares em breve seria por mérito. Só não percebi o critério inicial: ou percebi?
Não quero falar mais da pobreza, mas sou obrigado a isso. Como não tinha dinheiro para os livros, cadernos, lápis, borracha, etc., os mesmos foram fornecidos pela assistência social. Os livros estavam podres de velho, mas a antipática funcionária da secretaria, ainda recomendou com maus modos: - não quero os livros estragados!
Ao almoço e como não podia deixar de ser,  os carenciados iam à sopa dos pobres.

Parte III - Meses depois
Continuava pobre, mas ia sobrevivendo, o meu orgulho dava-me forças para suportar o meio ambiente, agora já tinha aliados na pessoa de meia dúzia de colegas e de dois professores. Estes eram: a professora Celeste e o professor Mateus: ela, simpática e linda, ele, mau feitio mas irónico, muitas vezes a dar para o cómico. 
Após as aulas começarem, o mestre pôs a rapaziada a fazer testes sobre a matéria da terceira classe. Para seu espanto o melhor conjunto de testes foram os meus. Talvez contrariado, lá colocou a malta pela classificação dos testes, por isso fiquei na primeira carteira, sendo o meu camarada o Carvalhosa, rapaz obeso, sem beleza mas simpático. Fiquei Satisfeito! Os restantes pobres continuaram no fundo da sala, inclusive dois abandonaram entretanto a escola.
Nas semanas que se seguiram à abertura das aulas, o mestre deu bastante matéria, apertando com todos. Com todos não, com os pobres o professor, não forçava muito. Depois seguiam-se testes e mais testes. Ficava sempre em primeiro, o segundo é que variava.
Dos camaradas pobres como eu, recordo bem dois: um com quase catorze anos, revoltado com a vida, vingava-se nos mais pequenos: o outro, rapaz pequeno, tinha a alcunha do ciganito, era um bom futebolista, por isso era sempre convidado para as partidas dos meninos de bem, tinha bom feitio e era muito sociável. Gostava muito dele, sempre que podia ia comigo para a minha Avenida brincar com a minha seita.
Por várias vezes fui obrigado a intervir em defesa dos meus amigos quando atacados pelo camarada do bairro da lata, que ficava a trezentos metros da escola. Devido a isso fiz muitos amigos entre os meninos ricos.
No Natal desse ano em que não tive prendas nem roupa nova, tive uma prenda na Escola. Fui recitar um poema de Camões, ensaiado pela bonita professora Celeste. Foi um êxito! Todos bateram muitas palmas.
Durante o beberete, fui muito elogiado, até a antipática da secretaria me veio dar um beijo. Em certa altura ouvi por acaso uma boca do Professor Mateus, dirigida ao meu mestre. – Meu caro Bajouco, vai preparando a massa para o almoço, porque a aposta está perdida. – Que seria, pensei?
Parte IV - Quase no fim do ano
Com a minha continuada pobreza, o ano foi chegando ao fim. O corpo crescia, mas a roupa não, o que valia é que o calor apertava e qualquer trapo servia para fazer uns calções ou uma camiseta.
O professor foi dando e bem a matéria, era realmente competente. Os testes continuaram e eu sempre na frente: o segundo, terceiro e quatro lugares, iam alternando. Em todo o ano só houve uma semana que não fui o primeiro. Vou contar…
O professor era um homem calmo, nunca se excitava nem ralhava alto, nem com os mais reguilas. Dava reguadas em algumas situações, mas não exagerava. Nunca me tratou mal, mas olhava para mim com um certo desprezo. Um dia num teste tive dois erros numa palavra, não sei como fiz aquilo, normalmente nunca dava erros. O Bajouco, chamou-me e deu-me quatro reguadas. Senti que ele ficou feliz, porque falhei! Saí nesse dia muito por baixo. Foram os amigos que me vieram consolar, em especial o ciganito e o Carvalhosa. O ciganito, então fez-me chorar e rir com o seu comentário. – Manel, então eu que passo a vida a levar reguadas ainda aqui estou, para a semana voltas ao primeiro lugar.
Na verdade, assim foi, mas nunca mais pude ver com bons olhos o meu professor.
A amizade, com os meus camaradas, foi o mais gratificante da minha quarta classe. Tinha já lido e relido vezes sem conta “O Coração”, um clássico da literatura juvenil. Obra que todas as crianças e adultos deviam ler. Todas as personagens do livro, as encontrava na minha turma: pela vida fora nunca mais me saíram do pensamento. Os amigos eram muitos, mas a amizade com o Carvalhosa, ultrapassou tudo e todos. Curiosamente no decorrer do ano lectivo a amizade alastrou ao seu irmão, pai e mãe.
E assim cheguei ao fim do ano. Fácil foi passar com distinção, eu o mais pobre era o melhor aluno!
Parte V - O fim.
Tudo o que começa chega ao fim. Mas quero ainda contar alguns pormenores desta estória que aqui conto. Entreguei à personagem principal a fala directa das partes II, III e IV, para ele com palavras suas contar o seu ponto de vista. Manuel, por respeito a sim próprio não quis expor-se muito. Mas eu vou fazê-lo, porque o leitor tem o direito de saber tudo.
É fácil de confirmar que o director Bajouco estava enganado, perdeu a aposta, por isso pagou mesmo o almoço aos outros professores: o Mateus não perdoou.
No fim do ano lectivo, na festa final, o Manuel Luís Teodoro foi a estrela, ao recitar diversos poemas de Camões, Antero e Florbela, tudo ensaiado pela professora Celeste. O rapaz, humildemente vestido, ofuscou tudo e todos. Ele era efectivamente o mais pobre de todos os miúdos que andaram naquele ano na Escola 112.
As quatro reguadas que Manuel apanhou e tanto o feriram na sua dignidade, foi um acto cruel do professor Bajouco, por sentir que ia perder a aposta e ver que a sua teoria caía por terra ao não poder impedir que o mais pobre fosse de longe o melhor aluno da turma.
Mas ainda quero narrar mais um episódio que o próprio Manuel não quis contar.
Naquela época, em especial nos centros com mais poder económico, os professores, quando davam a quarta classe, aproveitavam para dar explicações aos seus alunos para os preparar para o exame de admissão ao liceu. Com isso facturavam uma boa nota.
O professor e director da 112 não fugia a essa regra, ainda por demais numa zona em que ninguém deixava de mandar os miúdos à explicação, só não iam os pobres, mas esses também não iam ao exame de admissão.
Essas explicações eram um conto do vigário aceite por quase todos. Uma criança preparada para o exame da quarta estava preparada para a admissão ao liceu. As explicações eram uma falácia.
Mas o Manuel quis ir a exame, sabendo que não precisava das explicações para nada. Contudo sua mãe, como sabia que os outros iam às explicações, sentiu-se na obrigação de dar uma satisfação ao professor do filho: dizendo que o Manuel não podia ir às explicações porque ela não podia pagar.
Que fez o Bajouco? Disse à pobre mãe.
– Vocês não se querem sacrificar pelos vossos filhos, depois não se admirem se tiverem uma surpresa.
Grande sacana: deixou a pobre senhora ir com a coração a sangrar, quando sabia que o Manuel não precisava e até era uma estupidez ele ir às explicações. Ele tinha a obrigação de fazer exactamente o contrário, deixar a senhora descansada.
Sabem o que aconteceu? O Manuel foi fazer a admissão ao liceu no Luís de Camões. Entre muitos milhares, foi um dos melhores aluno, senão o melhor.
Por educação o Manuel não conta isto no seu relato, mas nunca perdoou ao seu professor da quarta, que por curiosidade até era parecido com o guia da nação.
Para terminar, quero só escrever mais umas linhas. Estávamos em pleno Estado Novo, anos cinquenta.
Sabem que aconteceu a seguir a este estudante brilhante? Uma ironia! Não pode estudar devido à mãe solteira não ter meios económicos.
Meus senhores, isto sim: era a merda do Salazarismo!
José Bray, 19/7/2014


Nota: esta narrativa (verdadeira) é uma homenagem aos meninos pobres do Estado Novo, que não podiam estudar por não terem meios e porque tinham de ir trabalhar para ajudar no agregado familiar. Depois havia os meninos pobres e muito inteligentes. Para estes então, era uma dupla injustiça.



6 comentários:

  1. Crianças pobres, carenciadas e com falta de meios continuam a haver, simplesmente toda a parte docente e social nas escolas mudou toda a problemática existente na década de 50.
    Hoje, há problemas bem mais graves, tais como o bullying, em que psicologicamente e fisicamente as crianças são atormentadas pela maneira como se vestem, calçam ou até mesmo pelo seu bom comportamento.

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  3. No estado novo não havia tantas escolas privadas e muito menos universidades. Não estou de acordo com essa da DISCRIMINAÇÃO social, a escola publica era para todos e era frequentada por todas as classes. Não havia era a obrigatoriedade de ter a 4ª classe e muitos desistiam. No tempo dos nossos pais e por razões várias, muitos nem chegaram a ir à escola.

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  4. Concordo com quase tudo, mas não esquecer que a degeneração do ensino sente-se mais nas camadas com menos recursos. Ou seja, há na mesma discriminação. São os professores que o afirmam! Dizer que são todos iguais é uma falácia...nem agora, muito menos no Estado Novo. Embora não seja uma discriminação exactamente igual, não deixa de existir.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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