O Milagre
O dia nasceu muito quente e abafado em Pedra Seca. A pequena
aldeia situada no planalto daquela serra pedregosa continuava em seca, a mais
longa de que havia memória.
Estava latente, no ar, um estado de loucura pronto a
extravasar em qualquer momento, nos habitantes do burgo.
Desde que Susejo chegara muito ferido a Pedra Seca e fora
recolhido pela viúva Aras, não mais chovera na região.
Quase todos queriam um bode expiatório!
No largo da Fonte, defronte da casa de Aras, as mulheres da
aldeia iam aos poucos chegando, fazendo um ajustamento com intenções agressivas.
Os rostos esfomeados e afogueados mostravam uma exaltação
colectiva. A bomba estava prestes a estoirar.
Uma das mulheres, talvez a mais destabilizada gritou
histérica e as outras fizeram coro. Todas com os braços no ar e uma pedra em
cada mão.
“Vem cá para fora sua grande puta. Tu és a responsável por
esta seca que é um castigo divino. Vem cá para fora sua puta, sua bruxa, para
receberes o merecido castigo.”
Um pouco mais longe no exterior da taberna, uma vintena de
homens, porcos, feios e maus, estava atenta. Com um sorriso maldoso os labregos
esperavam um grande espectáculo circense.
No outro extremo do largo, encostado ao esgotado chafariz um
pobre cego, atento, sofria. Tudo sentia, tudo ouvia, tudo cheirava, tudo via.
“Isto está mau! Pobre Aras, pobre viúva minha benfeitora.”
Aras, saiu ao largo com Susejo ao lado, de imediato começou a
ser apedrejada.
Sem perder tempo Susejo colocou-se à frente da viúva recebendo
no corpo as pedradas. Ao mesmo tempo de braços erguidos ao céu, gritava.
“Aras, está inocente, ela não pecou, nada há entre
nós. Ela nunca desonrou a vossa aldeia.”
Mas as mulheres em estado de loucura não paravam a
lapidação.
Ao longe no exterior da taberna os energúmenos
babavam-se de prazer. Viviam em raiva pois a viúva nunca cedeu aos instintos
porcos daqueles javardos.
Junto ao chafariz o cego chorava com pena e raiva por
nada poder fazer.
Abraçando Susejo por trás, Aras tentava recuar com ele
para dentro de casa. Ele ia descaindo e já estava quase de joelhos.
De súbito um grosso pingo caiu do céu, depois uma dúzia
e por fim uma tromba de água desceu sobre Terra Seca.
Tudo estancou menos a chuva…
O cego gritou bem alto.
“Milagre, milagre, milagre.”
As mulheres completamente molhadas caíram de joelhos
exclamando e rezando.
“Milagre, milagre, milagre.”
Aras, com esforço levou Susejo para casa muito ferido.
Ao longe os homens envergonhados reentraram na taberna
para mais um dia de bebedeira.
Junto ao chafariz que já deitava água, o cego chorava
de alegria.
Dentro de sua casa a viúva Aras tratava com carinho as
feridas de Susejo.
Mais tarde os dois fizeram amor carnal pela primeira
vez!
12/10/2018 – José Bray
Nota:
Hoje acordei a pensar na estória de Susejo e Aras,
revi a cena do apedrejamento. Vi então na minha mente tudo que aconteceu, inclusive
os pormenores do largo da Fonte onde Aras morava.
Decidi então, voltar a escrever o episódio.
Contar o mesmo, mas agora com mais alma!
E escrevi mesmo!
12/10/2018 – José Bray
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