domingo, 16 de abril de 2017

A primeira vez...

A primeira vez...
A minha primeira vez… aconteceu quando já vivia na minha amada avenida. Não estava por lá há muito tempo. Talvez já tivesse passado três ou quatro meses após a minha vinda de Alverca.
Sei que ainda não era um verdadeiro capitão da relva. Ainda estava na recruta fazendo um estágio com os miúdos da rua. Rapazes que aos poucos ia conhecendo e que veriam a ser meus grandes amigos num futuro breve, amizade com uma vivência que duraria os próximos quatro anos.
Finalmente vivia com a minha mãe. Vim para o pé dela após a morte da minha irmãzinha de dois anos e meio.
Na verdade só vim viver com a minha mãe definitivamente com quase dez anos.
A minha vida até chegar à avenida foi muito triste. Infeliz mas nunca derrotado.
Este meu texto de menino não é para me lamentar, nem para cantar o fado choradinho. Quero contar sim, algo que me marcou e foi na altura um exorcismo à minha alma.
Durante a minha vida anterior, que recordo bem, andei sempre a lutar para não ser mal tratado. Sempre atento para não fazer nada que pudesse ter represálias. Coisa que, eu nem sempre consegui.
Tinha sempre um sorriso no rosto, nunca chorando para desabafar.
Vivia na aldeia em casa de familiares muito pobres, analfabetos e boçais.
É preciso dizer que era filho de pai incógnito e a minha mãe era muita jovem quando nasci. Foi obrigada a ir servir para ganhar para o meu sustento. Por isso não podia ter-me com ela.
Minha mãe, um dia arranjou um companheiro e foi-me buscar à terra. Mas ela não voltou a ter sorte…
O homem nunca me tratou mal, tenho vaga recordação dele. Uma viagem porque ele motorista de camião. Foi ele que me ofereceu o brinquedo da minha vida.
Minha mãe engravidou e o homem desapareceu. Segundo um dia me disseram, ele desonrou uma miúda e foi obrigado a casar.
Lá voltei para a terra, onde fiquei mais dois anos. Um dia uma tia levou-me para sua casa onde vivi até partir para a avenida, num dia quente de Junho.
Ela tratou-me sempre bem, mas o homem não.
A ida mais rápida para perto da minha mãe foi para a compensar no desgosto de perder a sua menina.
Contei tudo isto para perceberem o meu estado de espírito.
Voltemos à avenida!
Um dia andava a brincar com outro rapaz da minha idade, num dos nossos campos relvados.
Perto de nós, um homenzinho pequeno e magro, estava sentado num dos bancos do jardim. Tinha entre quarenta a cinquenta anos. Sou mau a calcular idades. Mas andava por aí.
Uma coisa, eu reparei. Tinha a expressão mais triste do mundo.
Lá continuou sentado bastante tempo, por vezes olhava para nós ou para as pessoas que passavam e nós para ele.
Cada vez o seu ar de tristeza aumentava. Senti que ele estava sofrendo muito, quase chorando.
Até que de súbito o homem deslizou e caiu para a relva.
Gritámos por socorro!
Rápido apareceu duas ou três donas de casa. Uma delas com um copo de água. Banhando-lhe as têmporas davam-lhe leves bofetadas…
O homem reagindo só disse:
--Estou morrendo de fome!
Depois começou a chorar…
As mulheres, entre elas, as da família, rápido foram buscar sopa e pão com doce.
O homem devagar foi comendo sempre chorando. Contou que estava desempregado e não tinha dinheiro para comida. Disse ter vergonha de pedir e roubar não queria.
Fui-me emocionando!
Foi então que o meu dique de dez anos de sofrimento rebentou. Chorei convulsivamente, chorei por todos os anos que não tinha chorado.
Depois acalmei! Senti que naquela tarde tinha chegado a adulto.
Foi assim a minha primeira vez…a primeira vez que chorei todas as mágoas do mundo.
Nota.
Esta cena já tinha sido descrita nos “Capitães da relva”. Agora foi descrita como conto independente.
A estória é a mesma, nada foi diferente, embora possivelmente com outras palavras. Nem sequer fui comparar a escrita anterior com esta.
FIM
29/3/2017
José Bray