sábado, 30 de abril de 2011

Júlio Freire - 90 dias de Aljube!

O meu sogro foi uma personagem fascinante, não resisto ao desejo de falar da sua pessoa. Mais vezes o irei fazer! Será uma forma de homenagear a sua memória! Bray


Júlio Freire – O Aljube
Maio de mil novecentos e cinquenta e oito, eleições para a Presidência da República, Américo Tomas candidato do regime, Humberto Delgado candidato da oposição.
Era sábado, vésperas de eleições. Eleições? Não me façam rir, era tudo uma fantochada naquele tempo não havia essa coisa na política nacional, talvez houvesse em alguns clubes mas não no governo. Era Salazar, outra vez Salazar, sempre Salazar e quem ele lá metia para servirem de lacaios e de capacho. Na porta da padaria do Júlio Freire, o próprio mais alguns homens de meia-idade trocavam opiniões, falando um pouco de tudo, mas no acto do dia seguinte nem pensar, era preciso cuidado com os bufos. Um dos temas de conversa era a ida às sortes de alguns filhos dos presentes e de alguns ausentes, eles até estavam à espera da camioneta que havia de trazer os mancebos de volta.
Em dada altura, passou no sentido do cemitério o jipe da Guarda Nacional Republicana, que de republicana nada tinha, uns infelizes que para fugirem ao trabalho do campo tinham vendido a alma ao diabo, ganhando uma miséria, deslocados para longe de casa alimentando-se de pão e enchidos, desenvolvendo cancro no estômago devido a esse disparate alimentício. O Joaquim, um dos presente, disse entre dentes, filhos da puta!
Passados que foram quinze minutos o jipe voltou, parou junto do pequeno ajuntamento, os militares saltaram para fora com as ultrapassadas espingardas, sim, iguais às que assassinaram Catarina Eufémia que tinha um filho ao colo e outro no ventre. O mais graduado fazendo cara de mau e voz grossa, disse. Júlio Freire e Joaquim Mendrico, estão presos, entrem no jipe. E lá foram conforme estavam, o padeiro embora estando à sua porta não pôde mudar de roupa, foi obrigado a levar o casaco roto que usava na pesca. Ficaram os familiares em grande sofrimento e cheios de pânico.
Que se passava? Salazar, quis tirar de circulação todos os democráticos deste país, por isso a cena repetiu-se por todo o Portugal. Com esta prepotência atingiu dois objectivos, menos votos para a oposição e amedrontar os restantes. As prisões foram tantas que os PIDES e os bufos não chegaram para as encomendas, foi preciso a Guarda Nacional República e a Legião Portuguesa actuarem em força também!
Os dois companheiros de infortúnio foram levados para o posto da GNR na capital do distrito e sem quaisquer condições lá permaneceram até segunda-feira. Má cama, má comida, mau trato, a sorte (ironia) foi ser Maio, o tempo estava quente! Nesse dia um PIDE veio levantar os homens e de comboio seguiram para Lisboa, destino o Aljube. Alguém da terra os viu na estação e pensou que o destino era a aldeia de ambos, a notícia correu célere, as famílias ficaram ricas de esperança, mas era boato, o regresso aconteceu só passados noventa dias.
Júlio Freire e Joaquim de alcunha Canca, eram na verdade dois democratas de esquerda, um mais radical que o outro, mas homens honrados. O primeiro era mais pacífico no trato, mais tímido, o segundo não, era um revolucionário ardente sempre reagindo, por isso iria levar umas porradas enquanto esteve na prisão. Os dois homens sempre pensaram que após as eleições seriam soltos mas não, a viagem para a capital foi um choque para eles.
Nesta saga aconteceram algumas histórias dramáticas, mas também aconteceram algumas com graça no meio da desgraça! Vou contar uma que tem espírito.
Ao chegar ao Aljube, separaram o Freire do companheiro, começando a dança do terror. Edifício de pedra muito velho, portas de ferro pesadonas e rangedoras, lembravam os sons das prisões da Inquisição, escuridão e humidade. Tudo para atrofiar o mais valente. Por fim, lá instalaram o pobre padeiro na cela com pouca luz e com dois catres. Nessa altura, o Júlio Freire já perdera a força anímica entrando em depressão, perdeu a resistência e a esperança, sentado na enxerga começou a chorar convulsivamente! Com o sofrimento não reparou que ao fundo já lá estava outro preso. Foi então que ouviu uma voz triste com acentuado sotaque alentejano. Olhou, na outra cama um homem lia um papel.
-- Senhor Júlio não desanime porque hão-de vir melhores dias, pense na sua família, pense na sua filha que ainda precisa de si!
--Homem, você é bruxo ou foi posto aqui para me espiar? -- Assim inquiriu o Freire.
--O senhor não se aborreça porque isto foi a uma carta que eu escrevi a mim mesmo.
--Então como é que o senhor sabe que me chamo Júlio, e tenho uma filha? -- Voltou o padeiro a argumentar.
--Mas meu senhor, chamo-me Júlio e tenho uma filha! Fui eu que escrevi esta carta que estou a ler para me animar!
Os dois homens, olharam um para o outro, primeiro com desconfiança, depois riram com satisfação aliviando por algum tempo a pressão da cadeia.
José Bray -22/10/2010

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