Oliveira centenária
Era véspera de Natal de um certo ano dum passado longínquo.
Joaquim do Vale decidiu ir após o almoço até ao velho olival
que ficava do outro lado da várzea.
A sua intenção era ir ao rabisco das azeitonas. Aproveitar
para colher uns míscaro, umas cagarrinhas e talvez até uns espargos. Tudo
produtos muito úteis para sobrevivência da família.
Aquele centenário olival era sagrado segundo dizia o velho
Druida da Montanha Mágica. Foi Susejo que me contou esta estória que agora vos
relato.
Joaquim atravessou o rio na ponte romana, a caudal da
corrente já saía do leito e estava quase a transbordar para a vasta várzea. A
água cristalina provinha de uma nascente situada na parte oeste da Montanha.
Atravessou as vinhas, agora descarnadas de suas folhas. Do
rio ao olival eram meia légua bem medida. Por fim o homem chegou ao seu
destino.
Saíra da aldeia ainda o dia estava límpido, o sol brilhava,
mas aos poucos tudo foi enegrecendo. Não tardou a acontecer uma tremenda
tempestade com trovões após raios luminosos.
Joaquim, já no olival, sentiu-se no mato sem cachorro. Era
impensável retornar à sua aldeia: só havia que esperar.
Rapidamente o rio transbordou naquela véspera de Natal,
começando aos poucos a alagar a várzea, esta não tardou a ser um imenso lago.
Joaquim estava no olival e desejava regressar a casa antes de
cair a noite. Contornar a várzea era uns cinco quilómetros, levaria algumas
horas e debaixo da tempestade era impossível.
O homem estava duplamente preocupado, preocupado com a
preocupação que ia de certeza na sua casa com o seu atraso.
A mulher e o filho, de quatro anos, esperavam ansiosos por
ele.
A tempestade não abrandava e o Joaquim do Vale sentia-se
sitiado. Tinha de aguardar, não tinha forças nem coragem para arriscar
atravessar o lago, nem para andar os quilómetros e contornar toda a várzea.
Ainda por demais a noite chegara, às dezassete horas já
estava escuro. Ia ser uma noite de breu e dramática.
Lá longe via luz na sua casa, assim como nas casas dos seus
conterrâneos.
Um desânimo enorme apoderou-se do Joaquim que o levou a
exclamar em voz alta:
-Senhora das Neves ajuda-me nesta aflição. Se me deres essa
graça, juro não mais faltar à missa de domingo.
Para azar do Joaquim a santa devia estar noutra e não ouviu o
seu pedido, ou fingiu não ouvir.
Com o avançar da noite o homem estava a ficar em pânico.
Todas as oliveiras pareciam monstros ou espectros.
Quem já andou pela floresta nestas condições conhece a
sensação.
No olival havia uma oliveira enorme com centenas de anos. Essa
árvore tão grande e frondosa tinha uma gruta na sua base. Foi lá que o Joaquim
se refugiou.
A muito custou e após várias tentativas acendeu uma pequena
fogueira e preparou-se para passar a noite de Natal. Por sorte havia na gruta
uns troncos de oliveira que como sabem é uma madeira que leva muito tempo em
combustão.
Estava Joaquim nesta azáfama quando de repente sentiu perto
de si um vulto que o observava atentamente. Surpreendido questionou a sombra:
-Quem é você? Como aqui chegou com a cheia?
-Não vim de lado algum, sou daqui. Sou o espírito da
oliveira.
-Vá gozar com os da sua laia!
-E você Joaquim, que faz aqui na noite de Natal, longe da
aldeia, longe de sua família? Que faz para cá da várzea nas terras que não são
suas?
-Vim dar uma volta, o dia estava bonito embora frio. Fui
apanhado pela tempestade e pela rápida cheia.
-Ah, ah, ah! Passear em véspera de Natal para fora da sua
área de conforto. Uma tolice!
-Então e vossemecê que deseja?
-Já lhe disse que sou daqui.
-Está a gozar comigo ou é louco. Pode por acaso ajudar-me a
sair desta situação?
-Posso sim! Mas preciso de uma paga.
-Uma paga! Mas o quê?
-Não posso dizer, mas se aceitar a minha ajuda, quando lhe pedir
a paga você tem de obedecer, senão algo de mal lhe vai acontecer e à sua
família também.
-Mas que paga é essa? Não posso saber?
-Não Joaquim do Vale! Concorda ou não? Aceita ou não a minha
ajuda e as condições?
Joaquim sentiu-se entalado, estava num dilema. Que fazer?
Acabou por ceder, cada vez era mais tarde e a cheia não
diminuía. Com a cabeça fez sinal à sombra que sim.
-Então feche os olhos, conte até cem, depois de os abrir vá
embora.
Joaquim assim fez. Ao chegar a cem abriu os olhos. Para seu
espanto estava tudo na mesma. Continuava junto da centenária oliveira, era
noite e a cheia mantinha-se.
-Ora aldrabão! – Exclamou.
Mas olhando ao seu redor reparou numa canoa com uma vara
dentro. Era isso! Agora era preciso conduzir e orientar a canoa na direcção da
sua aldeia, atravessando a várzea e passando o rio.
Do lado de lá do rio a cem metros começava o burgo.
Joaquim assim fez, com esforço porque não tinha experiência
com canoas ou qualquer outra embarcação.
Com muito cansaço lá conseguiu!
Eram onze e cinquenta e cinco, da noite de Natal, quando
Joaquim do Vale entrou em casa. Manuela com o filho adormecido no colo chorava
em silêncio.
Com um abraço longo e emotivo, a mulher, selou a chegada do
seu homem.
Com o passar dos dias Joaquim foi esquecendo o insólito
episódio passado no olival no Natal passado. Não tardou a ficar convencido que
tudo não tinha passado de um delírio devido ao pânico: ou simplesmente um
pesadelo.
O tempo foi passando e não tardou a chegar o novo Natal.
Um dia, já perto da época natalícia, apareceram na zona uns
lenhadores contratados pelo senhor feudal, dono do olival e de quase toda a região.
A missão dos homens era cortar as velhas oliveiras e parte de
um eucaliptal, para mais tarde plantarem vinha.
Com tudo isto a centenária oliveira sagrada estava condenada.
Na ante véspera do Natal, dia vinte e três, Joaquim saiu de
casa para ir pegar no batente na fábrica da telha onde há muito ganhava a vida.
Ia a pé e concentrado nos seus pensamentos quando deu por uma
presença ao seu lado. Uma sombra que via ou não via, só imaginava.
Disse em som brando a tal coisa que não sabia bem quem era
mas já calculava. Ou seja o espírito da oliveira:
-Joaquim chegou a altura de pagar a sua divida.
-Que quer então espírito?
-Quero que impeça a morte da oliveira sagrada que lhe deu
protecção na noite de tempestade do Natal passado.
-Mas que vão fazer à oliveira?
-Homem, então não sabe? Vão cortá-la depois do Natal! Toda a
gente sabe isso.
-Mas que posso fazer para o impedir?
-Não faço a mínima ideia! Joaquim, o problema é seu. Tem essa
dívida para pagar. Se a oliveira morrer, vossemecê também morre, assim como a sua
família.
Após dizer isto a sombra num ápice foi-se. Joaquim não sabia
que fazer. Decidiu ir falar com o Druida da Montanha Mágica e pedir conselho.
O velho sábio deu-lhe uma ideia que Joaquim aceitou e pôs em
prática.
Na noite de Natal pegou na mulher e filho e foi ao palácio do
senhor feudal. Descalços, mal vestidos e com uma corda ao pescoço. Ao chegar
foram levados à presença do dono da região. Este ficou pasmado com a visão que
lhe apareceu no salão:
- Que querem vilões? Digam depressa que tenho pouco tempo.
Joaquim adiantou-se e falou, enquanto Manuela abraçava o
filho:
-Meu senhor vão cortar o velho olival que fica junto da minha
aldeia. Há lá uma oliveira sagrada. Se ela for cortada e morrer, nós os três
vamos morrer também, segundo nos disse o espírito da oliveira.
Nesse momento, mãe e filho vieram abraçar Joaquim do Vale que
humildemente olhava para o senhor feudal.
-Que desejas de mim homem?
- Senhor, por favor, poupe aquela centenária oliveira!
Tudo aquilo tocou fundo na alma e coração daquele senhor que
só disse:
-Vão para casa e tenham um bom Natal. Vou pensar!
O senhor feudal que não era má pessoa, pensou e decidiu não
só poupar a oliveira mas também todo o olival.
Desta forma Joaquim pagou a sua divida e viveu feliz com a
família durante muitos anos.
O tempo passou, muito tempo mesmo. O filho de Joaquim partiu
para longe e não voltou. Manuela partira também mas não para longe, descansava
no cemitério da aldeia.
Era noite de Natal, Joaquim já muito idoso caminhava pelo
centenário olival. Recordava a noite mágica de há muito tempo.
Distraído deixou-se ficar e nem reparou que uma violenta
tempestade se tinha formado. Ao cair da noite a trovoada era intensa e a
quantidade de relâmpagos iluminavam tudo, da montanha à aldeia, ao rio, à
várzea e ao olival.
Joaquim como há quarenta anos abrigou-se na centenária
oliveira, árvore sagrada.
Caiam faíscas por todo o olival!
No dia seguinte, dia de Natal, um pastor foi encontrar a Oliveira
Sagrada e o Joaquim do Vale, carbonizados numa amálgama de corpos e almas.
Comeira, 17 de Dezembro de 2016
José Bray
Dedicado ao meu tio Aberto, ao meu padrinho Silvério e à
minha aldeia!