Os meus contos
Uma metáfora com muita escrita, muito papel quadriculado e
muita tinta preta
A revolução da escrita
Primeira parte:
Pensava eu, pensava os meus heterónimos que os problemas com
as contestações tinham sido ultrapassados; agora estava tudo na paz dos deuses.
Afinal pensávamos errado!
Vindo de duras tarefas, chegava eu ao meu rincão, com a calma
possível após um domingo com muito xadrez e reuniões também ligadas com a arte
de Caissa.
No salão grande estava reunido o meu acervo da escrita. Todos
à minha espera…
Era os romances, os contos, os poemas, as memórias, obras não
acabadas e ainda muito mais que nem vou descrever. Não conferi, mas devia estar
quase tudo que saiu da minha mente e da mente dos meus heterónimos.
Era mais uma contestação, era mais uma revolução. A revolta
da escrita.
Bolas! Ainda não havia muito tempo tínhamos saído da
revolução tripla e já estávamos metidos noutra confusão.
--Que querem vocês de mim? – Perguntei com pouco agastado,
ainda mais cansado como na verdade estava.
Avançou como porta-voz dos contestatários o “Negro e Branco”,
no seu estatuto de longa-metragem mais antiga.
--Queremos ser publicados! Não entendemos a sua embirração na
matéria. Queremos uma solução, não queremos ficar para sempre no anonimato. Não
queremos ficar a apodrecer num baú… Queremos uma resposta, uma explicção!
Podia de imediato dar uma resposta ao imbróglio, uma ou mais.
Decidi não o fazer a quente, vou ter calma e tratar o assunto com luvas de
pelica.
Depois de um pequeno hiato de silêncio, falei então:
--Entendo a vossa pretensão, ela tem a sua lógica. Hoje não
tenho cabeça para vos atender com a consideração que me merecem. Estou muito
cansado, minha cabeça está sem açúcar, preciso de descansar.
Parei por momentos, mostrando um natural cansaço, mas também
manhoso. Depois continuei:
--Vamos dialogar, ouvir os vossos argumentos, discutir um dia
destes com a cabeça e o corpo repousado. Que tal se for na próxima sexta-feira?
--Por nós tudo bem. Nada temos para fazer, a não ser estar
arrecadados pelas gavetas e estantes da casa.
Depois da data marcada mobilizei os meus heterónimos da
escrita para estarem também presentes.
Ufa, por esta não esperava; as escritas a reclamarem. Só me
saíam duques de paus da minha cartola da fantasia.
Segunda parte:
No dia marcado lá estávamos todos para tentar um consenso ou
não…
Os meus dois mil livros pediram autorização para assistir ao
plenário revolucionário. Autorizei com a condição de não fazerem ruído ou
qualquer comentário.
Junto a mim estavam todos os heterónimos que assinaram textos
literários.
Da parte da escrita, além dos que estiveram presente no
domingo, juntaram-se a eles os meus diários e os blocos A4 e A5 quadriculados
preenchidos com textos escritos a tinta preta.
Como costume, pedi ao Druida para fazer a acta da reunião.
Depois de verificar que não faltava de parte a parte nenhum
dos interessados, representantes ou convidados; pedi a palavra:
--Antes de entrámos nos trabalhos queria pedir a todos um
minuto de silêncio. Minuto de silêncio em homenagem à memória de todas as
canetas de tinta preta, falecidas ao serviço da nossa escrita.
Depois do emotivo minuto de silêncio, cantámos em uníssono o
hino da caneta de tinta preta.
Caneta de tinta preta
Obrigado caneta de tinta preta
Esgotada na nobre missão
De escrever tanta maravilha
Na quadrícula dos cadernos
Obrigado caneta de tinta preta
Está no céu a vossa alma bela
Por cá estamos agradecidos
Nosso coração tem saudade
Caneta de tinta preta da magia
Heroína das nossas romarias
Não mais serás esquecida!
1/10/2018
Seguiu-se uma silenciosa estrondosa ovação que todos os
corações emocionados bem ouviram.
Foi merecido este espaço emotivo dedicado às canetas de tinta
preta, que uso quase sempre. Muitas centenas vazaram sua alma para o papel
quadriculado para dar forma, cor e imagem aos meus textos, através da minha mão
direita.
Depois fomos para a revolução! Para a revolta da minha
escrita.
Terceira parte:
Embora já conhecesse a pretensão fundamental da minha
escrita, queria que os seus representantes desenvolvessem mais a pretensão.
Queria que os meus heterónimos ouvissem para além do que lhes tinha
transmitido.
O porta-voz desta vez não foi o “Negro e Branco”, quem se
levantou para falar e apresentar as pretensões foi o “ Vagabundo Filósofo e
Utópico”.
Sem dúvida uma longa-metragem muito completa e bela, recheada
de muitas estória à volta da estória principal.
O livro falou:
--A questão é simples patrão da banda, Ortónimo de muitos heterónimos
aqui presente. Nós queremos ver a luz do sol e o luar da lua. Queremos ser se
publicados. O vosso acervo é muito extenso, tem todo o género e muita coisa de qualidade.
Será justo que eu já escrito há meia dúzia de anos, ainda esteja nos pendentes?
Será justo que ninguém tenha acesso à vossa escrita?
Seguiu-se um silêncio barulhento no salão grande. Barulhento
no silêncio incomodativo que sentíamos através das páginas de cada livro.
Nem o escrever da acta se ouvia. Por associação recordei o
Vagabundo a meditar na grande Catedral junto ao altar.
Todos esperavam as minhas explicações. Rodei a vista por todo
o salão, lá estava todos de ar grave, incluindo os meus heterónimos. Sabia que
alguns estavam do lado dos insurrectos.
Por fim falei:
“Meus queridos filhos, todos nasceram do meu sangue; escrita
e heterónimos.
Não pensem que não vos compreendo, por vezes tenham dúvida
que esteja a proceder bem! Talvez não esteja a proceder com justiça. Talvez
esteja a ser egoísta. Talvez tenha ciúmes.
Sei que se forem publicadas a obra deixa de ser minha, passa
a ser de todos. Talvez eu queira os meus filhos só para mim?!
Não se ofendam, por vezes tenho dúvidas no que respeita à
qualidade. Não queria deitar ao mundo filhos deficientes.
Meus queridos, eu escrevo para respirar. Se o não fizer morro
com falta de ar como flor sem água.
Sabem qual a dimensão deste meu acervo que sois vós? Eu sei
meus filhos que vós não sabeis. Eu vos digo; dava para publicar acima de cem
livros.
Sabem que já fiz exemplares de quinze livros, meia dúzia de
cada, de forma quase artesanal. Sabem que tenho blogue quase com duzentos
textos.
Agora vou colocar duas questões:
Primeira é para vos perguntar se um dia publicar um livro
numa edição a sério, qual seria?
Vocês sabem? Eu não sei mesmo! Por isso a batata quente fica
do vosso lado.
Prometo editar aquele que todos vós escolherdes
democraticamente!
A segunda questão é para os meus amados heterónimos. Se algum
quiser publicar, força, avance porque terá o meu apoio.
Boa continuação de dia, meu acervo e meus heterónimos!”
Assim terminei a “Revolta da escrita”. Depois dei com encerrado
os trabalhos.
Amigo Druida pode fechar a acta.
Comeira, 1/10/2018
José Bray
José Bray
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