domingo, 24 de dezembro de 2017

Susejo e o Natal

Susejo e o Natal
Lá longe, muito longe, num mundo há muito desaparecido, um idoso de longa barba caminhava cantando uma canção que só ele entendia. Mas a melodia soava bem ao ouvido de um qualquer ser, pessoa ou animal. Era um espiritual composto pelo idoso, muito idoso mesmo. Impossível fazer um palpite da sua quantidade de anos. Cem, duzentos, trezentos? Não sabemos!
“O inverno chegou
Com o seu solstício
O Natal avançou
Matando a frio
A festa da natureza
Pagãs mas belas
Saindo da pureza
Ficou-se nas balelas
Susejo assistiu
Com tolerância
Druida omitiu
Fingido ignorância”
Na minha opinião, Susejo não tinha idade, era o tempo do tempo.
Na mão direita levava um bordão feito de tronco de carvalho com mil anos, a árvore dos sábios. Na mão esquerda um saco de fabrico caseiro feito em pele de cabra, dentro algumas ferramentas de marceneiro, uma das suas muitas artes e saberes.
O velho senhor de idade indefinida apressou o passo. Queria chegar à próxima aldeia a tempo da refeição do almoço. Um amigo de longa data esperava por ele.
Sentado num banco corrido Druida apanhava o bom sol do meio-dia. Sabia que o amigo Susejo não ia tardar. Já sentia satisfação ao pensar nas muitas conversas que iam ter: seria sobre tudo e mais alguma coisa. Depois iriam falar com os jovens adolescentes da aldeia. Queriam falar de bons costumes e valores morais, higiene e explicar a importância do saber.
Batia as doze horas no badalo gigante, quando Susejo entrou no rossio da aldeia, o seu principal largo. O amigo, um velho parecendo seu sósia, esperava por ele de braços abertos e largo sorriso.
Um longo e comovido abraço juntou os corpos e as almas dos seculares amigos. Homens do saber, da magia, das artes e do espírito.
Logo que entrou na povoação, Susejo reparou que havia ambiente de festa. Não ficou admirado porque estavam sobre o solstício de inverno e as festas pagãs eram habituais nessa época.
Com alguma ironia comentou com o seu amigo Druida:
- Então velhote, tudo preparado para os festejos da vossa fé? Estamos na época!
O Druida sorrindo mas a sério, explicou ao seu amigo vindo de longe:
- Estás enganado Susejo. A aldeia contra a minha vontade vai festejar o nascimento de Jesus. À comemoração deram o nome de Natal. A noite de vinte e quatro para vinte e cinco é por isso a noite de Natal.
Passou a ser por uma imposição do bispo romano que tutela a região.
Não concordo, mas também não sou contra, desde que o povo esteja feliz.
Apropriaram-se das minhas tradições pagãs e das tradições romanizadas deles, mas também pagãs.
Calaram-se durante uns minutos, depois o visitante perguntou:
- Nessa nova filosofia oferecem prendas às crianças?
- Alguns pais fazem-no a maioria não!
Susejo franziu o sobrolho numa demonstração de tristeza.
Entretanto foram conversando enquanto faziam a sua frugal refeição, à base de frutas, leguminosas e pão.
Seguiu-se a palestra com os adolescentes da aldeia, que atentos tudo ouviram com interesse.
No dia seguinte ia ser véspera da tal festa chamada Natal. Festa que o bispo romano impusera para comemorar o nascimento de Jesus.
Susejo perante estas novidades, decidiu ficar. Queria fazer parte da comemorações…
Pediu ao amigo Druida ajuda e foi trabalhar para a pequena oficina do carpinteiro da aldeia, um velho tão velho como eles e amigo de ambos.
Como sabemos de outras narrativas, Susejo era um marceneiro artista e trabalhador despachado.
Susejo tinha a sua fisgada!
Trabalhou arduamente, durante toda a noite e todo o dia seguinte. Por vezes com ajuda do Druida e do velho carpinteiro.
O resultado de tão intensiva aplicação foi a produção de dezenas de brinquedos em madeira: barcos, carros de bois, bonecas, moinhos, flautas, casas, pontes, e muitas mais peças que nem sei classificar.
Susejo estava feliz, queria que todas as crianças tivessem a sua prenda na noite do tal Natal que festejava o nascimento do tal Jesus.
Susejo sabia que o Natal era uma mentira. Ele sabia melhor que todos: ninguém sabia a data de nascimento de Jesus.
Era tudo uma maquinação do poder romano recém convertido ao cristianismo. O solstício de inverno era tempo de grandes festas pagãs, tanto para celtas como para romanos.
Era preciso capar essas festas, sobrepondo outras com ritual diferente.
As crianças não tinham culpa! Pagãs ou cristãs tinham direito a ter prendas.
O seu amigo Druida sabia isso, mas fingia não saber. Queria o bem de todos.
Susejo, por razões óbvias, sabia ser uma mentira pegada, mas entrara com prazer na farsa.
Depois de entregar os brinquedos às crianças, Susejo partiu feliz para a sua eterna peregrinação.
22/12/2017
José Bray



Natal diferente

Natal diferente
Aquele foi um Natal muito especial, direi mais, muito diferente do trivial.
Primeiro: não havia frio, antes pelo contrário havia muito calor, tanto de dia como de noite.
Segundo: era muito longe, duvido que as renas voassem tantas léguas no céu. Ainda mais sem asas. Talvez o fizessem se fossem da família do Pégaso.
Terceiro: por ali não havia meninos ricos e gente pobre não interessava ao Deus dos ricos.
Mas na verdade ia ser Natal e muitos queriam festejar, mesmo aqueles que não acreditando, o toleravam.
Havia contudo um problema: não havia brinquedos, não havia comida, não havia segurança. Mas havia muita guerra!
O casal Castro foi apanhado naquele imbróglio num dado ano, em que eram cooperantes. Apanhados naquele Natal que era único e especial, no mau sentido. Ou seja: foram apanhados na voragem da história.
Eles queriam para aquele dia vinte e quatro de Dezembro, algo para comer, algo para beber, como desejavam para todos os outros dias.
Água para beber ia havendo, mas depois de fervida.
O meu amigo Alberto combinou com Inês sua mulher a estratégia para aquele dia. Ele iria para a fila da padaria e depois para a fila do arroz e enlatados. Ela iria para a fila dos frangos vindos da Holanda.
E assim foi!
Alberto, com mais ou menos desenrascanso lá alcançou o objectivo. Embora o arroz vindo do Brasil cheirasse a bafio e o pão era daquele que no dia seguinte era intragável. Os enlatados estranhos para os negros também escapavam. Muitos com os prazos de validade ultrapassados. Mas em tempo de guerra não se limpam armas.
Para a Inês, a situação foi mais complicada. Este pequeno texto de Natal especial deve-se ao seu episódio na estória.
Inês de Castro, esbelta mas já uma barriga de três meses que mais parecia seis aproximou-se da cooerativa na qual os frangos eram vendidos. Ia esperançosa, mas muito duvidosa. Mas havia que tentar, porque em casa tudo faltava.
Uma fila horrorosa saía dentro da superfície muitos metros. Tudo negras, nem uma branca. Ainda mais com pedras no chão a marcar posição, não sabemos de quem.
Inês entristeceu cada vez mais, nunca iria para uma fila daquelas. Nem acreditava que houvesse frangos para tanta mulher.
Sentia-se revoltada, ficara no novo país, solidária com o companheiro. Este ficara para ajudar aquele povo carenciado de tudo. No fundo nem comida tinham para compensar todo o esforço.
A jovem não aguentou o choro e começou a afastar-se.
Foi então que ouviu chamar. À primeira não entendeu mas depois viu que era para si.
- Camarada venha para aqui para o pé de nós!
Duas negras chamavam por ela para ir para o princípio da fila. Ela receosa aproximou-se, ainda incrédula.
Outras negras começaram a reclamar e com lógica. Mas as duas negras que tinham poder da fala, argumentaram na lógica delas.
- A camarada branca está prenha por isso tem direito a estar na frente.
E assim foi! Inês agradeceu comovida e feliz correu para casa.
Foi da parte das minhas compatriotas um belo gesto de amor. Daqueles que marcam para toda a vida.
Em casa, Alberto já tinha o pão, lata de espargos, outra de cogumelos e o arroz. Inês colocou de imediato o frango ao lume.
Enquanto o bicho cozinhava, telefonaram para a Europa para falar com a filha ausente, através de um telefone que por sorte ainda estava ligado.
Resta dizer que o frango holandês era duro que nem cornos. Uns amigos da onça que enviavam para o carente país o lixo de sua casa.
A consoada chegou e os Castros estavam felizes, não pelo Natal, eles até era descrentes, mas por estarem juntos.
Lá fora, na noite de recolher obrigatório, brilhando como estrelas cadentes as balas tracejantes das metralhadoras ribombavam por todos os musseques.
Meteoros que partiam em sentido inverso, da terra humilhada para céu infinito!
16/11/2017
Djapam
Nota - Esta estória aconteceu no Natal de 1975.