domingo, 14 de outubro de 2018

O Milagre


O Milagre
O dia nasceu muito quente e abafado em Pedra Seca. A pequena aldeia situada no planalto daquela serra pedregosa continuava em seca, a mais longa de que havia memória.
Estava latente, no ar, um estado de loucura pronto a extravasar em qualquer momento, nos habitantes do burgo.
Desde que Susejo chegara muito ferido a Pedra Seca e fora recolhido pela viúva Aras, não mais chovera na região.
Quase todos queriam um bode expiatório!
No largo da Fonte, defronte da casa de Aras, as mulheres da aldeia iam aos poucos chegando, fazendo um ajustamento com intenções agressivas.
Os rostos esfomeados e afogueados mostravam uma exaltação colectiva. A bomba estava prestes a estoirar.
Uma das mulheres, talvez a mais destabilizada gritou histérica e as outras fizeram coro. Todas com os braços no ar e uma pedra em cada mão.
“Vem cá para fora sua grande puta. Tu és a responsável por esta seca que é um castigo divino. Vem cá para fora sua puta, sua bruxa, para receberes o merecido castigo.”
Um pouco mais longe no exterior da taberna, uma vintena de homens, porcos, feios e maus, estava atenta. Com um sorriso maldoso os labregos esperavam um grande espectáculo circense.
No outro extremo do largo, encostado ao esgotado chafariz um pobre cego, atento, sofria. Tudo sentia, tudo ouvia, tudo cheirava, tudo via.
“Isto está mau! Pobre Aras, pobre viúva minha benfeitora.”
Aras, saiu ao largo com Susejo ao lado, de imediato começou a ser apedrejada.
Sem perder tempo Susejo colocou-se à frente da viúva recebendo no corpo as pedradas. Ao mesmo tempo de braços erguidos ao céu, gritava.
“Aras, está inocente, ela não pecou, nada há entre nós. Ela nunca desonrou a vossa aldeia.”
Mas as mulheres em estado de loucura não paravam a lapidação.
Ao longe no exterior da taberna os energúmenos babavam-se de prazer. Viviam em raiva pois a viúva nunca cedeu aos instintos porcos daqueles javardos.
Junto ao chafariz o cego chorava com pena e raiva por nada poder fazer.
Abraçando Susejo por trás, Aras tentava recuar com ele para dentro de casa. Ele ia descaindo e já estava quase de joelhos.
De súbito um grosso pingo caiu do céu, depois uma dúzia e por fim uma tromba de água desceu sobre Terra Seca.
Tudo estancou menos a chuva…
O cego gritou bem alto.
“Milagre, milagre, milagre.”
As mulheres completamente molhadas caíram de joelhos exclamando e rezando.
“Milagre, milagre, milagre.”
Aras, com esforço levou Susejo para casa muito ferido.
Ao longe os homens envergonhados reentraram na taberna para mais um dia de bebedeira.
Junto ao chafariz que já deitava água, o cego chorava de alegria.
Dentro de sua casa a viúva Aras tratava com carinho as feridas de Susejo.
Mais tarde os dois fizeram amor carnal pela primeira vez!
12/10/2018 – José Bray
Nota:
Hoje acordei a pensar na estória de Susejo e Aras, revi a cena do apedrejamento. Vi então na minha mente tudo que aconteceu, inclusive os pormenores do largo da Fonte onde Aras morava.
Decidi então, voltar a escrever o episódio.
Contar o mesmo, mas agora com mais alma!
E escrevi mesmo!
12/10/2018 – José Bray




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