21
- O dia 28 de Junho de 1976
Era domingo, o
casal Castro tinha passado a fim de semana em casa, porque não havia condições
para sair. À missa não iam porque os meus amigos são ateus e por isso muito
afastados das coisas da religião. O Alberto podia no sábado ter dado um salto à
Academia de Xadrez que distanciava pouco mais de trezentos metros da sua casa,
mas o momento não era oportuno, ele nem pensar, deixaria a Inês sozinha.
A noite vinha aí e
com ela o recolher obrigatório. Há muito que esta lei estava implementada. As
noites eram iluminadas pelas balas tracejantes que saíam para o céu, disparadas
em todos os musseques da capital. A sinfonia das balas mais parecia foguetes em
arraial de festa popular.
Está a dar-me um
prazer imenso escrever este texto, enquanto oiço mornas cantadas por Cesária
Évora, adoro esta música que meus pais me ajudaram a amar. No fim desta
narrativa sobre o 28 de Junho de 1976 vão entender o porquê de me sentir feliz.
Voltemos ao texto…
A partir de certa
hora, as ruas, avenidas e largos de Luanda eram de um absoluto vazio, só
quebrado pela passagem das patrulhas militares. O recolher obrigatório era a
única forma das autoridades conseguirem alguma ordem na cidade. Havia milhares
de soldados fora dos quartéis, desenquadrados de um qualquer controlo. Depois
ainda havia a bandidagem, com armas distribuídas pelo movimento no poder quando
foi de sua conveniência. Agora tinham uma batata quente entre as mãos, muito
mesmo, a escaldar.
A Inês tinha uma barriga
enorme, o tempo de o bebé ver a luz do dia ou da noite estava aí, ou seja, os
nove meses estavam atingidos. Por tudo isto as águas podiam rebentar a qualquer
momento. Quem viria aí, seria menino ou outra menina? Nesse tempo ainda não era
normal saber o sexo devido à falta de tecnologia, ainda mais num país em que
faltava tudo.
Alberto de Castro
andava preocupadíssimo com o que poderia acontecer, tanto à sua companheira
como ao bebé. A Inês além de preocupada andava cheia de medo. No fundo estavam
os dois receoso, por diversos motivos.
Toda a gestação
tinha sido muito complicada, uma aventura perigosa. Falta de uma alimentação
adequada, falta de assistência médica, falta de família, falta de tudo.
Em Luanda nessa
fase só havia um médico de mulheres, falo de um doutor verdadeiro. Era o velho
Viriato, pai de muitos filhos. Como estes se recusaram a abandonar o seu país.
Bom pai e médico competente: ficou firme no seu posto. Um seu filho morrera nas
confusões da guerra da Independência entre os outros movimentos. Os irmãos além
de baterem o pé para ficar foram servir no exército, eles como comandos elas
como enfermeiras.
O doutor Viriato
fazia o que podia, mas esforçado, dando assistência dia e noite, muito acabava
por fazer, mas pouco para tanta necessidade. A Inês foi lá duas vezes, no resto
do tempo esteve entregue ao destino.
A gravidez da Inês
veio no momento mais inoportuno, cerca de dois meses antes da independência de
Angola. O casal embora sabendo o que os esperava, decidiram assumir. Alberto de
Castro insistiu com a Inês para vir para Portugal, mas ela recusou com firmeza.
A filha mais velha do casal, já estava em Portugal entregue a familiares, era
complicado chegar com mais uma criança, ainda mais, não tendo os Castros bens
na Europa, nem forma de subsistir financeiramente.
Naquela época em
Portugal qualquer branco regressado de Angola era peçonha para os imbecis da
metrópole. Ser retornado como chamavam aos refugiados, era um estigma.
O mais curioso é
que a Inês não era muito de engravidar. Na brincadeira ela dizia aos amigos. – A culpa deve ser da Toca na rua Silva
Porto, aquela casinha era muito íntima, muito propícia para o amor! Ou então
era a nossa menina que nos estava a guardar, foi preciso ela partir para
acontecer isto.
Na verdade a
menina partira para Lisboa no verão quente de 1975 e a gravidez aconteceu a
seguir.
O tempo foi
passando com muitas dificuldades, muitas frustrações, com o fim de utopias. Aos
poucos o Alberto Pereira de Castro e Inês de Castro foram perdendo a esperança
naquela treta toda.
O casal entretanto
foi-se mexendo e acabou por descobrir uma parteira moradora no bairro de
Alvalade. Tratava-se de dona Madalena mulher valente e determinada, dona de uma
vivenda de grande valor, não queria partir para a não perder. De imediato
colocou-se ao dispor dos Castros para ajudar no momento fulcral, do milagre da
vida. A distância entre as residências não distanciava mais de quinhentos
metros.
O enxoval para o
bebé era pobre e exíguo, baseado principalmente nas roupas guardadas da mana,
para o que desse ou viesse. Era tudo muito difícil, muito mesmo! A Inês passara
grande parte da gravidez com o mesmo vestido feito não sei por quem.
Nesse Junho o
casal ainda pensava ficar em Angola, pelo menos um tempo para tentar angariar
umas massas que lhes pudesse mudar a vida para Portugal. Para isso o Castro
negociara com a sua empresa regressar após fazer um tempo para garantir a
continuidade da empresa em Angola.
Contudo o casal já
tinha decidido que após o nascimento do bebé, tratariam logo da papelada para
mãe e o pequeno ser, partirem para Lisboa, seria uma temporada para sua
segurança. Depois se a coisa melhorasse regressariam.
Como todos sabemos
tudo correu a favor dos Castros. A bela e extrovertida Inês nunca mais
regressou, ficando o Alberto de Castro em Angola até fins de 1977, sozinho, sem
mulher e filhos. Inês tivera a sorte de retornar ao seu antigo emprego. Mas não
nos antecipemos.
No sexto mês da
gravidez, ainda os Castros não tinham desistido de Angola, no quinto andar do
seu prédio vagou um apartamento maior, que até dava para a frente do prédio.
Tinha mais uma divisão, quem partiu deixou o dito quarto mobilado. Era de uma menina
porque os móveis eram em cor-de-rosa, por isso ideal para a filha se
regressasse. Com muita pena da casa anterior e do seu pôr-do-sol, os Castros
mudaram-se. Era uma boa casa, num excelente prédio com elevador a funcionar e
gente decente a morar. Os Castros entusiasmaram-se e a mudança foi motivo de
alguma alegria.
A barriga da Inês
ia crescendo, os três sobrevivendo na luta para conseguir alimento nas
terríveis filas (bichas) com as suas pedrinhas que se desmultiplicavam a cada
minuto.
Um facto curioso
tinha a nova casa, um pormenor que foi de grande utilidade no decorrer dos
acontecimentos. Na residência estava instalado um telefone ligado e a
funcionar. Esse aparelho foi magia na estória. Para aumentar essa magia
digo-vos que nunca ninguém cobrou o que quer que fosse, ou seja até à partida
da Inês de Castro, o casal não pagou um tostão e o telefone funcionou sempre.
A nova casa tinha
um defeito para o Alberto. Embora fosse um quinto andar as frondosas arvores,
chegavam quase até ao topo do prédio. Estavam afastadas cinco ou seis metros,
mesmo assim o odor que delas imanava punham o nosso amigo com um mau estar
terrível, devido a qualquer alergia que ele tinha e já comprovada em contacto
com certas árvores.
Nesse domingo de
Junho a noite chegou e o cacimbo fazia a temperatura descer. Ao longe já se
viam balas tracejantes vindas dos musseques a atravessar o céu em diversas
direcções, assim como o matraquear das automáticas se faziam ouvir. Intervalando
com momentos de silêncio. A escumalha voltava ao seu divertimento diário. Era o
pão-nosso de cada dia após a hora do recolher obrigatório, até de madrugada.
Era uma sinfonia de angústia, quando a manhã chegava tudo parecia renascer mas
a esperança era nada.
Ainda era dia
vinte e sete, quando pelas vinte e três horas o primeiro sinal se deu. Alberto
telefonou à parteira que pediu para ele a ir informando dos sinais e do
arrebentar das águas. Aos poucos as dores foram aumentando e para as duas da
manhã foram muito fortes, rebentando de seguida as águas. Rápido, Alberto
Castro correu para o telefone e ligou à parteira.
A porra é que
havia o recolher obrigatório. E se a Madalena se recusasse devido ao adiantado
da hora? Mas não, era uma mulher forte, habituada a grandes batalhas.
-
Alberto! Ponha já um panelão cheio de água ao lume e venha-me esperar à porta
da entrada.
Após quase encher
de água uma grande panela e de a meter ao lume, pediu calma à companheira, o
nosso Alberto desceu até ao hall de entrada para esperar a salvadora.
Felizmente o elevador estava a funcionar.
Esperou
impaciente, parecia uma eternidade a chegada da parteira. Mas na verdade
Madalena pouco demorou, vinha num modelo antigo da Volvo e acompanhada por um
enorme cão, um pastor alemão. Quando entraram no quarto, Inês estava de
cóqueras, no chão ao lado da cama.
Levou um ralhete da
Madalena porque não era posição correcta, mas foi mais para a fazer reagir. A
Inês estava com medo que o bebé nascesse antes de a parteira chegar e ainda
mais sem o marido junto.
-
Alberto vá para a cozinha saber da água e espere que eu o chame.
Impaciente e muito
nervoso o rapaz assim fez, mas depois foi tudo muito rápido. Minutos depois um
forte chorar se ouviu, Alberto correu, mais uma menina tinha nascido. Mãe e pai
choravam, eram três horas do dia vinte oito de Junho de mil novecentos e
setenta e seis, uma segunda-feira,
A minha afilhada
acabara de nascer! Lá fora as balas tracejantes não paravam, assim como o som
das balas que mais pareciam foguetes a festejar o nascimento de mais uma
angolana branca.
Antes de partir a
parteira deu diversas indicações e conselhos ao casal e em especial ao pai da
bebé Alberto Pereira de Castro. Madalena ficou de ir passando por lá coisa que
aconteceu. O nosso amigo acompanhou a senhora ao carro, abraçou-a e depois
feliz subiu.
Entretanto no
prédio ninguém deu por nada. Durante a manhã desse dia a vizinha do andar foi
informada e ficou aparvalhada, de imediato deu colaboração, em especial na
lavagem da roupa. Era uma senhora negra com muito nível.
Claro que o
Alberto através do telefone mágico ligou para Portugal dando a feliz noticia
aos vários familiares. Os pais Castro falaram com a menina mais velha,
prometendo estar em breve em Portugal.
A Inês recuperou
felizmente muito depressa e a menina estava bem. Ia começar outra luta, as
condições para sobreviver.
O registo da bebé
foi feito na conservatória do bairro de Alvalade. E tem uma estória curiosa e
cheia de humor.
Naquela fase o
governo de Angola estava a forçar o registo legal de todo o povo. Poucos tinham
registo oficial, por isso as filas eram intermináveis. Com se ia fazer? Horas e
horas na porta à espera de vez era uma merda.
Quem mandava na
conservatória era uma doutora ainda muito jovem. Então, o nosso amigo José d’
Barcellos com o seu charme muito especial, a que nenhuma mulher resistia,
convenceu a senhora a fazer o registo fora de horas. E assim foi! Ele e eu
fomos os padrinhos.
Conforme decidido
pelo casal, o Alberto começou logo a tratar de tudo para mulher e filha
partirem para Lisboa. Era impossível continuar em Luanda com as condições
existentes.
O casal Alberto e
Inês de Castro assim como a minha afilhada, correram um risco imenso. Tudo foi
ultrapassado, mas as condições para se dar o drama estavam criadas: estavam
todas no terreno. 26/1/2014
Djapam (Cooperantes)