Tinha pouco mais de seis anos, o Inverno aproximava-se, estava um dia lindo, límpido. O azul do céu, o verde dos prados, faziam contraste com as árvores que não tinham folhas.
Andava ao rabisco lá para os lados da Várzea. Durante a tarde o calor do Sol disfarçava o frio da época, o corpo sentia algum conforto. Decidi afastar-me do rio indo para as bandas da floresta que ficava para poente. Sabia que havia lá umas oliveiras e assim encheria mais facilmente o meu cabaz.
Rabisco misturado com muita brincadeira, o tempo foi passando, sem pensar que os dias são curtos na época, fui-me afastando mais. Por fim o cesto ficou cheio e pesado. Regressei!
Rapidamente, o Sol desapareceu lá para os lados do oceano, a noite chegou e o frio também cada vez mais intenso, a roupa era quase nenhuma e os pés a gelar nos sapatos de pele natural. O medo apoderou-se do meu pequeno corpo, olhei, a aldeia estava longe, já tinha vontade de chorar.
Era noite de Lua Nova, cada vez estava mais escura e fria. O Céu era um manto negro enfeitado por uma imensidão de estrelas, brilhando como nunca tinha visto ou reparado. A povoação ainda sem luz eléctrica, já não se vislumbrava.
Com o coração apertadinho, lá fui indo. Atravessei as vinhas, estas despidas de folhas pareciam um exército de aranhas gigantes. Segui depois junto ao rio, uma árvore era o retrato da morte com a sua gadanha. Finalmente cheguei à ponte romana.
De repente, vi! Lá estava ela a Moura Encantada, abraçada a um dos plátanos. Fiquei parado sem conseguir dar um passo, fascinado mas sem medo. Ela sorriu, fez um gesto para me aproximar, cheguei a um metro e a jovem estendeu-me a mão. Uma luz vinda de cima iluminava-lhe o rosto, era linda, feições muito correctas, olhos pretos, cabelo da mesma cor e pele muito branca.
Deu-me um beijo e falou para os plátanos.
«Já viram um menino tão bonito e bonzinho?»
As grandes árvores, parecendo tocadas pelo vento, ondulavam em sinal de confirmação.
Após fazer mais uma carícia, com um lindo sorriso mandou-me para casa, mas antes com voz muito doce sussurrou.
«Se tiveres saudades minhas vem até aqui nas noites de Lua Nova, cá estarei à tua espera.»
Cheguei são e salvo ao casebre, mas não contei a ninguém o que tinha visto.
Nas noites de Lua Nova lá ia ver a minha amiga. Um dia levei comigo o meu primo António Luís, ela estava lá mas o meu parente não a conseguiu ver, olhou para mim com uma expressão de tristeza e reprovação, desapareceu como uma bolha de sabão que rebenta. Voltei lá sozinho, mas a Moura Encantada nunca mais apareceu.
A partir daí, sempre que podia ia para o junto dos quatro gigantes, sentava-me na ponte e eles contavam-me histórias de encantar. Falavam de coisas passadas nas suas longas existência.
Um dia, parti para África, criei família e os anos passaram. Regressei à pátria dois anos após a entrega da última colónia portuguesa do continente negro.
Logo que me foi possível passei na aldeia e fui visitar os meus amigos plátanos que tão bons foram para mim quando era um menino e um pobre menino, tinham-se passado trinta anos.
Fiquei abismado quando cheguei ao rio! A velha ponte romana já não existia e dois dos plátanos tinham sido assassinados. Abracei os sobreviventes, sentei-me na nova construção, eficiente mas sem vida.
Pouco depois, uma brisa começou a fazer as folhas sussurrar, hipnotizado comecei a sentir e ouvir através de todos os poros do meu corpo e alma. Os dois gigantes transmitiam a história que vou resumir e contar à minha maneira.
Há muito tempo, ainda Jesus da Nazaré não filosofava nas pedras da Palestina, havia um vale maravilhoso no oeste da Ibéria.
Um pequeno rio de águas límpidas, cheio de peixe, fazia companhia ao vale da serra ao oceano. O Sol nascia nos montes e tinha o seu ocaso na floresta junto ao mar, banhando com o seu calor as boas terras do vale que tudo davam.
Nesse paraíso terrestre os homens viviam desde os confins do tempo. Estavam sempre a chegar novos povos, uns morenos e outros louros, uns bárbaros, outros cultos. Iam-se misturando com os naturais e todos se adoptavam à vida do vale.
Um dia o invasor romano chegou, o maior império da altura, metade do mundo conhecido estava sob a sua alçada. Bons militares, excelentes políticos e engenheiros eficientes. Construíram cidades, estradas e pontes. No vale construíram uma estrada e para atravessar o rio uma ponte, a ponte romana da nossa história.
Depois vieram os bárbaros, a pouco e pouco expulsaram os romanos, embora muitos tenham ficado e assimilado no contexto local. Um dia os árabes atravessaram o estreito e invadiram a Ibéria, conquistando quase tudo em 711, menos as Astúrias.
Era um povo muito culto, com uma arte bastante desenvolvida, gente asseada e profundamente tolerante relativamente aos povos conquistados. Alem disso, grandes amantes da natureza.
Nessa época uma menina de seis anos, uma bela princesa moura, plantou quatro plátanos, junto à ponte romana, um em cada canto. Cresceram com alguma dificuldade. Durante vinte anos, a princesa protegeu os irmãos que pouco a pouco se transformaram em gigantes.
Antes de morrer, a princesa exigiu que queria ser enterrada em campa simples, junto dos seus meninos. Consta que a linda moura aparecia nas noites de lua nova, para os agasalhar com o seu carinho.
Havia esta lenda nas redondezas, mas nunca ninguém falou que tinha visto a princesa, mas eu sei que é verdade.
Século a pós século, os irmãos foram acompanhando a vida do vale. Em especial sentiam a alma das duas aldeias, uma a leste outra a oeste. As pessoas ao passar sentavam-se na ponte, para descansar, fugir ao calor e à chuva ou simplesmente por gostarem de estar ao pé das árvores. Aí, os aldeões, ficavam com os seus pensamentos e os irmãos captavam esses fluidos e tudo sabiam da vida deles e dos outros.
Os animais, em especial as aves, vinham acolher-se na imensidão da sua protecção, para fugir ao calor, frio, ou qualquer predador, muitos faziam aqui o seu ninho.
Ali havia um equilíbrio profundo, a deusa da natureza e a princesa moura, faziam a protecção do vale, do rio, da ponte e de tudo o que tivesse vida.
Através dos tempos, continuaram as invasões, as guerras e as revoluções!
Ainda no tempo dos árabes, regressaram pouco a pouco os bárbaros, mas agora convertidos a Cristo. Aconteceram inúmeras guerras com o vizinho espanhol, guerras civis pais contra filhos e irmãos contra irmãos. Vieram as invasões francesas, queda da monarquia e implantação da república. Por fim o estado novo. Gerações e gerações nasceram e morreram.
Sobre a ponte passaram multidões através dos tempos, os quatro irmãos tudo viram, tudo ouviram, tudo sentiram…
Um dia chegou o chamado dia da liberdade. Os quatro irmãos, disseram uns para os outros. Agora é que este povo vai ser feliz, vai haver mais justiça social, todos vão ter possibilidade de estudar. Não vai haver, extremos, nem excesso de riqueza nem pessoas a passar fome. O meio ambiente vai estar protegido e os monumentos recuperados, vai ser um povo com H grande.
Mas!
O rio começou a ficar poluído, os peixes a boiar. Os campos abandonados. Os jovens a passar dizendo só asneiras faziam os plátanos corar de vergonha. Os estudantes começaram a ser doutores e engenheiros sem saberem escrever um texto ou saberem a tabuada.
Os quatro irmãos, a caminho dos dois mil anos, começaram a ficar tristes e desiludidos com os humanos, mal sabiam eles que o pior estava para vir.
Um dia chegaram uns senhores bem vestidos, vieram tirar medidas e mais medidas. Eram engenheiros mas as conversas acabavam todas com C. e no meio além do C. também entrava o F., a palavra Pá aparecia sempre em todas as frases. Eram os filhos da revolução.
Tempos depois apareceram as máquinas…
Dois dos irmãos, os do sul, foram assassinados, séculos de presença e de solidariedade destruídos numa manhã de grande calor. Depois foi a velha ponte romana, com quase dois mil anos de serviços ao povo. Pum!.. Pum!.. Pum!.. Por fim, toda a engenharia utilizada há tanto século ruiu sobre a batuta dos libertadores assassinos!
O vale ficou mutilado e muito mais pobre.
Levantaram-se algumas vozes, mas foram logo apelidados de reaccionários e fascistas.
No lugar da antiga ponte outra foi colocada, ferro e betão, feia, burra e sem vida.
Os dois irmãos, lá continuaram a cumprir a sua missão de tantas centenas de anos. Em baixo o rio corre poluído, passando sob a ponte que cumpre a sua missão mas sem alma e sem classe.
Quanto à princesa, devido ao desgosto, nunca mais apareceu junto aos plátanos, excepto quando lá vou em sonho nas noites de Lua Nova.
Regularmente, vou visitar os meus velhos amigos. Após um longo abraço, ouço os seus lamentos, chorando os irmãos assassinados. Tudo isto transmitido pelo sussurrar das folhas dirigidas pelo sábio maestro que é o vento.
Marinha Grande, 06 de Maio de 2003
José M. Bray
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