Os meus contos
Uma metáfora que não vem só, vem em triplicado e com diversas
utopias
As três revoluções
Acordei em sobressalto, o barulho no exterior do meu quarto
era infernal. Antes de vestir as calças fui espreitar ao corredor lá para os
lados da biblioteca.
Era uma manifestação contra a minha pessoa, contra os meus
familiares e conta os meus heterónimos.
O hino da revolta
Em frente companheiros
Queremos a nossa dignidade
Queremos ter parceiros
Livro não quer virgindade
Troféu quer exposição
Verem a sua grande beleza
A todos atrair a atenção
Mostrar sua realeza
As peças querem jogar
Nós estamos em solidão
Até nos podem matar
Mas faremos a revolução!
Uma revolução estava no ar!
Senti algum medo mas não entrei em pânico. Sabia que tudo ia
controlar.
Aqueles seres sempre acomodados estavam agora a levantar
cabelo. Que razões teriam a apresentar a este ortónimo?
Possivelmente querem fazer o seu 25 de Abril. Devem querer
impor algumas tretas que nunca vão conseguir por incompetência. Não sou o
Marcelo, por isso não me assustam. Se for necessário vão para a fogueira ou
despacho metade para uma colónia de África, talvez Guiné. Os melhores ficarão
comigo.
Brinco! Vai haver sempre uma solução.
Bolas! Agora chega-me barulheira de outro sector. Bolas! Isto
está a ficar complicado. Afinal são duas manifestações. Vou ter que me
desdobrar.
Estes devem querer o 28 de Maio com o seu Estado Novo.
Vou ter muita cabeça, começa a ser muita areia para a minha
camioneta.
Oh deuses da minha Montanha Mágica, mais outro foco de
barulheira.
Três manifestações, três revoluções. Isto começa a ser dose
para cavalo.
Estes agora devem querer o regresso à monarquia, querem
voltar a ter rei.
Sem precipitação refugiei-me na minha inteligência e
capacidade para lidar com a vida. De imediato comecei a ponderar opções.
Não tardei a reagir, precisava de ajuda e da família não viria.
Num ápice mobilizei alguns heterónimos, para fazermos frente a tantas
revoluções.
Três revoluções, três destinos, três aspirações numa só
utopia.
Calculava quais fossem os motivos que levaram às três
frentes. Em consciência elas tinham as suas razões, simplesmente não sabia como
lidar com as situações, por apatia para o fazer.
Há muito esperava estas reacções, só não esperava que
acontecessem ao mesmo tempo em três frentes.
Irei com alguns dos meus heterónimos para os cornos do boi,
isto sem ofender os revolucionários nem os bois; tudo seres do bem.
Em fracção de segundos alguns heterónimos apareceram junto a
mim. Não foram todos, não era preciso só para três revoluções. Se fossem dez ou
vinte, sim, eram precisos mais heterónimos, talvez todos mesmo.
Apareceu o meu poeta Antobar, o sonhador João Simão o Pastor,
o campeão José Brandão, o gestor Aberto de Castro, seu irmão Francisco de
Castro o escritor, o santo Djapam, a bela poetiza Rita d’ Barcellos e Druida o
mágico.
De imediato metemos as mãos na massa, chamando os líderes dos
revoltosos e pedindo calma aos manifestantes.
Decidimos fazer reuniões separadas, uma na biblioteca, outra
no salão grande e a terceira no pavilhão exterior.
Os revoltosos queriam tratar das suas pretensões em conjunto;
não aceitámos. Era preciso dividir para reinar, com dizia um filósofo meu
amigo.
A primeira reunião e na minha opinião a mais importante foi
na casa dos livros. A queixa deles, os livros, era:
Queriam ser mais lidos, não aceitavam estar uma vida inteira
sem perderem a virgindade.
Eles tinham razão! Era preciso encontrar uma solução.
--Livros que querem? – Perguntei ao líder, por sinal um livro
muitas vezes lido por mim.
--Não sabemos como resolver, somos tua propriedade, decide
tu. Queremos ser lidos.
Pedi sugestões aos meus heterónimos que não se fizeram
rogados.
A Rita d’ Barcellos sugeriu que enviássemos uma parte dos
livros para uma biblioteca que ela ia patrocinar na Guiné. Livros simples para
adultos e crianças ainda meio analfabetas.
Djapam concordou e sugeriu uma solução semelhante para as
suas igrejas evangélicas, nas quais era pastor há muito ano.
Talvez entregar os livros em escolas e clubes de leitura,
sugeriram os irmãos Castro.
As sugestões foram muitas e boas. Os livros sorriam de
satisfação. Já sentiam nas suas páginas, estarem a ser possuídos por milhares
de mentes. Que felicidade!
Todos pediam uma decisão final.
--Vamos pensar, depois informamos que atitude tomar! Vou
falar com a família que também é proprietária dos livros. De uma coisa quero
ter a garantia, os livros são para serem lidos e não atirados para o lixo. Na
descolonização portuguesa vi bibliotecas inteiras nos contentores do lixo e
espalhadas pelos passeios na cidade de Luanda. Eram milhares de cadavais
livrescos por todo o lado. Isso nunca mais!
Pedi entretanto ao Druida para escrever a acta da reunião.
Marcando entretanto nova Assembleia para uma data posterior.
Acompanhado pelos heterónimos parti para o salão grande para
reunir com os líderes da segunda manifestação.
Desta vez eram os troféus. A sua reclamação era simples e
concisa:
Queria ser mais vistos!
--Então digam lá amigos?
--Somos muitos; troféus, taças, medalhas, medalhões, diplomas;
pequenos, médios, enormes; importantes, humildes; um nunca mais acabar.
Queremos para todos o mesmo tratamento. Queremos estar em exposição e queremos
ser apreciados. Alguns até estão em museu!
--Não nos parece assim tão importante, mas pensar no assunto.
Têm de entender não há espaço para todos estarem á vista. Aceitamos sugestões.
Um velhíssimo troféu, o mais antigo e humilde, taça minorca
com patine do tempo, pediu a palavra:
--Sugiro que faça exposição em rotação ou seja temporária, vá
mudando os troféus em exposição.
Um troféu de cristal, peça valiosa, entretanto falou:
--Os troféus queriam ser mais vistos, mesmo no museu muitos
estão na arrecadação por excesso de acervo.
--Muito bem estão as reclamações e sugestões anotadas, vamos
ponderar e voltaremos a reunir em Assembleia futura onde diremos o que
decidimos.
O Druida escreveu a acta da reunião com já fizera na sessão
anterior!
Agora vamos para a terceira revolução no pavilhão exterior.
Aqui as questões embora importantes, não eram complexas e as
soluções possíveis muito diversas.
Tratava-se do material logístico para jogar xadrez e damas e
para a sua aprendizagem. Era tabuleiros, peças e relógios.
O porta-voz desta vez foi um velho tabuleiro, duas vezes
campeão de Angola em damas e uma em xadrez.
Resumo o que disse este velho campeão:
O problema deles era simples e óbvio: o material queria ser
mais utilizado.
Como no caso dos livros e dos troféus, prometemos dar a nossa
decisão em futura Assembleia. O Druida fez acta.
Decidimos que essas Assembleias seriam no mesmo dia e à mesma
hora, queríamos todos presente.
Na data prevista conforme combinado, lá voltámos todos a
estar juntos.
Nesta vez na zona do jardim, porque o espaço era maior e estava
tempo ameno.
Entretanto com os meus heterónimos reunimo-nos muitas vezes
trocando ideias para encontrar possíveis soluções; deitando para o lixo as
impossíveis.
Por fim lá chegámos a um consenso, por sinal bastante
utópico!
Chegou o dia da famosa Assembleia final. As três revoluções
estavam presentes, com os líderes à frente. Todos estavam ansiosos!
Com os heterónimos a meu lado, declarei a nossa decisão sobre
as diversas problemáticas.
Falei:
“ Meus queridos amigos, de uma vida! Existência que já vai
longa. Todos vós fazeis parte de mim e dos meus heterónimos. Por vós vivi
momentos únicos.
Queridos livros, através da leituras que fiz, de tudo que
estudei nas vossas páginas. Resgatei vocês das prateleiras das livrarias, nunca
regateando ou chorando o dinheiro que gastei. Li várias vezes o meu livro que
me formou e de que tenho meia dúzia de edições diferentes; falo do Coração.
Peço perdão por não ter lido todos.
Queridos troféus, vocês são carne da minha carne. Todos os
troféus, taças e medalhas foram conquistados através de duras batalhas no
tabuleiro. Sim amigos, vós tendes direito a estar em exposição. Muitos de vós
foram conquistados com o mesmo mérito por meu neto, grande campeão. Recordo com
muito orgulho a primeira taça conquistada, tão pequena, tão simples, mas belo
diamante para mim.
Quanto a vós, tabuleiros, peças e relógios, são o meu
maravilhoso património. Muito valioso, mas mais importante pelo valor
emocional. Primeiro tabuleiro, primeiras peças, primeiro relógio de xadrez.
Merecem a minha homenagem; cada com uma mágica estória para contar.
Por isso nós dizemos:
Meus queridos amigos, achamos os vossos desejos muito
válidos. Têm toda razão, embora não o mesmo tipo de razão. Uns terão mais que
outros.
Os livros querem ser lidos!
Os troféus querem ser vistos, apreciados!
Os tabuleiros, peças e relógios querem ser usados!
Conjugar a solução para todos a contento não foi fácil. Com a
ajuda dos meus heterónimos chegámos a um consenso! O seguinte:
Vamos todos construir um edifício com amplas salas e boas
condições.
Esse edifício utópico vai ter:
Terá um clube de leitura, onde as crianças e adultos poderão
ler, ou requisitar livros para levar para casa e para os amigos. Havendo
prémios para quem ler mais.
Os livros estarão numa vasta biblioteca, protegidos e
organizados.
Num amplo salão os troféus, taças, medalhas, medalhões e
diplomas estarão todos em exposição com as devidas informações e explicações.
Haverá um clube e escola de xadrez e damas, onde todos
poderão aprender e jogar dando utilização a tanto material existente. Podendo
ainda os tabuleiros, peças e relógios, serem emprestados a escolas para as
crianças jogarem.
Meus amigos, é este o nosso programa em traços gerais.
Terminei.
Bem-haja a todos!”
Quando terminei a minha dissertação, um imenso clamor se fez
ouvir. Uma explosão de alegria. Em todas as frentes cantavam vitória.
Hino da vitória
Em frente amigos em frente
Já conseguimos uma vitória
Alma e um coração ardente
Vai nos transportar à glória
Os livros serão desvirginados
Em prolongadas leituras
Os materiais serão usados
Nas mais variadas procuras
Os troféus mostram a beleza
Nas montras e exposições
Todos admiram a sua riqueza
Fazendo explodir as ilusões
Para a futura memória
Destas três revoluções
Ficará escrito na estória
As utopias e as emoções!
As três revoluções tinham triunfado!
Este ortónimo e seus heterónimos estavam felizes, devidos às
nossas utopias e ao dever cumprido!
Comeira, 27/9/2018
José Bray