A Escola e o Pobre
Parte I - O princípio
O mês de Setembro estava a chegar ao fim.
Naquele ano da década de cinquenta, na escola recem inaugurada, os
professores sobre a orientação do director,
o
doutor Aníbal Bajouco, estavam reunidos para tratar de diversos assuntos.
A certa altura o director abordou um tema que criou alguma celeuma.
A certa altura o director abordou um tema que criou alguma celeuma.
- Meus senhores, caros
colegas: vou começar a quarta classe com quase quarenta alunos. Trinta de bom
nível social, dez de famílias muito pobres e disfuncionais. Uma coisa vos
garanto, os rapazes de fracos recursos vão ter muita dificuldade em ter
aproveitamento para poderem fazer o exame da quarta. No que respeita à admissão
ao liceu, nem pensar: não vão conseguir! O que vale é que nenhum se vai
inscrever nesse exame, porque o seu destino será uma oficina, marçano ou para
as obras…um ou outro vai desistir e cair na vadiagem.
Assim falava o professor director daquela escola primária (situada
no extremo do bairro de Alvalade), perante uma plateia de professores. Uma
jovem docente com ideias progressistas, chegada há um ano ao ensino, tentou
fazer um contraditório.
- Mas senhor director: não
quero, contrariar a sua tese, mas não será que um, ou outro rapaz, venha a distinguir-se
se for bem apoiado? A inteligência é exclusiva das classes dominantes? Penso
que não!
Logo um professor de cabelo untuoso, barriga de calão e
carácter subserviente, achou-se na obrigação, desnecessária, de apoiar as
ideias do professor sénior, chefe daqueles professores que compunham a pequena
plateia.
- Lá vem a menina com
as suas ideias “pra-frentex”, para não lhe chamar outra coisa. O senhor
director sabe bem do que fala. Também lhe digo…
O Director, que até não simpatizava com aquele professor,
interrompeu o paleio do mesmo, antes que o outro dissesse alguma
inconveniência.
- Calma Raposo, onde
foi descobrir esse calão do pra-frentex? Digo-lhe já que não gostei nada, ainda
mais vindo de um professor da minha Escola.
O homem corou e mais parecendo um tomate maduro, pensou. – Era melhor ter ficado calado.
- Professora Celeste, a
menina ainda é muito inexperiente por isso o seu idealismo. Não sou só eu que
tenho esta opinião sobre os alunos das classes desfavorecidas da nossa
sociedade. Claro que me baseio na minha longa vivência. Através
dos meus quase cinquenta anos de ensino, passaram por mim muitas turmas e
milhares de alunos. Os catedráticos na matéria são todos
da minha opinião, incluindo o nosso grande guia: na parede está a sua imagem.
O Mateus, professor de meia-idade, há muito queimado pelo
sistema, para o qual se estava nas tintas, achou por bem fazer uma graça,
própria do seu cinismo e espírito anárquico.
- Desculpa lá Bajouco,
estás a referir-te à imagem da foto ou à imagem do crucifixo? Estão ambos na
parede...o guia espiritual e o outro.
A plateia a custo susteve o riso. O director fingiu não
ouvir, estava habituado aos dislates do Mateus. Com aquele não havia nada
fazer, era um bom professor, simpatizava com ele: achando até graça ao seu
humor negro.
- Podem pensar que faço
discriminação: não meus senhores. A verdade é: a pobreza não é boa conselheira,
os pais são incultos, alguns mesmo analfabetos, o alcoolismo nas famílias
também motiva atraso nos miúdos. Mais coisas haveria para focar, mas para
terminar; é fundamental criar um mecanismo de auto estima nos rapazes. Podem
pensar que não é importante mas é.
Mais uma vez o Mateus se manifestou.
- Concordo com quase
tudo que disseste Bajouco, em especial na questão da auto-estima. Experimentem
vir para a Escola, esfomeados, rotos e descalços e depois venham-me dizer o que
sentem. Não é Celeste, não é Raposo? Mas Bajouco, não aceito que um pobre não
possa ser um aluno superior, mesmo não tendo dinheiro para as explicações, que
é um dos vossos problemas.
Todos embatucaram, só Celeste sorriu pensando. - Este colega é um porreirão, vou gostar
dele…
- Vai agora começar o
ano, vamos observar e depois no fim comentamos. Vai uma aposta Mateus? Um
almoço para todos os professores? …
- Aceito Bajouco! Mas
muito antes vamos tirar conclusões…
- Está combinado: agora
meus senhores: vamos à vida.
Com isto o professor doutor Aníbal Bajouco director daquela
escola de Alvalade, deu como encerrada a reunião. Dentro de dias, oito de Outubro,
iniciava-se o ano lectivo.
Parte II - Primeiros dias
Sou o Manuel Luís Teodoro, filho de pai incógnito e mãe
solteira com quem vivo. Hoje comecei as aulas na Escola 112 que fica no extremo
do Bairro de Alvalade. As instalações foram inauguradas no ano lectivo
anterior, são modernas e muito diferentes das escolas, tipo Estado Novo.
Anteriormente frequentava a 33 que ficava mais perto do Campo Grande, mas como
mudámos para um quarto na avenida Dom Rodrigo da Cunha, fui transferido para a
112 neste ano lectivo que agora começa.
Todos os dias vou muito constrangido para as aulas. Somos
muito pobres, por isso ando muito mal vestido e nos pés os ténis de baixo custo
estão rotos. A roupa muito usada e com remendos, está acatitada e não tenho agasalho
para o frio. Para completar o ramalhete, ando com a trunfa crescida, que é
sinal de pobreza. Todos os dias faço das tripas coração para não desistir de ir
para a Escola. Esta cena aconteceu quando andava na segunda classe, quando saia
de casa no lugar de ir para a 33, ia para uns terrenos jogar à bola com outros
miúdos pobres como eu.
Na minha nova turma da quarta classe, estão trinta e nove
alunos, quase todos ricos. Se calhar muitos são só remediados, mas para mim são
abastados. Meia dúzia é como eu, pobres, sujos, mal vestidos, mal calçados, e
mal-educados. Devo ser o que menos tem, mas não sou sujo nem tenho falta de
educação: minha mãe não admitia.
Em relação aos outros pobres, tenho algumas vantagens: sou
simpático, não conflituoso e bom aluno. Ser bom na escola é a minha arma para
ter coragem para batalhar com a pobreza.
O meu mestre é velhote, chama-se Bajouco e é simultaneamente
director da Escola. Nesta há oito turmas, duas por cada um dos quatro anos.
Para lá do alto muro, fica a área das raparigas. Não as vemos, só nos
exteriores, mas elas saem a horas diferentes para evitar os encontros de sexo
oposto. Há mais sete professores, sendo três homens e quatro mulheres. Ainda
não os conheço…
Gostei já de alguns colegas e não
embirrei com nenhum. Eu, mais os outros pobres fomos colocados nas últimas
carteiras e o professor mal olhou para nós. O senhor Bajouco, disse ser
provisório, porque a distribuição dos lugares em breve seria por mérito. Só não
percebi o critério inicial: ou percebi?
Não quero falar mais da pobreza, mas sou obrigado a isso.
Como não tinha dinheiro para os livros, cadernos, lápis, borracha, etc., os
mesmos foram fornecidos pela assistência social. Os livros estavam podres de
velho, mas a antipática funcionária da secretaria, ainda recomendou com maus
modos: - não quero os livros estragados!
Ao almoço e como não podia deixar de ser, os carenciados iam à sopa dos pobres.
Parte III - Meses depois
Continuava pobre, mas ia sobrevivendo, o meu orgulho dava-me
forças para suportar o meio ambiente, agora já tinha aliados na pessoa de meia
dúzia de colegas e de dois professores. Estes eram: a professora Celeste e o
professor Mateus: ela, simpática e linda, ele, mau feitio mas irónico, muitas
vezes a dar para o cómico.
Após as aulas começarem, o mestre pôs a rapaziada a fazer
testes sobre a matéria da terceira classe. Para seu espanto o melhor conjunto
de testes foram os meus. Talvez contrariado, lá colocou a malta pela
classificação dos testes, por isso fiquei na primeira carteira, sendo o meu
camarada o Carvalhosa, rapaz obeso, sem beleza mas simpático. Fiquei
Satisfeito! Os restantes pobres continuaram no fundo da sala, inclusive dois
abandonaram entretanto a escola.
Nas semanas que se seguiram à abertura das aulas, o mestre
deu bastante matéria, apertando com todos. Com todos não, com os pobres o
professor, não forçava muito. Depois seguiam-se testes e mais testes. Ficava
sempre em primeiro, o segundo é que variava.
Dos camaradas pobres como eu, recordo bem dois: um com quase
catorze anos, revoltado com a vida, vingava-se nos mais pequenos: o outro,
rapaz pequeno, tinha a alcunha do ciganito, era um bom futebolista, por isso
era sempre convidado para as partidas dos meninos de bem, tinha bom feitio e
era muito sociável. Gostava muito dele, sempre que podia ia comigo para a minha
Avenida brincar com a minha seita.
Por várias vezes fui obrigado a intervir em defesa dos meus
amigos quando atacados pelo camarada do bairro da lata, que ficava a trezentos
metros da escola. Devido a isso fiz muitos amigos entre os meninos ricos.
No Natal desse ano em que não tive prendas nem roupa nova,
tive uma prenda na Escola. Fui recitar um poema de Camões, ensaiado pela bonita
professora Celeste. Foi um êxito! Todos bateram muitas palmas.
Durante o beberete, fui muito elogiado, até a antipática da
secretaria me veio dar um beijo. Em certa altura ouvi por acaso uma boca do
Professor Mateus, dirigida ao meu mestre. –
Meu caro Bajouco, vai preparando a massa para o almoço, porque a aposta está
perdida. – Que seria, pensei?
Parte IV - Quase no fim do ano
Com a minha continuada pobreza, o ano foi chegando ao fim. O
corpo crescia, mas a roupa não, o que valia é que o calor apertava e qualquer trapo
servia para fazer uns calções ou uma camiseta.
O professor foi dando e bem a matéria, era realmente
competente. Os testes continuaram e eu sempre na frente: o segundo, terceiro e quatro
lugares, iam alternando. Em todo o ano só houve uma semana que não fui o
primeiro. Vou contar…
O professor era um homem calmo, nunca se excitava nem ralhava
alto, nem com os mais reguilas. Dava reguadas em algumas situações, mas não
exagerava. Nunca me tratou mal, mas olhava para mim com um certo desprezo. Um
dia num teste tive dois erros numa palavra, não sei como fiz aquilo,
normalmente nunca dava erros. O Bajouco, chamou-me e deu-me quatro reguadas.
Senti que ele ficou feliz, porque falhei! Saí nesse dia muito por baixo. Foram
os amigos que me vieram consolar, em especial o ciganito e o Carvalhosa. O
ciganito, então fez-me chorar e rir com o seu comentário. – Manel, então eu que passo a vida a levar
reguadas ainda aqui estou, para a semana voltas ao primeiro lugar.
Na verdade, assim foi, mas nunca mais pude ver com bons olhos
o meu professor.
A amizade, com os meus camaradas, foi o mais gratificante da
minha quarta classe. Tinha já lido e relido vezes sem conta “O Coração”, um
clássico da literatura juvenil. Obra que todas as crianças e adultos deviam
ler. Todas as personagens do livro, as encontrava na minha turma: pela vida
fora nunca mais me saíram do pensamento. Os amigos eram muitos, mas a amizade
com o Carvalhosa, ultrapassou tudo e todos. Curiosamente no decorrer do ano
lectivo a amizade alastrou ao seu irmão, pai e mãe.
E assim cheguei ao fim do ano. Fácil foi passar com distinção,
eu o mais pobre era o melhor aluno!
Parte V - O fim.
Tudo o que começa chega ao fim. Mas quero ainda contar alguns
pormenores desta estória que aqui conto. Entreguei à personagem principal a
fala directa das partes II, III e IV, para ele com palavras suas contar o seu
ponto de vista. Manuel, por respeito a sim próprio não quis expor-se muito. Mas
eu vou fazê-lo, porque o leitor tem o direito de saber tudo.
É fácil de confirmar que o director Bajouco estava enganado,
perdeu a aposta, por isso pagou mesmo o almoço aos outros professores: o Mateus
não perdoou.
No fim do ano lectivo, na festa final, o Manuel Luís Teodoro
foi a estrela, ao recitar diversos poemas de Camões, Antero e Florbela, tudo
ensaiado pela professora Celeste. O rapaz, humildemente vestido, ofuscou tudo e
todos. Ele era efectivamente o mais pobre de todos os miúdos que andaram
naquele ano na Escola 112.
As quatro reguadas que Manuel apanhou e tanto o feriram na
sua dignidade, foi um acto cruel do professor Bajouco, por sentir que ia perder
a aposta e ver que a sua teoria caía por terra ao não poder impedir que o mais
pobre fosse de longe o melhor aluno da turma.
Mas ainda quero narrar mais um episódio que o próprio Manuel
não quis contar.
Naquela época, em especial nos centros com mais poder
económico, os professores, quando davam a quarta classe, aproveitavam para dar
explicações aos seus alunos para os preparar para o exame de admissão ao liceu.
Com isso facturavam uma boa nota.
O professor e director da 112 não fugia a essa regra, ainda
por demais numa zona em que ninguém deixava de mandar os miúdos à explicação,
só não iam os pobres, mas esses também não iam ao exame de admissão.
Essas explicações eram um conto do vigário aceite por quase
todos. Uma criança preparada para o exame da quarta estava preparada para a
admissão ao liceu. As explicações eram uma falácia.
Mas o Manuel quis ir a exame, sabendo que não precisava das
explicações para nada. Contudo sua mãe, como sabia que os outros iam às explicações,
sentiu-se na obrigação de dar uma satisfação ao professor do filho: dizendo que
o Manuel não podia ir às explicações porque ela não podia pagar.
Que fez o Bajouco? Disse à pobre mãe.
– Vocês não se querem sacrificar
pelos vossos filhos, depois não se admirem se tiverem uma surpresa.
Grande sacana: deixou a pobre senhora ir com a coração a
sangrar, quando sabia que o Manuel não precisava e até era uma estupidez ele ir
às explicações. Ele tinha a obrigação de fazer exactamente o contrário, deixar
a senhora descansada.
Sabem o que aconteceu? O Manuel foi fazer a admissão ao liceu
no Luís de Camões. Entre muitos milhares, foi um dos melhores aluno, senão o
melhor.
Por educação o Manuel não conta isto no seu relato, mas nunca
perdoou ao seu professor da quarta, que por curiosidade até era parecido com o
guia da nação.
Para terminar, quero só escrever mais umas linhas. Estávamos
em pleno Estado Novo, anos cinquenta.
Sabem que aconteceu a seguir a este estudante brilhante? Uma
ironia! Não pode estudar devido à mãe solteira não ter meios económicos.
Meus senhores, isto
sim: era a merda do Salazarismo!
José Bray, 19/7/2014
Nota: esta narrativa (verdadeira) é uma homenagem aos
meninos pobres do Estado Novo, que não podiam estudar por não terem meios e porque
tinham de ir trabalhar para ajudar no agregado familiar. Depois havia os
meninos pobres e muito inteligentes. Para estes então, era uma dupla injustiça.
Crianças pobres, carenciadas e com falta de meios continuam a haver, simplesmente toda a parte docente e social nas escolas mudou toda a problemática existente na década de 50.
ResponderEliminarHoje, há problemas bem mais graves, tais como o bullying, em que psicologicamente e fisicamente as crianças são atormentadas pela maneira como se vestem, calçam ou até mesmo pelo seu bom comportamento.
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ResponderEliminarNo estado novo não havia tantas escolas privadas e muito menos universidades. Não estou de acordo com essa da DISCRIMINAÇÃO social, a escola publica era para todos e era frequentada por todas as classes. Não havia era a obrigatoriedade de ter a 4ª classe e muitos desistiam. No tempo dos nossos pais e por razões várias, muitos nem chegaram a ir à escola.
ResponderEliminarConcordo com quase tudo, mas não esquecer que a degeneração do ensino sente-se mais nas camadas com menos recursos. Ou seja, há na mesma discriminação. São os professores que o afirmam! Dizer que são todos iguais é uma falácia...nem agora, muito menos no Estado Novo. Embora não seja uma discriminação exactamente igual, não deixa de existir.
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