domingo, 12 de fevereiro de 2017

Oliveira centenária

Oliveira centenária
Era véspera de Natal de um certo ano dum passado longínquo.
Joaquim do Vale decidiu ir após o almoço até ao velho olival que ficava do outro lado da várzea.
A sua intenção era ir ao rabisco das azeitonas. Aproveitar para colher uns míscaro, umas cagarrinhas e talvez até uns espargos. Tudo produtos muito úteis para sobrevivência da família.
Aquele centenário olival era sagrado segundo dizia o velho Druida da Montanha Mágica. Foi Susejo que me contou esta estória que agora vos relato.
Joaquim atravessou o rio na ponte romana, a caudal da corrente já saía do leito e estava quase a transbordar para a vasta várzea. A água cristalina provinha de uma nascente situada na parte oeste da Montanha.
Atravessou as vinhas, agora descarnadas de suas folhas. Do rio ao olival eram meia légua bem medida. Por fim o homem chegou ao seu destino.
Saíra da aldeia ainda o dia estava límpido, o sol brilhava, mas aos poucos tudo foi enegrecendo. Não tardou a acontecer uma tremenda tempestade com trovões após raios luminosos.
Joaquim, já no olival, sentiu-se no mato sem cachorro. Era impensável retornar à sua aldeia: só havia que esperar.
Rapidamente o rio transbordou naquela véspera de Natal, começando aos poucos a alagar a várzea, esta não tardou a ser um imenso lago.
Joaquim estava no olival e desejava regressar a casa antes de cair a noite. Contornar a várzea era uns cinco quilómetros, levaria algumas horas e debaixo da tempestade era impossível.
O homem estava duplamente preocupado, preocupado com a preocupação que ia de certeza na sua casa com o seu atraso.
A mulher e o filho, de quatro anos, esperavam ansiosos por ele.
A tempestade não abrandava e o Joaquim do Vale sentia-se sitiado. Tinha de aguardar, não tinha forças nem coragem para arriscar atravessar o lago, nem para andar os quilómetros e contornar toda a várzea.
Ainda por demais a noite chegara, às dezassete horas já estava escuro. Ia ser uma noite de breu e dramática.
Lá longe via luz na sua casa, assim como nas casas dos seus conterrâneos.
Um desânimo enorme apoderou-se do Joaquim que o levou a exclamar em voz alta:
-Senhora das Neves ajuda-me nesta aflição. Se me deres essa graça, juro não mais faltar à missa de domingo.
Para azar do Joaquim a santa devia estar noutra e não ouviu o seu pedido, ou fingiu não ouvir.
Com o avançar da noite o homem estava a ficar em pânico. Todas as oliveiras pareciam monstros ou espectros.
Quem já andou pela floresta nestas condições conhece a sensação.
No olival havia uma oliveira enorme com centenas de anos. Essa árvore tão grande e frondosa tinha uma gruta na sua base. Foi lá que o Joaquim se refugiou.
A muito custou e após várias tentativas acendeu uma pequena fogueira e preparou-se para passar a noite de Natal. Por sorte havia na gruta uns troncos de oliveira que como sabem é uma madeira que leva muito tempo em combustão.
Estava Joaquim nesta azáfama quando de repente sentiu perto de si um vulto que o observava atentamente. Surpreendido questionou a sombra:
-Quem é você? Como aqui chegou com a cheia?
-Não vim de lado algum, sou daqui. Sou o espírito da oliveira.
-Vá gozar com os da sua laia!
-E você Joaquim, que faz aqui na noite de Natal, longe da aldeia, longe de sua família? Que faz para cá da várzea nas terras que não são suas?
-Vim dar uma volta, o dia estava bonito embora frio. Fui apanhado pela tempestade e pela rápida cheia.
-Ah, ah, ah! Passear em véspera de Natal para fora da sua área de conforto. Uma tolice!
-Então e vossemecê que deseja?
-Já lhe disse que sou daqui.
-Está a gozar comigo ou é louco. Pode por acaso ajudar-me a sair desta situação?
-Posso sim! Mas preciso de uma paga.
-Uma paga! Mas o quê?
-Não posso dizer, mas se aceitar a minha ajuda, quando lhe pedir a paga você tem de obedecer, senão algo de mal lhe vai acontecer e à sua família também.
-Mas que paga é essa? Não posso saber?
-Não Joaquim do Vale! Concorda ou não? Aceita ou não a minha ajuda e as condições?
Joaquim sentiu-se entalado, estava num dilema. Que fazer?
Acabou por ceder, cada vez era mais tarde e a cheia não diminuía. Com a cabeça fez sinal à sombra que sim.
-Então feche os olhos, conte até cem, depois de os abrir vá embora.
Joaquim assim fez. Ao chegar a cem abriu os olhos. Para seu espanto estava tudo na mesma. Continuava junto da centenária oliveira, era noite e a cheia mantinha-se.
-Ora aldrabão! – Exclamou.
Mas olhando ao seu redor reparou numa canoa com uma vara dentro. Era isso! Agora era preciso conduzir e orientar a canoa na direcção da sua aldeia, atravessando a várzea e passando o rio.
Do lado de lá do rio a cem metros começava o burgo.
Joaquim assim fez, com esforço porque não tinha experiência com canoas ou qualquer outra embarcação.
Com muito cansaço lá conseguiu!
Eram onze e cinquenta e cinco, da noite de Natal, quando Joaquim do Vale entrou em casa. Manuela com o filho adormecido no colo chorava em silêncio.
Com um abraço longo e emotivo, a mulher, selou a chegada do seu homem.
Com o passar dos dias Joaquim foi esquecendo o insólito episódio passado no olival no Natal passado. Não tardou a ficar convencido que tudo não tinha passado de um delírio devido ao pânico: ou simplesmente um pesadelo.
O tempo foi passando e não tardou a chegar o novo Natal.
Um dia, já perto da época natalícia, apareceram na zona uns lenhadores contratados pelo senhor feudal, dono do olival e de quase toda a região.
A missão dos homens era cortar as velhas oliveiras e parte de um eucaliptal, para mais tarde plantarem vinha.
Com tudo isto a centenária oliveira sagrada estava condenada.
Na ante véspera do Natal, dia vinte e três, Joaquim saiu de casa para ir pegar no batente na fábrica da telha onde há muito ganhava a vida.
Ia a pé e concentrado nos seus pensamentos quando deu por uma presença ao seu lado. Uma sombra que via ou não via, só imaginava.
Disse em som brando a tal coisa que não sabia bem quem era mas já calculava. Ou seja o espírito da oliveira:
-Joaquim chegou a altura de pagar a sua divida.
-Que quer então espírito?
-Quero que impeça a morte da oliveira sagrada que lhe deu protecção na noite de tempestade do Natal passado.
-Mas que vão fazer à oliveira?
-Homem, então não sabe? Vão cortá-la depois do Natal! Toda a gente sabe isso.
-Mas que posso fazer para o impedir?
-Não faço a mínima ideia! Joaquim, o problema é seu. Tem essa dívida para pagar. Se a oliveira morrer, vossemecê também morre, assim como a sua família.
Após dizer isto a sombra num ápice foi-se. Joaquim não sabia que fazer. Decidiu ir falar com o Druida da Montanha Mágica e pedir conselho.
O velho sábio deu-lhe uma ideia que Joaquim aceitou e pôs em prática.
Na noite de Natal pegou na mulher e filho e foi ao palácio do senhor feudal. Descalços, mal vestidos e com uma corda ao pescoço. Ao chegar foram levados à presença do dono da região. Este ficou pasmado com a visão que lhe apareceu no salão:
- Que querem vilões? Digam depressa que tenho pouco tempo.
Joaquim adiantou-se e falou, enquanto Manuela abraçava o filho:
-Meu senhor vão cortar o velho olival que fica junto da minha aldeia. Há lá uma oliveira sagrada. Se ela for cortada e morrer, nós os três vamos morrer também, segundo nos disse o espírito da oliveira.
Nesse momento, mãe e filho vieram abraçar Joaquim do Vale que humildemente olhava para o senhor feudal.
-Que desejas de mim homem?
- Senhor, por favor, poupe aquela centenária oliveira!
Tudo aquilo tocou fundo na alma e coração daquele senhor que só disse:
-Vão para casa e tenham um bom Natal. Vou pensar!
O senhor feudal que não era má pessoa, pensou e decidiu não só poupar a oliveira mas também todo o olival.
Desta forma Joaquim pagou a sua divida e viveu feliz com a família durante muitos anos.
O tempo passou, muito tempo mesmo. O filho de Joaquim partiu para longe e não voltou. Manuela partira também mas não para longe, descansava no cemitério da aldeia.
Era noite de Natal, Joaquim já muito idoso caminhava pelo centenário olival. Recordava a noite mágica de há muito tempo.
Distraído deixou-se ficar e nem reparou que uma violenta tempestade se tinha formado. Ao cair da noite a trovoada era intensa e a quantidade de relâmpagos iluminavam tudo, da montanha à aldeia, ao rio, à várzea e ao olival.
Joaquim como há quarenta anos abrigou-se na centenária oliveira, árvore sagrada.
Caiam faíscas por todo o olival!
No dia seguinte, dia de Natal, um pastor foi encontrar a Oliveira Sagrada e o Joaquim do Vale, carbonizados numa amálgama de corpos e almas.
Comeira, 17 de Dezembro de 2016
José Bray

Dedicado ao meu tio Aberto, ao meu padrinho Silvério e à minha aldeia!

A senhora do Montejunto

A senhora do Montejunto
Era a noite da consoada, num Natal de há muito. Trezentos anos e doze, ou treze gerações, separam esse momento do momento em que agora escrevo.
Lá fora estava um frio de congelar a água nos ribeiros. Dentro do lar do Domingos Francisco e sua mulher Josefa Maria o ambiente estava confortável, aquecido pelo fogo da lareira.
Que bem se estava naquela ampla divisão, que servia para tudo, inclusive, por vezes, para dormir.
Na verdade o fogo crepitava na larga chaminé da cozinha, a partir das dezassete horas, após a ida do sol para o outro lado da Terra. Mas na verdade era a Terra a dar a outra face ao astro rei.
Foi-se o calor do sol chegou o calor da lareira!
As casas das aldeias da minha zona, tinham sempre uma divisão comunitária, onde tudo se passava, inclusive fazer filhos e pari-los. Não era diferente na Aldeia Galega da Merceana.
Lá eram guardadas as produções agrícolas que vinham da propriedade distribuída. Lá se cozia o pão caseiro, além da trivial refeição. Lá se guardavam as roupas. Lá ficavam os animais domésticos e não só quando o frio apertava. A lareira rasteira era sem dúvida o coração de qualquer lar. Era assim nas casas com algumas condições para viver.
As necessidades, tanto as sólidas como as liquidas, eram expelidas no exterior, ajudando a fazer estrume e a matar crianças com os vírus das mais variadas doenças. Vírus que despoletavam algumas epidemias de tempos a tempos.
Uma comprida mesa de pinho, dois bancos corridos, mais dois individuais, um louceiro, várias tulhas, muitos cestos de verga, mais um ou dois tarecos completavam o mobiliário da cozinha. Não faltando a talha para o azeite, as bilhas para água e o barril de cem litros para o vinho. Com ligação à lareira também havia o forno para cozer pão.
Cinco seres marcavam presença naquela sala comunitária: o casal Domingos Francisco e Josefa Maria, a filha Maria Josefa e o cão Tejo mais o gato Miau.
Dona Josefa fritava as filhoses, numa enorme frigideira, tradição trazida do longínquo passado mas que ela queria manter viva.
Domingos beberricava uma aguardente caseira, olhando embevecido para a mulher e para a filha, orgulhoso do seu pequeno núcleo familiar.
Maria Josefa, uma rapariga letrada, perto de atingir os vinte anos, num topo da mesa escrevia no seu diário mais um conto, neste caso alusivo ao Natal.
O cão Tejo e o gato Miau, também davam sinais de satisfação.
Era na verdade uma família feliz, embora nos últimos tempos andassem com algumas dificuldades financeiras.
A seu tempo lá iremos…
Escrevo esta estória passada na época natalícia, nela não há São Nicolau e suas Renas, nem sequer o menino Jesus. Para mim é uma bonita estória de Natal, passada há trezentos anos. Ou seja: uma estória do tempo em que reinava Dom João V e do tempo da construção do grandioso Convento de Mafra.
Por volta das vinte e duas horas alguém bateu na porta maciça da casa do Domingos.
-Oh da casa!
-Quem está aí? – Perguntou em voz grossa o homem da casa.
-Abram por favor. Venho por bem. Trago uma encomenda da parte da Senhora Baronesa do Montejunto.
-Não pode ser! - Disseram os três em uníssono.
-Pode sim! Sou o Manuel Francisco. Despachem-se que quero ir para casa, está um frio de rachar.
Ainda com algum receio, Domingos com o cão atrás, pau na mão direita, abriu a porta com a mão esquerda. Não fosse o diabo tecê-las. Entretanto ficou confiante quando ouviu a filha afirmar:
-É o Manuel, sim. Reconheci a sua voz.
Do lado de fora, estava um homem novo que ainda nem barba tinha. Ou se tinha era muito rala. Estava arrepiado porque no exterior fazia mesmo frio:
-Entra rapaz senão o calor foge lá para fora e tu aí congelas.
-Sim senhora Josefa.
-Entra Manuel e bebe um pouco de aguardente para reagires e aproveita prova as filhoses. Estás mesmo com mau aspecto.
-Então pai, que queria? Com este frio não se pode andar lá fora.
-Agradeço a todos, mas não posso demorar. Mas aceito sim! As filhoses da senhora Josefa são uma maravilha.
O Manuel Francisco disse isto olhando para a Maria Josefa com brilho especial nos olhos. Admiração por tanta beleza e inteligência. Era amor o que sentia. Por isso tinha aceitado, contente, a chata incumbência.
-Então que te trás por cá Manuel?
-Como devem saber, faço alguns serviços ao senhor doutor juiz Alberto de Castro. Ele deu-me ordem para entregar algo nesta noite de Natal, da parte da Senhora Dona Maria Alice, Baronesa do Montejunto.
-Não pode ser! - Exclamou a senhora Josefa. – Não pode ser! – Repetiu.
Vendo tanta admiração o rapaz confirmou:
-Mas porquê? Foi o meu patrão que me enviou. Foi uma incumbência de Dona Maria Alice, Baronesa do Montejunto. Para entregar nesta noite de consoada. A primeira após a partida da Senhora Baronesa para o outro mundo.
Passando uns segundos voltou a falar:
-Pode sim senhora Josefa Maria! Aqui está. Boa noite e bom Natal.
Ao mesmo tempo que dizia isso, o rapaz abriu a mala tirando de dentro um envelope dos grandes que entregou nas mãos de Maria Josefa, a única que sabia ler lá em casa.
Depois, sempre fixando a rapariga, foi recuando até à porta partindo para a noite gelada. Ainda ia para a Corujeira.
Em casa do Domingos e família estavam todos em estado de choque. Até o cão e o gato ficaram em suspense.
A razão era simples: a Senhora Dona Maria Alice, Baronesa do Montejunto, tinha falecido há seis meses.
Antes de saberem (os leitores) o que contem o envelope, vamos a uma estória do passado. Vamos recuar cerca de vinte anos, até ao inicio do século dezoito ainda no reinado de Dom Pedro II.
Era uma vez uma senhora que vivia com o filho num palacete lá para as bandas do oeste, muito perto da Merceana.
A senhora era viúva há cerca de quinze anos, teria na altura trinta e nove anos e o seu filho quinze, acabados de fazer.
Aos cinquenta e cinco anos, Maria Alice partiu após alguns meses de sofrimento devido a uma doença rara. Até ao dia de atravessar a ponte a Baronesa esteve sempre bastante lúcida.
Maria Josefa sua afilhada, passava os dias com ela, fazendo o papel de enfermeira e dama de companhia, lendo romances de escritores franceses muito em voga.
Até morrer, mãe e filho eram servidos por um casal da idade da baronesa. Tratava-se dos caseiros Domingos e Josefa, já nossos conhecidos.
O casal tinha uma filha mais nova nove anos que o António filho da patroa, como já entenderem era a nossa conhecida Maria Josefa.
A senhora Baronesa adorava a menina de quem era madrinha e os pais que a serviam na sua casa desde sempre. Maria Alice conhecia Josefa Maria desde que eram meninas.
Mas nem tudo era um mar de rosas, há sempre um senão.
O filho António odiava os caseiros, devido à atenção e amizade que sua mãe dedicava aos mesmos. À filha não tinha aversão, antes pelo contrário, tinha paixão. Muitas vezes tentou avanços a partir da altura que Maria Josefa atingiu idade e corpo de mulher.
A rapariga sempre se desviou dos assédios do António, protegida pela madrinha e controlada pelos pais.
Na verdade, o futuro Barão do Montejunto, era um bandalho, um mau carácter. Em parte saía ao seu falecido pai, desaparecido tinha ele quinze anos. O Barão velho era um vadio, passando a vida na capital em estórias amorosas. Mas tinha alguma classe coisa que o filho não herdara.
Após o falecimento de sua mãe, António, agora dono e senhor, fez um ataque cerrado à Maria Josefa. Esta com dignidade correu com o sedutor.
Não conseguido nada com a rapariga, António tentou chantagear os caseiros. Mas eles não cederam e o Domingos quase dava uma paulada ao javardo.
Então que fez o novo barão? Por vingança, despediu os seus serviçais. Maldoso, com festa e gala, expulsou-os do palacete e da quinta.
Foi uma crueldade do canalha António do Montejunto. Dona Maria Alice devia nessa altura estar a dar voltas no túmulo revoltada com o filho.
Os caseiros foram viver para uma casa modesta que herdaram na Aldeia Galega. Passaram a ter mais dificuldades para sobreviver. Domingos foi trabalhar como cavador e a filha Maria Josefa rapariga muito culta foi dar aulas a meninos ricos da região, enquanto a mãe fazia bolos para casamentos e baptizados.
Com estes acontecimentos os meses passaram e agora vamos voltar à noite de Natal de mil setecentos e vinte e cinco.
Como dissemos lá para trás. Por mando do advogado da Baronesa, o Manuel Francisco foi entregar um grosso envelope, deixado por dona Maria Alice para esse efeito.
Os ex caseiros ficaram muito admirados. Mas o Manuel respondeu como já descrevi lá atrás:
-Mas porquê? Foi o meu patrão que me enviou. Foi uma incumbência de dona Maria Alice Baronesa do Montejunto. Para entregar nesta noite de consoada. A primeira após o falecimento da Senhora Baronesa.
Domingos Francisco e Josefa Maria já calculavam ou talvez não, o teor do que vinha dentro dos envelopes. Sim porque eram vários envelopes.
Mas só em parte sabiam qual o seu conteúdo!
O envelope grande trazia dentro diversos envelopes mais pequenos. Um era para os caseiros, outro para Maria Josefa, os restantes tinham documentos oficiais.
Como era óbvio foi a rapariga a ter de ler as cartas e os documentos. Só ela sabia o suficiente para isso.
A carta, para o casal Domingos, dizia em resumo:
“Meus queridos amigos, agradeço do fundo do coração e da alma toda a vossa dedicação, lealmente e amizade. A Josefa é para mim como uma irmã e o Domingos, um querido amigo.”
A Josefa Maria sabe do que falo. Quero que ela explica à Maria Josefa coisas que só ela poderá fazer. Só Josefa poderá esclarecer, porque não estarei já junto de vós. Daqui só poderei dar a minha bênção”.
Na outra carta, Maria Alice pedia perdão à Maria Josefa e que escutasse o que a sua mãe Josefa Maria tinha para lhe dizer.
A carta ainda dizia que os documentos oficiais que iam nos outros envelopes lacrados eram duplicados legais, pois os originais estavam em cartório.
A carta dirigida a Maria Josefa, ainda dizia mais:
“Josefa minha querida afilhada, amo-te muito! Peço-te que me perdoes. Tu és minha filha e muito adorada!
Há muitos anos, o senhor meu marido viajava para Lisboa meses sem conto. Tinha lá as suas amantes e por isso não respeitava os meus sentimentos.
Ficava sozinha e carente de ternura meses e meses, anos mesmo. Um dia tive um romance de amor com um homem muito mais novo, quase uma criança. Dessa relação fiquei grávida de ti.
Não sabendo que fazer pedi ajuda à minha amiga Josefa Maria que de pronto me ajudou. Tudo com a colaboração do Domingos que foi um grande amigo.
Josefa Maria disse que estava grávida e aos poucos foi pondo volume na barriga. Da minha parte disfarçava o que não era difícil devido ao meu isolamento.
Quando a gravidez estava quase no fim, inventei uma viagem em que levava a serviçal prenha.
É fácil de entender o enredo. Tu nasceste e ficaste baptizada como filha dos caseiros. No fundo eles são mesmo teus pais, ama-os muito. Eu fui tua madrinha e não só. Na verdade tiveste duas mães.
És por isso irmã do António, que infelizmente não presta. Tenho medo do que ele venha a fazer.
Tens direito ao que é meu! Mandei preparar todos os documentos legais ao doutor Alberto Rosa. Fiz também um testamento em juízo. Cinquenta por cento de tudo que tenho quero que seja teu, minha filha.
Sei que vais perguntar pelo teu pai genético. Filha, ele foi para a guerra e morreu em combate. Sim amei-o muito!
Queria que me perdoasses Maria Josefa, nunca te abandonei minha filha!
Quero pedir-te um favor muito grande. Um dia quando casares e tiveres um filho põem-lhe o apelido do avô dele, que é Bray.
Dá um grande abraço a teus pais, diz-lhe que os amo muito.
Para ti milhões de beijos porque sempre te adorei e amei.”
No lar do Domingos e da Josefa Maria chegava entretanto a meia-noite. Todos se abraçavam emocionados.
Era muita a alegria, era muita a tristeza, era muita a saudade por Maria Alice a Baronesa do Montejunto.
A rapariga exclamou emocionada:
-Sim mãe. Fique descansada, porei Bray ao meu filho!
E assim foi! Maria Josefa casou, em mil setecentos e trinta, com Manuel Francisco e meteu o apelido do seu pai ao seu filho António, nascido em mil setecentos e quarenta e dois.
Comeira, 15/12/2016
Homenagem em memória da minha mãe, Maria Alice Bray, 24/7/1923 a 15/12/2013, noventa anos.
Nota: Maria Josefa é minha antepassada directa, um seu filho foi o primeiro Bray conhecido. Depois dela já passaram onze gerações até aos meus netos. Maria Josefa viveu durante a construção do Convento de Mafra no reinado de Dom João V.
José Manuel Bray