quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Mataram o pai natal!



Mataram o pai natal!
Mataram o pai natal! Mataram o pai natal!
Um grito histérico soou naquela tarde fria e chuvosa pondo todas as pessoas, da praça, de ouvidos despertos.
O som vinha dos lados do enorme estabelecimento comercial situado no principal largo daquela vila do interior do país.
Uma mulher estava à porta da loja com as mãos na cabeça. Largara o saco das compras ficando algumas mércolas espalhadas a seus pés. Fora ela, a autora do primeiro grito.
Em breve acorriam pessoas de todos os lados. Uns correndo e gritando. Outros mais lentos mas gritando também.
- Mataram o pai natal! Mataram o pai natal!
Um corpo volumoso estava realmente caído no passeio, defronte da porta de entrada do estabelecimento comercial.
O corpanzil gordo e muito grande esvaía-se em sangue que disfarçava no corpo devido à cor vermelha da vestimenta.
Um pequeno rio de água e sangue deslizava para a valeta e daí para a sarjeta. Uma pequena e interessante embarcação de pelos brancos navegava para o mesmo destino. Era a barba do pai natal.
Perto uma menina segurando a mão de sua mãe exclamou:
Mamã! Afinal o pai natal não existe. Aquele velho é o tio José Bonifácio.
Rápido a jovem senhora afastou-se com a filha entrando no amplo estabelecimento.
Na verdade, o José Bonifácio fazia há muitos anos de pai natal, durante a quadra natalícia. Todos os adultos sabiam isso, só as crianças acreditavam que ele era o pai natal.
Um homem pequeno e magro com farta bigodaça ruiva apareceu e tomou conta da ocorrência. Resoluto por ser uma autoridade, pois na verdade era o regedor da Vila.
Com expressão de repulsa baixou-se e colocou a mão direita no pescoço do pai natal. Esteve assim trinta segundos, levantou-se e declarou:
-O pai natal está morto! Mandem vir a carroça mortuária e levem o cadáver do Bonifácio para a sala de velório da Capela.
Duas horas depois, já todo o mundo na Vila comentava a morte do José Bonifácio, pai natal há mais de vinte anos na povoação, ao serviço do importante estabelecimento, que tudo vendia.
Todos sabiam que o pai natal fora assassinado. Mas por quem? Ou porque razão? Ninguém ainda sabia. A não ser o assassino e alguém que o viu atacar de rompante o pai natal.
Um velho filósofo da região, homem muito sábio e louco. Ao saber do drama, fez um sorriso irónico e cínico e disse:
-Mataram duas vezes o Bonifácio. Como homem e como pai natal. Não se perdeu grande coisa, pois eram dois canalhas.
Entretanto, ao longe por detrás de um centenário plátano um homem ainda rapazola, espreitava as cenas que iam acontecendo lá longe, junto ao estabelecimento, mostrando um ar de desdém.
Era um jovem com aspecto famélico. Sua barba negra era rala, mas por desbastar, cabelos compridos e sujos. Todo ele estava mal tratado pela vida. Andrajoso no vestir de pobre, descalço e também cara de atrasado.
Após ter visto levarem o corpo do pai natal, o rapazola dirigiu-se para os lados do rio que corria caudaloso e fundo a cerca de cinquenta metros.
Na margem do rio, olhou para todos os lados várias vezes, depois já confiante, retirou do bolso uma velha e enferrujada navalha. Rápido atirou a mesma ao rio que rápido a engoliu.
Antes de se retirar para a sua miserável cabana da floresta, exclamou em voz alta:
-Canalha! Vai para o raio que te parta. Filho de uma bruxa e de um boi. Javardo!
Depois a cambalear devido à fome e ao frio embrenhou-se na noite a caminho da sua cabana.
Não demorou dois dias a acontecer a prisão do João. Alguém o viu anavalhar bruscamente o pai natal.
E também não demorou a ser feito o julgamento do assassino do José Bonifácio.
Na sala de audiências que funcionava na sede da casa da música, uma multidão aguardava ansiosa pelo julgamento e condenação do pobre atrasado mental.
As opiniões divergiam. Uns diziam que seria enforcado, outros diziam que teria prisão para toda a vida, outros diziam que iria para as galés. Mas uma voz sábia sobrepôs-se a todos com sua opinião. Mas não a disse, somente exclamou:
-Nada disso acontecerá! Mas será condenado sim. Fechem as vossas matracas pois só dizem asneiras.
O nosso filósofo louco, concluiu baixinho. Agora só para ele próprio ouvir.
-Vai sim para o manicómio, coitado. Mas ao menos lá terá agasalho e comida.
Todos na povoação sabiam que o João não fora sempre anormal. Nascera bem e bem andara até lá para os onze ou doze anos.
Na opinião de muitos, tudo acontecera quando o rapaz fez os doze anos. Um dia viu o pai matar a mãe. O homem esfaqueou a pobre mulher vezes sem conta. Aterrorizado, o João ainda viu o corpo da mãe com vida ser lançado ao rio.
O pai foi preso e depois de rápido julgamento foi enforcado.
Sem pai, sem mãe, sem mais família o miúdo ficou ao Deus dará. Já doente da cabeça começou a fazer recados e pequenas tarefas, além de andar a pedir. Mais tarde, já quase homem, vieram dar-lhe os trabalhos mais degradantes da Vila para ele poder sobreviver, como limpar esgotos, latrinas e estrumeiras.
O povo adulto não o tratava mal. Mas os miúdos, com a maldade não reprimida, andavam atrás dele e chamava-lhe João maluco.
Na sala das audiências, os três idosos, juízes da justiça local, estavam sentados atrás de uma mesa rectangular. Na sua frente num banco corrido estava sentado o João com a cabeça inclinada para a frente e os olhos fixos no chão.
O julgamento ia começar, no salão o povo estava ansioso para tudo ver e tudo saber.
Após as introduções da praxe, o juiz mais idoso e mais conceituado fez a pergunta há muito esperada pela multidão:
-João. És culpado ou inocente?
-Sou culpado senhor juiz!
-Confessas que mataste?
-Matei sim senhor juiz!
-Porque motivo, mataste o Bonifácio?
-O senhor José Bonifácio não foi morto por mim. Matei sim o pai natal!
-Esta bem! Está bem!
Os juízes não insistiram para não complicar e atrasar o processo.
-Estás arrependido do teu acto?
-Não senhor juiz! Voltava a matar o pai natal.
-Então homem de Deus, que nem arrependido, tu estás.
-Deus não é para aqui chamado. Não estou mesmo arrependido.
- Então explica-nos. Porque razão, tu mataste o pai natal?
-Sim senhor juiz. Vou contar por palavras minhas.
O João contou então a sua estória que vou transcrever com pequenas alterações devido à sua dificuldade de expressão.
Quando tinha seis anos vim à Vila na época do Natal. Queria ver na loja coisas boas que nunca teria e também queria ver o pai natal.
Nós éramos muitos pobres e o dinheiro do meu pai bêbedo ficava na taberna ou no jogo. Nunca chegava à nossa cabana. Tinha fome, pouca roupa e andava descalço.
Gostava muito de ter um brinquedo. Eu via os meninos ricos a irem entregar os pedidos ao pai natal. Por isso fui ao pé dele, mas fui corrido. Dizendo não dar brinquedos a filhos de bêbedos.
No ano seguinte voltei ao pai natal e ele voltou a correr comigo e riu-se muito!
Voltei lá a terceira vez e aconteceu o mesmo. Só que desta vez ele disse que os pedidos eram feitos por escrito.
Na quarta vez já com algum corpo e dez anos acabados de fazer, levei o meu pedido escrito, porque entretanto aprendera a escrever.”
Nesta parte da narração, João calou-se, parecia não querer continuar. O juiz mais idoso insistiu:
-Vá lá! E depois João?
Um pouco contrariado o pobre réu continuou:
“Nesta quarta vez o pai natal olhou muito para mim e disse que sim. Deu-me instruções para ir na noite de Natal a um local na floresta que também conhecia. Seria por volta da meia-noite, hora em que ele andaria a distribuir brinquedos pela pequenada.
Fiquei muito feliz e à hora marcada lá estava. Mas não houve prenda alguma.”
João voltou a calar-se e desta vez não mais falou!
O juiz insistiu! Voltou a insistir, mas nada!
Os três juízes saíram para deliberar. Quinze minutos depois regressaram com a sentença.
O João foi dado oficialmente como doido. Seria enviado para um manicómio onde tentariam que se curasse.
O nosso filósofo, sábio e louco, estava satisfeito. Assim o rapaz pelo menos teria uma cama, agasalho e comida. Podia ser que até recuperasse.
O condenado partiu para o manicómio numa carruagem com grades. No seu percurso a carroça celular passava junto do local, onde na noite de Natal o falso pai natal marcou encontro com o miúdo João, ainda na altura um rapaz saudável da mente.
Ao passar no local, as lágrimas, parecendo um rio, começaram a deslizar pelas faces do rapaz.
Tinha sido ali o local onde o pai natal o tinha violado na noite de Natal.
José Bray
Comeira, 7/12/2016
Dedicado a todas as crianças que sofreram sevícias!











sábado, 30 de julho de 2016

O xadrez e a vida - 09

09 – O xadrez e a vida
Hoje vou falar de algo que sempre me incomodou, seja no xadrez seja na vida. Trata-se do “faz de conta”.
Na vida, que é um teatro das comédias, o “faz de conta” é constante. Todos já devem ter tido acesso a exemplos, porque eles são diários.
Não vou fazer analogias com a vida. Quero sim, fazer a denúncia daquilo que me preocupa no xadrez. Trata-se de um constante “faz de conta”: de certos planos de desenvolvimento do xadrez.
Quem ouvir os seus mentores, quem ler a propaganda e até relatórios finais, é levado a acreditar que estão a fazer um trabalho sério e com resultados positivos.
Uma mentira!
É mais que óbvios que não são todos “faz de conta”. Há como em tudo, sempre excepções, valha-nos isso. Mas a maior parte são uma treta.
Porque são projectos, “faz de conta”? Muitas vezes tendo condições para serem um êxito.
Há planos com pernas para andar, mas não andam. As árvores não desenvolvem e por isso nunca haverá frutos.
Na minha opinião e não querendo ofender neste caso ninguém, acontece que no sitio certo está o homem errado.
Falta de competência, maus gestores e maus líderes! Andar no xadrez não dá estatuto a ninguém.
Ao analisar os projectos referenciados em documentação oficial, fiquei feliz. Depois fui comprovar a realidade. Fiquei frustrado, uma parte deles, três em cada quatro eram, “faz de conta”.
Na verdade, no meu distrito essa matemática bate certo. Em quatro um projecto tem validade.
Há uma excepção! Os Corvos dos Lis não são um projecto “faz de conta”!
E muito menos o serão no futuro, porque na próxima época alguém, único nesta panorâmica irá ajudar, num empenhamento total.
Se alguém duvidar da minha análise, venha ao Druida que ele explica.
José Bray







O xadrez e a vida - 08

08 – O xadrez e a vida
Olá amigos! Ando fugitivo mas não estou parado nem apático. As minhas paixões são muitas e perco-me no turbilhão das mesmas.
Estive no Luso, numa jornada memorável! Há muito que não me sentia tão bem.
O meu clube, os Corvos do Lis, deram uma demonstração de classe. Porque o meu clube não é um clube do faz de conta.
Não gosto de coisas a fingir. Não se esqueçam da Escola do professor Alcobia.
Hoje quero falar do saber perder. É muito importante saber aceitar a derrota, porque ela é o mais normal e está a cada esquina.
Na vida ela faz parte do dia-a-dia, assim como as vitórias. Temos depois de viver e ser felizes.
No xadrez, há vitórias, empates e derrotas. Pelo meio fica o prazer de jogar e ser feliz.
Se é importante saber perder, não é menos importante saber ganhar. Temos de saber respeitar o sofrimento do derrotado.
Um jogador que não souber respeitar isso nunca será um campeão, mesmo que ganhe o campeonato do mundo.
Também gostava de esclarecer:
Nós perdemos sempre bem! Mas muitas vezes ganhamos mal.
Perdemos bem porque somos aselhas, perdemos bem porque o adversário foi superior.
Por vezes ganhamos mal, porque o adversário nos deu tudo. Não confundir com o direito à vitória.
Quem não for feliz a jogar xadrez, deve abandonar a competição.
Como na vida, temos de ser felizes no xadrez, com vitórias ou com derrotas.
José Bray






terça-feira, 19 de julho de 2016

O xadrez e a vida - 07

07 – O xadrez e a vida
Pois é meus amigos, hoje vou fazer uma abordagem diferente, mas falando de xadrez.
Xadrez na arte!
O xadrez além de ser arte na sua génese, permite aos artistas criarem arte a partirem dos mais variados ângulos.
A literatura (prosa) tem abordado intensamente o xadrez, a lista é infinita. Quem não se lembra da novela de Stefan Zweig “O Jogador de Xadrez” ou de “A Tábua de Flandres” de Arturo Pérez-Reverte?
E não falo dos livros temáticos, uma grande parte deles, autênticas obras de arte.
Na pintura, a abordagem é também universal, em todas as épocas e todas as correntes.
Na escultura há milhares de exemplos! Por exemplo a criação de peças do xadrez e seus tabuleiros. Gaudí criou um jogo de xadrez em que o tabuleiro e as peças, foram baseadas nas suas obras de arquitectura.
Sabiam que o famoso modelo Staunton, o mais oficial e o mais famoso conjunto de peças de xadrez, não foi desenhado pelo campeão inglês? Foi Nathaniel Cook que as desenhou e registou no dia um de Março de 1849.
No cinema e no teatro o xadrez, das mais variadas formas, o xadrez tem estado presente, seja como enredo principal seja como simples adereço.
Deixem a poesia para o fim. Como na prosa também na poesia o xadrez inspirou uma legião de poetas que o cantaram.
Vou incluir neste texto, um poema da minha amiga poeta Isabel da Cunha Santos, que muito amável autorizou.
Obrigado Isabel!
Ah! Não se esqueçam de visitar o Museu do Xadrez em Figueiró dos Vinhos.

"O XADREZ DA VIDA"
As nossas vidas são tabuleiros,
Desde o dia em que nascemos,
Teremos que ser cavaleiros
Ou ter o leme dos veleiros
E o futuro construiremos.
Seguir em frente, sem medos,
Olhando o céu, a grande esfera,
Ninguém julgue que estarei,
Peça imóvel como o Rei
De braços cruzados à espera.
Muito menos serei Rainha
Que segue todas as direcções,
Eu vou querer ter uma linha,
Sem cantar a ladaínha
E viver grandes emoções.
Não quero ser como a Torre
A mover-se nas colunas,
Nas linhas também corre,
Ás vezes também morre
Deixa abrir grandes lacunas.
Nos Bispos eu não confio...
Movem-se em diagonais,
Em casas de cor, como um desafio,
Arrastam-se por um fio,
Como estando em catedrais.
Ser Cavalo? Quero que todos saibais
É única que passa por cima
De todas as outras demais
Não quero andar em L... jamais!
Tenho mais quem me anima!
Por fim vem o Peão, peça trave,
Que segue sempre em frente,
Esta sim, sou eu, como uma nave
Sem recuar, sigo de um modo suave
Viverei a vida de forma diferente.
Talvez um dia consiga, fazer um xeque-mate
Atacar o Rei, a Rainha, a Torre e o Bispo,
Será uma jogada só minha, de arremate,
Nem que venha montado no Cavalo, o arcebispo!
Isabel Santos 
26.12.2013
(reservados direitos de autor nos termos da lei)
José Bray



domingo, 17 de julho de 2016

O xadrez e a vida - 06

06 – O xadrez e a vida
Há muitos anos, já lá vai quase uma vida: fizeram-me a seguinte pergunta. Qual a diferença que distingue, um bom gestor de um bom líder, na relação profissional com os trabalhadores?
Com alguma ironia, mas com fundamento, defini assim:
Um bom gestor pega num trabalhador que rende 10 e só paga 9. Fica convencido que fez bem. Contudo (sem saber) fica com um trabalhador contrariado que só vai render 8.
Um bom líder pega num trabalhador que rende 10, paga-lhe 11 e o trabalhador vai render 12.
Um bom gestor exige! Um bom líder agradece!
Depois expliquei tintim por tintim num livro intitulado Gestão & Liderança: não farei isso neste texto. No entanto…
No xadrez como na vida, uma competente gestão e liderança é necessária.
No xadrez temos um património para gerir, temos de o fazer com rigor e parcimónia. Temos de saber gerir a imensa e complexa teia de variantes, não perdendo património, excepto se daí advir vantagem ou ganho final. Também o tempo do relógio tem de ser bem gerido. Temos de gerir a nossa preparação teórica, para lutar com mais argumentos com o adversário. Temos de gerir e ter cuidado com a saúde do corpo, comidas e bebidas.
No xadrez temos de gerir, gerir e gerir!
E na vida? Que acham? Claro que todos o temos fazer: gerir, gerir, gerir. Quem não souber gerir, será um falhado!
Também temos de ser um líder com competência e coragem!
Na vida, a todo o momento temos de tomar decisões. De um modo geral, são inócuas. É fácil de entender, mas por vezes são decisões críticas, que podem transformar vidas. São por vezes encruzilhadas terríveis. Todos, as temos…por vezes mal resolvidas!
No xadrez temos de tomar decisões. Como na vida, muitas são inócuas. Outras assim, assim. Algumas são de grande risco! Um bom líder é aquele que vai para a luta. Por isso ou somos medrosos ou avançamos assumindo a responsabilidade e o risco.
Então meus amigos. Digam lá: há ou não analogia com a vida?
Só um cego não vê isso!
Mais uma vez o xadrez imita a vida e pode ajudar e ensinar a assumir decisões, gerindo com competência.
José Bray














O xadrez e a vida - 05

05 – O xadrez e a vida
Levar a farinha ao moinho, seja no monte seja no rio!
Levar o saber à mente, seja no xadrez seja na vida!
No xadrez como na vida o aprender é necessário, é mesmo fundamental. Aprender sempre e sempre e sempre!
Tanto na vida como no xadrez o saber é infinito, ou seja não tem limites...
Contudo há caminhos diferentes na forma de abordar e assimilar o conhecimento.
No xadrez temos as metodologias que cada professor, treinador ou monitor, usa para desenvolver os seus alunos e futuros jogadores de competição.
Temos também, cada um de nós a nossa forma de aprender, ou seja: como autodidactas.
Eu defendo a princípio do “homem do tijolo”, conforme metáfora que vou partilhar a seguir.
Trata-se de uma trabalho que apresentei no meu curso de monitor, que frequentei em Outubro de 2010, mas escrito em 2004.

O homem do Tijolo e o Xadrez
Era uma vez dois amigos que andavam sempre juntos. Eram como irmãos, mais, pareciam mesmo gémeos mas não tinham nenhum grau de parentesco. Tinham a mesma altura e peso aproximado. Na inteligência nenhum ficava a ganhar e na força também não. Eram dois rapazes fabulosos cheios de potencial. Nasceram e cresceram juntos e fizeram tudo na vida semelhante. Tudo não!.. Houve uma coisa que não fizeram igual. Colocar um tijolo todos os dias!.. João fazia isso usando alguns segundos em cada dia que passava. Pedro achava a isso um disparate e ria-se do amigo.
A vida passou e um dia chegaram à velhice. O João tinha construído um edifício e o Pedro nada fizera!

Era uma vez dois amigos que andavam sempre juntos. Jovens igualmente inteligentes, gostavam das mesmas coisas, uma das suas paixões era o jogo do Xadrez. Durante um certo tempo o nível deles era igual. A partir de certa altura aconteceu o seguinte: O Carlos só queria jogar e não queria estudar o xadrez, afirmava que o mais importante era praticar. Por sua vez o Daniel estudava todos os dias, uns finais, mates, combinações, táctica, estratégia, pouco de cada vez mas sempre.
Sabem o que aconteceu com o passar do tempo? É muito simples! O Carlos embora fosse muito inteligente nunca passou de um jogador medíocre, por sua vez o Daniel tornou-se um campeão sem esforço de maior.


Façam como o Homem do tijolo, todos os dias aprendam um pouco e assim conseguirão construir o edifício do saber!

Marinha Grande, 06 de Maio de 2004
José Bray, 11/10/2010









quinta-feira, 14 de julho de 2016

O xadrez e a vida - 04

04 – O xadrez e a vida
Chegar primeiro!
Hoje vou falar de algo importante no xadrez e no quotidiano da vida. Refiro-me à antecipação.
Todos sabemos a vantagem de chegar primeiro, fazer primeiro, dar xeque-mate, primeiro que o outro.
No xadrez temos de aproveitar a nossa vez de jogar para chegar primeiro ao objectivo. Por isso não podemos desperdiçar as oportunidades de ter antecipação.
E na vida? Poderia estar aqui horas e horas a dar exemplos com é importante a antecipação de cada um, no seu dia-a-dia.
Tomei a liberdade de partilhar uma metáfora, que escrevi há anos para um livro profissional “Gestão & Liderança”. Nela se fala da antecipação, mas também do respeito pela pontualidade.
Antecipação
João tinha uma entrevista para concorrer e tentar o seu primeiro emprego. Era uma excelente oportunidade. Ele tinha todas as condições para conseguir o seu objectivo. Licenciado com mérito e com bastante cultura geral. O jovem tinha uma excelente presença e o dom, da palavra fácil. Vestia com sobriedade e limpeza.
João estava feliz. Saiu de casa naquela manhã de Maio bem-disposto. O tempo estava ameno, nem calor nem frio. O sol brilhava sobre a cidade, dando um manto de prazer a todos que caminhavam pelas artérias movimentadas. Tudo gente a caminho do trabalho ou das escolas.
O rapaz não apanhou o autocarro, decidiu caminhar através do parque, para apreciar tanta beleza. Pensou. – Tenho tempo, muito tempo!
Quando chegou à multinacional, empresa onde ia ser entrevistado, foi recebido com cordialidade por uma bonita funcionária.
Depois, a elegante rapariga, secretária do director dos recursos humanos, pediu-lhe para aguardar um pouco.
O João foi encaminhado para a confortável sala de espera, onde ficou descontraidamente esperando.
Passaram-se dez minutos. Um jovem bem-apessoado saiu do gabinete do entrevistador. Vinha com ar feliz, que demonstrava num largo sorriso.
Mais cinco minutos se passaram, depois a secretária encaminhou o nosso rapaz até ao gabinete do director.
João entrou e foi bem recebido, como mandava a etiqueta, naquela moderna e evoluída empresa.
Apôs as apresentações, conversaram sobre os mais variados temas. Via-se que o entrevistador estava bem impressionado com o rapaz.
Por fim dirigiu-se ao João falando sobre o tema principal: a entrevista de emprego.
- João, gostei muito de o conhecer e conversar consigo. Penso que o senhor tem todas as condições para esta vaga que nós vamos preencher.
Calou-se durante trinta segundos e continuou.
- Tem todas as condições, menos uma. A antecipação! O senhor chegou tarde à entrevista. O rapaz que saiu há pouco já conquistou o lugar. Além de ser competente como o João, às nove horas já estava à porta do meu gabinete.
Depois concluiu…
- Se me permite um conselho, na sua próxima oportunidade, não se atrase. Faça uma jogada de antecipação!
15/06/2014
Nota: do livro “Gestão & Liderança”.
José Bray




terça-feira, 12 de julho de 2016

O xadrez e a vida - 03

03 – O xadrez e a vida
Meus amigos. Ao escrever sobre o xadrez e a vida, quero que entendam que são pequenas metáforas. Não podem tirar conclusões fora disso. É óbvio que a vida não imita o xadrez.
Se fosse possível tirar uma foto à vida e uma foto ao xadrez, as imagens não seriam iguais, fosse um rosto ou fosse uma paisagem.
Só quero valorizar o papel que o xadrez pode ter na formação do ser humanos, em especial nos jovens. Não tenho dúvidas que o xadrez pode dar algumas lições.
Por outro lado tento explicar aos não praticantes coisas do xadrez, numa tentativa de os cativar para a modalidade.
Conclusões filosóficas, (que não é bem assim), não são razoáveis. Não quero catequizar ninguém, são os meus pontos de vista. Há quem esteja sempre do contra, só por estar!
O relógio, as horas o tempo.
Como na vida, o tempo (horas) é muito importante no xadrez. Saber gerir o tempo e respeitar os horários.
Nas competições há relógios com características próprias, ou seja têm dois mostradores. Cada jogador tem um plafond de tempo para jogar a partida, sejam partidas rápidas, semi-rápidas ou lentas, inclusive o xadrez postal que agora é pela Net.
Isto quer dizer que o jogador tem de saber gerir o seu tempo!
Também na vida, cada pessoa deve saber usar o tempo da melhor maneira possível para atingir os seus objectivos.
As partidas de xadrez na competição têm hora marcada para o inicio dos jogos. Quem chegar fora do controle tem falta de comparência perdendo o encontro.
Isto quer dizer que o jogador tem de respeitar horários, ser pontual.
Também na vida, cada pessoa deve ser pontual, deve respeitar os horários. Se não o for vai ter problemas!
Então qual é a conclusão?
O xadrez ensina-nos a respeitar e a saber gerir o tempo. Coisa que pode ser útil na vida de cada um.
José Bray


O xadrez e a vida - 02

02 – O xadrez e a vida
Não! Hoje ainda não vou falar de analogias entre a vida e o xadrez, temos tempo. Isso se entretanto não for embora, ou, a paixão pelo tema se evapore.
Democracia versus xadrez.
Todo o mundo fala de democracia, muitos nem sabem o que quer dizer essa palavra. Os governos querem todos vestir a capa da democracia, mas de um modo geral é conversa fiada.
Na vida no que diz respeito à democracia, infelizmente não há analogia com o xadrez. É pena! Mas todos sabemos que essa coisa da democracia se esgota no voto.
Sim minha gente, o xadrez é um jogo Democrata! Por isso a vida não imita o jogo do xadrez.
No xadrez os jogadores partem em igualdade.
No xadrez, as oportunidades são iguais para os dois jogadores.
No xadrez ninguém tira a vez a ninguém.
No xadrez cada jogador tem o mesmo tempo (minutos) para fazer a partida.
No xadrez não há batota, está tudo à vista e quase sempre escrito.
No xadrez ninguém tem privilégios.
No xadrez vale o mérito e o esforço de cada praticante.
No xadrez não há qualquer tipo de descriminação, seja de raça, sexo, religião, credo política, nível social, etc.
Senhores e senhoras, meninos e meninas, com podem comprovar, nisto da democracia: a vida não imita o xadrez.
Não há analogia!

José Bray

O xadrez e a vida - 01

01 – O xadrez e a vida
Diz quem sabe, ou talvez não: que o xadrez imita a vida. Ou será ao contrário? A vida a imitar o xadrez…
Teremos aqui a velha estória da galinha e do ovo?
Já agora vou dar a minha opinião sobre esta eterna questão, falo dos galináceos. Para mim não há enigma: primeiro apareceu o galo, depois a galinha e finalmente o ovo.
Já fiz a explicação noutro contexto. Se alguém estiver interessado publicarei a minha tese. Sim, baseada na bíblia!
Voltando ao cerne do assunto que me trás aqui.
A analogia entre a vida e o xadrez, ou vice-versa, é assunto há muito debatido. Já o famoso Garry Kasparov, ex campeão do mundo e quem sabe, talvez o mais forte jogador de sempre, afirmava isso no seu livro “A vida imita o xadrez” publicado em 2008.
Por isso não estou a fazer nenhum inédito. Irei em futuros artigos dar os meus pontos de vista sobre a matéria.
Na verdade, muito do que se passa na vida acontece no xadrez e ao contrário também.
Não esquecer, o que dizia o meu amigo Tarira e também o Druida: o xadrez é um jogo, lúdico e de alta competição, uma imensa ciência, com muita arte, uma filosofia para quem raciocina e para muitos uma religião.
Acrescento: o xadrez também é terapêutico!
Por hoje, fico por aqui… mas vai haver continuação.
José Bray


quinta-feira, 30 de junho de 2016

Cooperantes - O dia 28 de Junho de 1976

21 - O dia 28 de Junho de 1976
Era domingo, o casal Castro tinha passado a fim de semana em casa, porque não havia condições para sair. À missa não iam porque os meus amigos são ateus e por isso muito afastados das coisas da religião. O Alberto podia no sábado ter dado um salto à Academia de Xadrez que distanciava pouco mais de trezentos metros da sua casa, mas o momento não era oportuno, ele nem pensar, deixaria a Inês sozinha.
A noite vinha aí e com ela o recolher obrigatório. Há muito que esta lei estava implementada. As noites eram iluminadas pelas balas tracejantes que saíam para o céu, disparadas em todos os musseques da capital. A sinfonia das balas mais parecia foguetes em arraial de festa popular.
Está a dar-me um prazer imenso escrever este texto, enquanto oiço mornas cantadas por Cesária Évora, adoro esta música que meus pais me ajudaram a amar. No fim desta narrativa sobre o 28 de Junho de 1976 vão entender o porquê de me sentir feliz. Voltemos ao texto…
A partir de certa hora, as ruas, avenidas e largos de Luanda eram de um absoluto vazio, só quebrado pela passagem das patrulhas militares. O recolher obrigatório era a única forma das autoridades conseguirem alguma ordem na cidade. Havia milhares de soldados fora dos quartéis, desenquadrados de um qualquer controlo. Depois ainda havia a bandidagem, com armas distribuídas pelo movimento no poder quando foi de sua conveniência. Agora tinham uma batata quente entre as mãos, muito mesmo, a escaldar.
A Inês tinha uma barriga enorme, o tempo de o bebé ver a luz do dia ou da noite estava aí, ou seja, os nove meses estavam atingidos. Por tudo isto as águas podiam rebentar a qualquer momento. Quem viria aí, seria menino ou outra menina? Nesse tempo ainda não era normal saber o sexo devido à falta de tecnologia, ainda mais num país em que faltava tudo.
Alberto de Castro andava preocupadíssimo com o que poderia acontecer, tanto à sua companheira como ao bebé. A Inês além de preocupada andava cheia de medo. No fundo estavam os dois receoso, por diversos motivos.
Toda a gestação tinha sido muito complicada, uma aventura perigosa. Falta de uma alimentação adequada, falta de assistência médica, falta de família, falta de tudo.
Em Luanda nessa fase só havia um médico de mulheres, falo de um doutor verdadeiro. Era o velho Viriato, pai de muitos filhos. Como estes se recusaram a abandonar o seu país. Bom pai e médico competente: ficou firme no seu posto. Um seu filho morrera nas confusões da guerra da Independência entre os outros movimentos. Os irmãos além de baterem o pé para ficar foram servir no exército, eles como comandos elas como enfermeiras.
O doutor Viriato fazia o que podia, mas esforçado, dando assistência dia e noite, muito acabava por fazer, mas pouco para tanta necessidade. A Inês foi lá duas vezes, no resto do tempo esteve entregue ao destino.
A gravidez da Inês veio no momento mais inoportuno, cerca de dois meses antes da independência de Angola. O casal embora sabendo o que os esperava, decidiram assumir. Alberto de Castro insistiu com a Inês para vir para Portugal, mas ela recusou com firmeza. A filha mais velha do casal, já estava em Portugal entregue a familiares, era complicado chegar com mais uma criança, ainda mais, não tendo os Castros bens na Europa, nem forma de subsistir financeiramente.
Naquela época em Portugal qualquer branco regressado de Angola era peçonha para os imbecis da metrópole. Ser retornado como chamavam aos refugiados, era um estigma.
O mais curioso é que a Inês não era muito de engravidar. Na brincadeira ela dizia aos amigos. – A culpa deve ser da Toca na rua Silva Porto, aquela casinha era muito íntima, muito propícia para o amor! Ou então era a nossa menina que nos estava a guardar, foi preciso ela partir para acontecer isto.
Na verdade a menina partira para Lisboa no verão quente de 1975 e a gravidez aconteceu a seguir.
O tempo foi passando com muitas dificuldades, muitas frustrações, com o fim de utopias. Aos poucos o Alberto Pereira de Castro e Inês de Castro foram perdendo a esperança naquela treta toda.
O casal entretanto foi-se mexendo e acabou por descobrir uma parteira moradora no bairro de Alvalade. Tratava-se de dona Madalena mulher valente e determinada, dona de uma vivenda de grande valor, não queria partir para a não perder. De imediato colocou-se ao dispor dos Castros para ajudar no momento fulcral, do milagre da vida. A distância entre as residências não distanciava mais de quinhentos metros.
O enxoval para o bebé era pobre e exíguo, baseado principalmente nas roupas guardadas da mana, para o que desse ou viesse. Era tudo muito difícil, muito mesmo! A Inês passara grande parte da gravidez com o mesmo vestido feito não sei por quem.
Nesse Junho o casal ainda pensava ficar em Angola, pelo menos um tempo para tentar angariar umas massas que lhes pudesse mudar a vida para Portugal. Para isso o Castro negociara com a sua empresa regressar após fazer um tempo para garantir a continuidade da empresa em Angola.
Contudo o casal já tinha decidido que após o nascimento do bebé, tratariam logo da papelada para mãe e o pequeno ser, partirem para Lisboa, seria uma temporada para sua segurança. Depois se a coisa melhorasse regressariam.
Como todos sabemos tudo correu a favor dos Castros. A bela e extrovertida Inês nunca mais regressou, ficando o Alberto de Castro em Angola até fins de 1977, sozinho, sem mulher e filhos. Inês tivera a sorte de retornar ao seu antigo emprego. Mas não nos antecipemos.
No sexto mês da gravidez, ainda os Castros não tinham desistido de Angola, no quinto andar do seu prédio vagou um apartamento maior, que até dava para a frente do prédio. Tinha mais uma divisão, quem partiu deixou o dito quarto mobilado. Era de uma menina porque os móveis eram em cor-de-rosa, por isso ideal para a filha se regressasse. Com muita pena da casa anterior e do seu pôr-do-sol, os Castros mudaram-se. Era uma boa casa, num excelente prédio com elevador a funcionar e gente decente a morar. Os Castros entusiasmaram-se e a mudança foi motivo de alguma alegria.
A barriga da Inês ia crescendo, os três sobrevivendo na luta para conseguir alimento nas terríveis filas (bichas) com as suas pedrinhas que se desmultiplicavam a cada minuto.
Um facto curioso tinha a nova casa, um pormenor que foi de grande utilidade no decorrer dos acontecimentos. Na residência estava instalado um telefone ligado e a funcionar. Esse aparelho foi magia na estória. Para aumentar essa magia digo-vos que nunca ninguém cobrou o que quer que fosse, ou seja até à partida da Inês de Castro, o casal não pagou um tostão e o telefone funcionou sempre.
A nova casa tinha um defeito para o Alberto. Embora fosse um quinto andar as frondosas arvores, chegavam quase até ao topo do prédio. Estavam afastadas cinco ou seis metros, mesmo assim o odor que delas imanava punham o nosso amigo com um mau estar terrível, devido a qualquer alergia que ele tinha e já comprovada em contacto com certas árvores.
Nesse domingo de Junho a noite chegou e o cacimbo fazia a temperatura descer. Ao longe já se viam balas tracejantes vindas dos musseques a atravessar o céu em diversas direcções, assim como o matraquear das automáticas se faziam ouvir. Intervalando com momentos de silêncio. A escumalha voltava ao seu divertimento diário. Era o pão-nosso de cada dia após a hora do recolher obrigatório, até de madrugada. Era uma sinfonia de angústia, quando a manhã chegava tudo parecia renascer mas a esperança era nada.
Ainda era dia vinte e sete, quando pelas vinte e três horas o primeiro sinal se deu. Alberto telefonou à parteira que pediu para ele a ir informando dos sinais e do arrebentar das águas. Aos poucos as dores foram aumentando e para as duas da manhã foram muito fortes, rebentando de seguida as águas. Rápido, Alberto Castro correu para o telefone e ligou à parteira.
A porra é que havia o recolher obrigatório. E se a Madalena se recusasse devido ao adiantado da hora? Mas não, era uma mulher forte, habituada a grandes batalhas.
- Alberto! Ponha já um panelão cheio de água ao lume e venha-me esperar à porta da entrada.
Após quase encher de água uma grande panela e de a meter ao lume, pediu calma à companheira, o nosso Alberto desceu até ao hall de entrada para esperar a salvadora. Felizmente o elevador estava a funcionar.
Esperou impaciente, parecia uma eternidade a chegada da parteira. Mas na verdade Madalena pouco demorou, vinha num modelo antigo da Volvo e acompanhada por um enorme cão, um pastor alemão. Quando entraram no quarto, Inês estava de cóqueras, no chão ao lado da cama.
Levou um ralhete da Madalena porque não era posição correcta, mas foi mais para a fazer reagir. A Inês estava com medo que o bebé nascesse antes de a parteira chegar e ainda mais sem o marido junto.
- Alberto vá para a cozinha saber da água e espere que eu o chame.
Impaciente e muito nervoso o rapaz assim fez, mas depois foi tudo muito rápido. Minutos depois um forte chorar se ouviu, Alberto correu, mais uma menina tinha nascido. Mãe e pai choravam, eram três horas do dia vinte oito de Junho de mil novecentos e setenta e seis, uma segunda-feira, 
A minha afilhada acabara de nascer! Lá fora as balas tracejantes não paravam, assim como o som das balas que mais pareciam foguetes a festejar o nascimento de mais uma angolana branca.
Antes de partir a parteira deu diversas indicações e conselhos ao casal e em especial ao pai da bebé Alberto Pereira de Castro. Madalena ficou de ir passando por lá coisa que aconteceu. O nosso amigo acompanhou a senhora ao carro, abraçou-a e depois feliz subiu.
Entretanto no prédio ninguém deu por nada. Durante a manhã desse dia a vizinha do andar foi informada e ficou aparvalhada, de imediato deu colaboração, em especial na lavagem da roupa. Era uma senhora negra com muito nível.
Claro que o Alberto através do telefone mágico ligou para Portugal dando a feliz noticia aos vários familiares. Os pais Castro falaram com a menina mais velha, prometendo estar em breve em Portugal.
A Inês recuperou felizmente muito depressa e a menina estava bem. Ia começar outra luta, as condições para sobreviver.
O registo da bebé foi feito na conservatória do bairro de Alvalade. E tem uma estória curiosa e cheia de humor.
Naquela fase o governo de Angola estava a forçar o registo legal de todo o povo. Poucos tinham registo oficial, por isso as filas eram intermináveis. Com se ia fazer? Horas e horas na porta à espera de vez era uma merda.
Quem mandava na conservatória era uma doutora ainda muito jovem. Então, o nosso amigo José d’ Barcellos com o seu charme muito especial, a que nenhuma mulher resistia, convenceu a senhora a fazer o registo fora de horas. E assim foi! Ele e eu fomos os padrinhos.
Conforme decidido pelo casal, o Alberto começou logo a tratar de tudo para mulher e filha partirem para Lisboa. Era impossível continuar em Luanda com as condições existentes.
O casal Alberto e Inês de Castro assim como a minha afilhada, correram um risco imenso. Tudo foi ultrapassado, mas as condições para se dar o drama estavam criadas: estavam todas no terreno. 26/1/2014
Djapam (Cooperantes)








terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Nascer de uma flor

Nascer de uma flor
É tarde,
A cidade está apática,
Ninguém sabe que fazer.
É tarde,
As portadas se fecham,
E as almas também.
É tarde,
Os adultos têm medo,
E as crianças também.
É tarde,
Recomeça o ribombar,
Tiroteio para o ar.
É tarde,
A morte anda na rua,
Com apetite insaciável.
É tarde,
O povo vegeta,
Uma menina nasce.
É tarde,
Brilha uma luz no andar,
Há um bebé a chorar.
É tarde,
Mas chegou pontual,
A menina de seu pai.
É tarde,
Mas chegou perfeita,
A menina de sua mãe.
É tarde,
Mas chegaste na hora,
Minha menina amada!
28/6/2015
José Bray
Nota: a 28 de Junho de 1976, primeiras horas da madrugada, nascia minha filha Isa. Noite de Luanda, noite de terror! Recolher obrigatório, noite de tiroteio, cidade estropiada e aterrorizada.



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Encontro no interior

Encontro no interior
O casal Rosa Pedro andava viajando sossegadamente pelas estradas secundárias do seu país natal. Não eram ricos, não tinham excesso de recursos financeiros, contudo, tinham meios para fazer uma vida desafogada.
Gostavam imenso de viajar pelo país. Faziam disso, um dos prazeres da vida. Visitavam o mundo rural com ânsia de saber. Nas vilas, aldeias, simples lugar ou casal, falavam com as pessoas, fossem crianças ou idosos, homens ou mulheres. Apreciavam os pequenos monumentos, mesmo os mais simples, por vezes uma pedra com história. Gostavam de fotografar pessoas, animais e casas. Adoravam ouvir a bandas de música, fossem grandes ou pequenas, assim como danças e cantares do povo.
Tinham admiração e fascino pelas paisagens, mesmo a mais banal. Uma pequena colina, um ribeiro, um campo de milho, a floresta. A natureza no seu todo com suas formas e seus verdes tão variados.
Ficavam um ou dois dias em cada povoação, por vezes só umas horas. Dormiam em pensões económicas e tentavam comer em tascas. Normalmente petiscos ou refeição frugal.
Os locais de culto não ficavam por visitar, o Deus podia ser qualquer um e os santos também. Predominava a fé de Roma por onde passavam, embora aqui e ali fossem encontrando outros credos.
Naquela tarde do principio de Março, em que o inverno batalhava com a primavera, numa luta com vencedor anunciado. O casal Rosa Pedro, descansava sentado num banco de granito, na pequena praça daquela vila de segunda. Tinham almoçado na tasca do Damião, amigo de outras visitas à povoação.
Era dia de mercado, ou talvez, feira, fosse o termo mais correcto. Acontecia no terceiro domingo de cada mês. Era pequena mas metia muita gente que aproveitava para os mais diversos objectivos: comprar, cavaquear, cortar na casaca, comer, ou simplesmente apanhar uma piela, que por sinal eram muitas.
Os feirantes eram poucos, mas havia de tudo um pouco à venda.
Uma barraca vendia tudo o que fosse ferramenta para trabalhar a terra e não só. Enxadas grandes e pequenas, sachos e cavadeiras, picaretas, pás, forquilhas, chaves, chavinhas e chavetas, cabos, vassouras, facas, facalhões e canivetes, serras e serrotes, pregos, parafusos e porcas, ratoeiras para ratos, coelhos e raposas. Poderia estar a descrever os artigos daquela barraca, mas era preciso muitas folhas do meu bloco A5. Não se justifica, só quero dar uma imagem rápida dessa barraca coberta a lona como todas as outras. Todos conhecem o género que aparece em todas as feiras do país, pequenas médias ou grandes.
Havia duas barracas de tecido (roupas), uma virada para artigos confeccionados, outra para artigo em bruto ou para artigos de não vestir, como panos, fazendas, toalhas, lençóis, mantas, etc. Alguns artigos semelhantes eram vendidos nas duas barracas, por isso concorrentes.
Havia uma barraca de bugigangas, que ia desde brinquedos, em plástico, lata e madeira, a pequeno mobiliário. Havia cestos e cestinhos em verga, utensílios em plástico com predominância para os alguidares e seus afins. Santinhos e mais um milhar de porcarias que o povo gosta de ver, em especial a garotada que por ali andava.
Havia três bancas de produtos alimentares. Um de verduras, outra de animais vivos, a terceira de enchidos, presunto e queijo.
Claro, não faltava as barracas dos petiscos e muito vinho. Eram duas porque os clientes eram mais que muitos.
Os pregões soavam por todo o lado num conflito vocal, em que cada um queria ser mais ouvido que o outro.
Estava o nosso casal Rosa Pedro muito divertido, apreciando o reboliço do mercado, quando a sua atenção foi despertada pela chegada de uma carripana que queria à força passar pela praça. Óbvio que não conseguia!
Estava tudo entupido e não dava mesmo. Tentaram forçar, apitaram, mas nada. Nada não! Ouviram duas ou três expressões muito em uso no nosso povo, seja no sul, no centro ou no norte. Mas lá para cima nem palavrão chega a ser. Ah! Ainda foram mimados com uns gestos não menos genuínos. Toma! Feito de duas maneiras, com o dedo grande e com o braço esquerdo atravessado no direito e este fechado. Estilo Zé Povinho!
O condutor do carrito acabou por o estacionar numa pequena travessa, dirigindo-se depois para a confusão do mercado.
O casal Rosa Pedro olhou-se sorrindo, com pensamento semelhante. Muitas vezes nem precisavam de dizer nada um ao outro, tal era a sintonia mental. Pensavam: 
“Condutor pateta, querer passar à força na confusão da feira. Mas que carro giro têm e carismático, já se encontram muito poucos. Que anda a fazer por aqui um casal jovem com ar tão distinto?”
O carro era o “dois cavalos”, viatura fabricada pela Citroen, que se transformou num clássico…
Na travessia da feira, passando por aqueles que há pouco faziam os tomas, mas agora fingiam não os ver, os jovens foram-se aproximado do banco onde divertidos os nossos idosos apreciavam o panorama.
Antes de continuar a narrativa, quero esclarecer. Rosa e Pedro, parecendo nomes próprios, eram na verdade apelidos do Joaquim, por isso seu nome completo era, Joaquim Manuel da Rosa Pedro. A mulher era Eva da Conceição Ramos Pedro. Este último apelido, recebeu do companheiro.
Estavam de mãos entrelaçadas quando o tal casal jovem se aproximou.
Eva exclamou…
- Olha Joaquim. Os miúdos são o Filipe e a Manuela! Que andarão a fazer por estas bandas?
- São eles, tens razão!
Naquele preciso momento o rapaz sintonizou a vista com o casal de idade.
- Manuela! Está ali o casal Rosa Pedro. Que coincidência…
- Este casal é o máximo, parecem estar em todo o lado.
Foi assim o encontro entre os dois casais, distanciadas duas gerações. Os miúdos eram filhos e netos de amigos, tanto do Joaquim como da Eva.
Viviam juntos há dois anos mas não eram casados. Foi amor de universidade onde se formaram, ele em história, ela em filosofia.
- Então meninos que fazem por esta parvónia? Estão de férias? Ou fugiram do mundo falsamente civilizado?
- Nada Joaquim! Andamos em trabalho. Agora está muita confusão por aqui para contar. Nós vamos ficar cá na residencial.
- Nós também ficamos mais uma noite. Vamos todos jantar a uma tasca que conhecemos há muito. Pensamos partir para outra terra amanhã à tarde. Barco parado não faz viagem.
- Então vamos à pensão tomar banho e esperamos lá por vós. Às dezanove está bem?
Quem assim falou foi Manuela uma rapariga desenrascada, alta e esguia, cabelo comprido, negro e liso. Olhos negros em rosto moreno. Tinha corpo de atleta com seios pequenos. Mulher de ar felino nos seus exuberantes vinte e quatro anos.
- Sim filha, por nós tudo bem. Ainda vamos visitar uma ponte romana que fica a um quilómetro daqui.
Eva fez a confirmação acompanhada pelo seu encantador sorriso. Gostava daquele casal que achava muito amoroso. Ela era uma eterna apaixonada, admirava a postura dos miúdos. Era assim que o casal Rosa Pedro gostava de designar aqueles dois jovens.
Pouco passava das dezanove quando os dois casais se voltaram a juntar, na Pensão Central. Muito central e sem concorrência, instalada na parte medieval da vila. Era confortável e asseada. Também serviam refeições, mas Joaquim e Eva, adoravam curtir tascas, onde encontravam sempre gente do povo e não só, para cavaquearem, ouvir estórias e até tirar algumas fotos. Joaquim escrevia contos, muitos eram baseados nessas conversas. Eva pintava e na tasca recebia inspirarão para fazer o seu hobby. Escrever e pintar era mais um complemento nas suas vidas: bastante multifacetadas. Ah! E ambos escreviam poesia…
Saíram da pensão e partiram “pelo seu pé” para a tasca do senhor Damião. Viagem que fizeram em cerca de vinte minutos, andando devagar, caminhando através de ruelas estreitas, da histórica vila com casas de pedra e calçada também de granito.
Durante o percurso, foram-se informando sobre os familiares e amigos de amizade comum: pais, avós, irmãos, primos, amigos, etc.
Finalmente chegaram à tasca, daquelas tipicamente portuguesas. Foram recebidos por Damião, que apareceu com um sorriso de orelha a orelha, por debaixo do bigodão de estimação.
O tasqueiro encaminhou os clientes para um agradável recanto, junto à lareira já acesa. Os dias estavam bonitos e primaveris, mas ao cair do crepúsculo a temperatura arrefecia drasticamente. A vila ficava na encosta da serra e por vezes ainda nevava naquela época do ano.
Escusado será reafirmar que Eva e Joaquim já tinham no Damião um amigo, conhecido de outras passagens por aquela vila.
- Boa noite, amigos: aos antigos e aos novos!
- Boa noite Damião. Este casal jovem, são nossos amigos e de famílias amigas. Hoje na vila, encontrámos os meninos por mera coincidência. Que temos hoje para dar consolo aos nossos esfomeados estômagos?
- Prazer em conhecer! Bonito casal. Dona Eva. Temos um cabrito no forno que deve estar cinco estrelas. Estava mesmo à vossa espera. Acompanhado de batata também no forno, arroz branco e legumes ao vosso gosto. Bom não é?
Todos aceitaram o cabrito, Joaquim adorava, então tostadinho no forno era uma maravilha. Eva tinha boa boca, gostava de tudo, era mais apreciadora de leitão. Mas o cabrito também marchava! Os jovens também não se negaram.
- Vou trazer uma mão cheia de entradas. E bom vinho!
Passados minutos, apareceu na mesa: queijo da serra, presunto e azeitonas, pão caseiro e broa de milho.
Para beber, Damião meteu na mesa dois jarros de vinho, um de branco, outro de tinto. Na brincadeira declarou: branco para as senhoras tinto para os homens.
Tudo era mágico naquela tasca, o calor da lareira, a penumbra da sala. Uma música sem palavras que mal se ouvia, soava doce nos ouvidos dos presentes. A comida e o vinho na longa e tosca mesa, davam um ar rústico ao ambiente.
Era esfuziante a felicidade de todos, incluindo Damião a sua mulher, a cozinheira, e até dos outros clientes que se foram aproximando. Momentos únicos que ficam gravados para sempre, na mente de cada um.
Em dia normal as entradas chegavam para alimentar o casal Rosa Pedro, mas naquela noite a magia andava no ar. Comeram e beberam até fartar.
Eva ia tirando algumas fotos e Joaquim fazia versos de improviso, declamados como se de fado fossem.
Depois… serão fora, falaram de tudo e mais alguma coisa. Falou o Joaquim, falou a Eva, falou a Manuela. O menos falador era o Filipe. Mas o rapaz estava atento a tudo em especial ao que a sua amada dizia.
Bem comidos e bem bebidos, chegou a hora do café e do digestivo, coisa que o casal mais velho não dispensava.
Por fim a conversa derivou para o momento actual, respeitante à vinda do casal jovem, para aquela vila. Foi Eva a abordar o assunto.
- Então que vieram fazer os meninos a esta região, tão interior, tão longe de casa e tão longe no tempo?
Foi a Manuela a dar troco, enquanto os homens embevecidos olhavam para elas.
Tudo continuava mágico no interior da tasca, fluidos de prazer flutuavam na sala. As chamas da lareira, com seu amarelo e vermelho, faziam uma dança repetida mas nunca igual, como as nuvens sobre a serra ou as ondas no mar.
- Viemos em trabalho! Foi o que se arranjou nestes tempos difíceis. Viemos fomentar…melhor dito: vender!
- Vender, mas vender o quê?
Dois jovens licenciados, um em história, outro em filosofia, aparecem numa vilazita do interior, num dois cavalos, para vender: coisa estranha. Pensaram Eva e Joaquim.
- Viemos promover a fé em Cristo! Por isso vender, porque somos pagos para isso.
- Pagos como?
- Por cada aderente, recebemos um prémio e depois na continuação uma comissão sobre o dizimo do novo crente.
Filipe nada dizia, só concordava com a cabeça. Via-se timidez e receio, no rosto quase imberbe do jovem licenciado em história.
- Respondemos a um anúncio e fomos aceites. Tirámos uma formação compactada, fizemos uns exercidos para praticar. Depois fomos enviados para o mato, como costumam dizer os vendedores seniores. Por aqui andamos tentando convencer alguém. Mas os povos estão muito enraizados na igreja católica e controlados pelos padres. Mas Joaquim, nós acreditamos no que andamos a fazer, mas nada conseguimos.
Foi Manuela que falou. Depois Filipe acrescentou.
- O gratificante é: estamos juntos e vamos conhecendo o interior do país. Entretanto desistimos, a derrota está certa!
- Que acham desta estória meus amigos?
- Manuela, minha querida Manuela. Aqui o Joaquim, que sou eu, acha que é uma missão muito difícil, mas não impossível. Em qualquer dos casos pode ser muito enriquecedora. A vossa inexperiência na vida é um tremendo handicap. Mas como diz o Filipe, serve para passear e aprender.
- Joaquim, não tem nenhuma ideia ou sugestão para nos dar?
- Talvez Manuela. Esta noite e amanhã de manhã com a cabeça fresca eu vou pensar. Vou trocar opiniões com a minha amada Eva que tem visão e inteligência. Ela vai ajudar…
Após um silêncio, onde só se ouvia o crepitar da lenha na lareira, Joaquim fechou o tema.
- Vão para a pensão, façam amor e durmam que nós vamos fazer o mesmo. Amanhã ao almoço, falamos!
Após esta decisão, Eva foi pagar conta.
Depois os quatro saíram para a calçada de pedras negras, foram brincando, fazendo passos de dança, cantando em coro, desafinado, canções de intervenção.
Pareciam quatro adolescentes em noite de bebedeira, o que era o caso…
Nessa noite, preocupado com problema do jovem casal, ou devido ao excesso de comida e bebida, Joaquim não conseguia adormecer. Junto a si no lado direito, Eva dormia com o corpo encostado ao seu, estando o rosto sobre o seu peito. Era bom sentir o calor da sua amada. A bonita idosa dormia confiante com uma expressão de felicidade e paz.
O nosso homem ia pensando. – “Que conselhos posso dar aos miúdos? Nesta questão tão melindrosa e até ridícula”.
A mente, do Joaquim, dava voltas e mais voltas, elaborando alternativas para poder ajudar Filipe e Manuela.
O seu problema não era ter nada para dizer, antes pelo contrário. Isso não era óbice! Tinha muito para poder falar, aconselhar, divagar, filosofar e muita demagogia.
O busílis era fazer uma síntese, fácil de entender e que fosse útil à tarefa dos jovens. Meninos inocentes pensando saber tudo…
Aquela igreja, patronato, ou que treta for, enviar após um curso concentrado dois inocentes para as feras, era uma tolice. Que raio de estupidez ou maldade! Ainda se fosse para vender livros, perfumes, lotaria, férias, e mais um milhão de produtos, agora vender a fé… que raio de disparate.
Embora a fé fosse baseada em Cristo e Deus, coisa que o povo acreditava. Mas sonegar os santos a esse povo era missão quase impossível. Ainda mais, estando aquela gente agrilhoada pelos padres e sua organização supranacional.
Eram estes pensamentos que atormentavam Joaquim durante a longa insónia.
Acabou por adormecer, já passava das quatro horas. Mesmo assim a cabeça não descansava. Eram só pesadelos: era Deus, o Diabo, monstros, bruxas, selvagens e feras. Tudo a correr atrás do Filipe e da Manuela que fugiam em pânico olhando para o casal mais velho e a pedir ajuda.
Eva acordou, eram oito horas e ficou admirada por o marido ainda dormir, ele que era sempre o primeiro a dar o toque de alvorada. Reparou que não era um sonho tranquilo. Ele falava alto de vez em vez, palavras que ela não entendia. Parecia linguagem estrangeira…
- Joaquim acorda, querido então, acorda!
Dizia isto abanando o homem que beijava ao mesmo tempo. Por fim lá conseguiu os seus intentos e Joaquim voltou a este mundo. Ao ser interrogado, ele afirmou não se lembrar de nada relativo aos pesadelos.
O casal acalmou, após um reconfortante banho, vestidos com roupa prática desceram para o café da manhã.
Na acolhedora sala do pequeno-almoço, eram os únicos hóspedes. Passava pouca das nove. Já reconfortados, fizeram meia hora de descontracção. Eva lia poemas de Pessoa e o Joaquim punha em dia o seu diário de viagem. Contudo os pensamentos do casal flutuavam através do problema colocado por Filipe e Manuela.
Eva pensava e talvez bem, com uma lógica muito própria da sua mente racional. - “O melhor é desistirem, voltar para casa e mandar às ortigas a treta da fé”.
- “Que pensará o Joaquim”? – Outra questão que ela colocava a si própria.
Às dez horas os jovens ainda não tinham descido. Entretanto pediram que lhes levassem o pequeno-almoço ao quarto.
Era segunda-feira, a vila voltava ao ritual do dia-a-dia, mas o movimento era sempre quase nada. Devagar devagarinho…era o lema da região. O terceiro domingo de cada mês era o dia mais movimentado na terra. O outro período do ano, de grande movimento, era as festas de Agosto, altura que a vila é invadida pelos emigrantes, vindos quase todos de França.
Após a meia hora de descontracção, mais fictícia que real, Joaquim e Eva decidiram dar um passeio pela margem do rio que levava caudal de respeito, devido ao degelo da serra.
Deixaram recado na pensão para ser entregue aos amigos. Informando que chegariam por volta do meio-dia e meia hora.
Durante a caminhada o casal foi trocando pontos de vista, sobre o problema que afligia os jovens e a eles também.
- Joaquim, não achas que os nossos amigos deviam simplesmente desistir e voltar para casa? Procurar trabalho a condizer com a sua formação, ou simplesmente emigrar para país com oportunidades. Esta é a minha opinião.
- Tens razão querida, mas acho que uma boa luta não lhes fará mal. Mesmo que não cheguem à vitória é uma experiencia de vida. Penso que vão perder porque não têm condições para vencer. Mas serem motivados a uma tentativa poderá ser benéfico para o seu futuro.
- Mas tens forma de os esclarecer e ajudar?
- Tenho sim, mas a exigência é grande e não sei se justifica. Podemos fazer um exercício em tese.
- Conta-me!
Até ao meio dia, Joaquim não mais parou de falar. Eva fascinada ouvia atenta. Sempre que achava útil dava a sua opinião, aqui e ali.
- É isto, minha querida Eva. Uma pequena parte do que é possível fazer.
- Muito interessante! Vamos ter com eles, já devem andar à nossa procura.
Na verdade, Filipe e Manuela, já aguardavam a chegada dos amigos no jardim adjacente à pensão onde todos pernoitaram.
Depois dos cumprimentos usuais entre pessoas muito amigas embora duas gerações afastadas, os dois casais partiram para o local de almoço, um restaurante rural a poucos quilómetros da vila. Deslocaram-se no carro dos mais velhos, um carocha com trinta anos, mas em estado impecável, tanto de motor como de chaparia.
A curta viagem durou cerca de quinze minutos, não devido à distância, mas sim porque o local do almoço ficava no cimo de uma colina daquela altaneira serra. Durante o percurso, o Filipe inquiriu:
- Então Joaquim. Tem algo pensado para nos ajudar na nossa tarefa.
- Tenho sim, mas não sei se vai ser muito útil para a vossa função, mas para a vossa formação penso que sim. Durante e após o almoço vamos trocando opiniões. Tenham calma!
O local do almoço tinha uma vista soberba sobre a vila, todo vale e rio incluindo. Era um local de beleza indescritível. Os jovens estavam impressionados com tal espectáculo. Eva comentou.
- Sempre que andamos na região, vimos almoçar aqui. Como se comprova não é preciso ir para o fim do mundo para ver belas paisagens. Ao jantar, gostamos mais da tasca do Damião e da sua lareira.
O restaurante era muito simples e a comida não era pretensiosa. Era explorado há muito ano por um casal e seus filhos, gente espoliada vinda de África.
Em dado momento Agostinho tomou o rumo da conversa e nunca mais se desviou do mesmo até dar por concluindo a sua intervenção. De tempos a tempos, um dos jovens fazia uma interrogação. Agostinho esclarecia e continuava.
Vamos transcrever algumas partes da intervenção do Agostinho da Rosa Pedro.
- Manuela e Filipe, vocês têm pela frente uma tarefa difícil mas não impossível de realizar. Quem vende tem de ter benefícios para oferecer, quem compra quer receber algo que justifique o pagamento. Que tem para oferecer o produto da vossa Igreja? Que oferece os vossos concorrentes? Quais são as vossas mais-valias? Quais são os pontos fracos das outros? Como pensam actuar nas aldeias, vilas ou cidades deste interior conservador? Pensem bem antes de responder, depois farei algumas sugestões.
O casal ficou bloqueado não sabendo o que dizer. Estavam em pânico e cada vez mais precisavam da ajuda do casal mais velho. Na verdade a formação deles tinha-se baseado mais no conhecimento superficial da bíblia. Nunca tinham encarado a tarefa como uma luta de mercado. Mas uma coisa é certa, entenderam o que Agostinho explanou.
- Ensinaram-nos a levar a palavra de Jesus ao coração das pessoas, mas retirando as inverdades que a igreja católica injecta. Ou seja uma igreja mais em Cristo e menos nas mentiras dos papas e dos falsos santos.
- Sim Manuela, eu entendo. Mas a vossa questão é terem de angariar receitas. Vocês estão a comercializar a fé, senão nem tinham embarcado no projecto. Ou seja: vocês não estão a fazer sacerdócio por voluntariado ou vocação. É um comércio!
- Entendi Joaquim! Mas agora que podemos fazer?
- Filipe, com a ajuda da minha querida Eva, vou dar umas sugestões que a vida nos foi ensinando. Tomem atenção!
Fim da primeira parte
Mais uma vez deixo aos meus leitores a possibilidade de continuarem esta estória incompleta.
14/10/2015
Francisco Pereira de Castro