Mataram o pai natal!
Mataram o pai natal! Mataram o pai natal!
Um grito histérico soou naquela tarde fria e chuvosa pondo
todas as pessoas, da praça, de ouvidos despertos.
O som vinha dos lados do enorme estabelecimento comercial
situado no principal largo daquela vila do interior do país.
Uma mulher estava à porta da loja com as mãos na cabeça.
Largara o saco das compras ficando algumas mércolas espalhadas a seus pés. Fora
ela, a autora do primeiro grito.
Em breve acorriam pessoas de todos os lados. Uns correndo e
gritando. Outros mais lentos mas gritando também.
- Mataram o pai natal! Mataram o pai natal!
Um corpo volumoso estava realmente caído no passeio, defronte
da porta de entrada do estabelecimento comercial.
O corpanzil gordo e muito grande esvaía-se em sangue que
disfarçava no corpo devido à cor vermelha da vestimenta.
Um pequeno rio de água e sangue deslizava para a valeta e daí
para a sarjeta. Uma pequena e interessante embarcação de pelos brancos navegava
para o mesmo destino. Era a barba do pai natal.
Perto uma menina segurando a mão de sua mãe exclamou:
Mamã! Afinal o pai natal não existe. Aquele velho é o tio
José Bonifácio.
Rápido a jovem senhora afastou-se com a filha entrando no
amplo estabelecimento.
Na verdade, o José Bonifácio fazia há muitos anos de pai
natal, durante a quadra natalícia. Todos os adultos sabiam isso, só as crianças
acreditavam que ele era o pai natal.
Um homem pequeno e magro com farta bigodaça ruiva apareceu e
tomou conta da ocorrência. Resoluto por ser uma autoridade, pois na verdade era
o regedor da Vila.
Com expressão de repulsa baixou-se e colocou a mão direita no
pescoço do pai natal. Esteve assim trinta segundos, levantou-se e declarou:
-O pai natal está morto! Mandem vir a carroça mortuária e
levem o cadáver do Bonifácio para a sala de velório da Capela.
Duas horas depois, já todo o mundo na Vila comentava a morte
do José Bonifácio, pai natal há mais de vinte anos na povoação, ao serviço do
importante estabelecimento, que tudo vendia.
Todos sabiam que o pai natal fora assassinado. Mas por quem?
Ou porque razão? Ninguém ainda sabia. A não ser o assassino e alguém que o viu
atacar de rompante o pai natal.
Um velho filósofo da região, homem muito sábio e louco. Ao
saber do drama, fez um sorriso irónico e cínico e disse:
-Mataram duas vezes o Bonifácio. Como homem e como pai natal.
Não se perdeu grande coisa, pois eram dois canalhas.
Entretanto, ao longe por detrás de um centenário plátano um
homem ainda rapazola, espreitava as cenas que iam acontecendo lá longe, junto
ao estabelecimento, mostrando um ar de desdém.
Era um jovem com aspecto famélico. Sua barba negra era rala,
mas por desbastar, cabelos compridos e sujos. Todo ele estava mal tratado pela
vida. Andrajoso no vestir de pobre, descalço e também cara de atrasado.
Após ter visto levarem o corpo do pai natal, o rapazola
dirigiu-se para os lados do rio que corria caudaloso e fundo a cerca de
cinquenta metros.
Na margem do rio, olhou para todos os lados várias vezes,
depois já confiante, retirou do bolso uma velha e enferrujada navalha. Rápido
atirou a mesma ao rio que rápido a engoliu.
Antes de se retirar para a sua miserável cabana da floresta,
exclamou em voz alta:
-Canalha! Vai para o raio que te parta. Filho de uma bruxa e
de um boi. Javardo!
Depois a cambalear devido à fome e ao frio embrenhou-se na
noite a caminho da sua cabana.
Não demorou dois dias a acontecer a prisão do João. Alguém o
viu anavalhar bruscamente o pai natal.
E também não demorou a ser feito o julgamento do assassino do
José Bonifácio.
Na sala de audiências que funcionava na sede da casa da
música, uma multidão aguardava ansiosa pelo julgamento e condenação do pobre
atrasado mental.
As opiniões divergiam. Uns diziam que seria enforcado, outros
diziam que teria prisão para toda a vida, outros diziam que iria para as galés.
Mas uma voz sábia sobrepôs-se a todos com sua opinião. Mas não a disse, somente
exclamou:
-Nada disso acontecerá! Mas será condenado sim. Fechem as
vossas matracas pois só dizem asneiras.
O nosso filósofo louco, concluiu baixinho. Agora só para ele
próprio ouvir.
-Vai sim para o manicómio, coitado. Mas ao menos lá terá
agasalho e comida.
Todos na povoação sabiam que o João não fora sempre anormal.
Nascera bem e bem andara até lá para os onze ou doze anos.
Na opinião de muitos, tudo acontecera quando o rapaz fez os
doze anos. Um dia viu o pai matar a mãe. O homem esfaqueou a pobre mulher vezes
sem conta. Aterrorizado, o João ainda viu o corpo da mãe com vida ser lançado
ao rio.
O pai foi preso e depois de rápido julgamento foi enforcado.
Sem pai, sem mãe, sem mais família o miúdo ficou ao Deus
dará. Já doente da cabeça começou a fazer recados e pequenas tarefas, além de
andar a pedir. Mais tarde, já quase homem, vieram dar-lhe os trabalhos mais
degradantes da Vila para ele poder sobreviver, como limpar esgotos, latrinas e
estrumeiras.
O povo adulto não o tratava mal. Mas os miúdos, com a maldade
não reprimida, andavam atrás dele e chamava-lhe João maluco.
Na sala das audiências, os três idosos, juízes da justiça local,
estavam sentados atrás de uma mesa rectangular. Na sua frente num banco corrido
estava sentado o João com a cabeça inclinada para a frente e os olhos fixos no
chão.
O julgamento ia começar, no salão o povo estava ansioso para
tudo ver e tudo saber.
Após as introduções da praxe, o juiz mais idoso e mais
conceituado fez a pergunta há muito esperada pela multidão:
-João. És culpado ou inocente?
-Sou culpado senhor juiz!
-Confessas que mataste?
-Matei sim senhor juiz!
-Porque motivo, mataste o Bonifácio?
-O senhor José Bonifácio não foi morto por mim. Matei sim o
pai natal!
-Esta bem! Está bem!
Os juízes não insistiram para não complicar e atrasar o
processo.
-Estás arrependido do teu acto?
-Não senhor juiz! Voltava a matar o pai natal.
-Então homem de Deus, que nem arrependido, tu estás.
-Deus não é para aqui chamado. Não estou mesmo arrependido.
- Então explica-nos. Porque razão, tu mataste o pai natal?
-Sim senhor juiz. Vou contar por palavras minhas.
O João contou então a sua estória que vou transcrever com
pequenas alterações devido à sua dificuldade de expressão.
“Quando tinha seis anos
vim à Vila na época do Natal. Queria ver na loja coisas boas que nunca teria e
também queria ver o pai natal.
Nós éramos muitos
pobres e o dinheiro do meu pai bêbedo ficava na taberna ou no jogo. Nunca
chegava à nossa cabana. Tinha fome, pouca roupa e andava descalço.
Gostava muito de ter um
brinquedo. Eu via os meninos ricos a irem entregar os pedidos ao pai natal. Por
isso fui ao pé dele, mas fui corrido. Dizendo não dar brinquedos a filhos de
bêbedos.
No ano seguinte voltei
ao pai natal e ele voltou a correr comigo e riu-se muito!
Voltei lá a terceira
vez e aconteceu o mesmo. Só que desta vez ele disse que os pedidos eram feitos
por escrito.
Na quarta vez já com
algum corpo e dez anos acabados de fazer, levei o meu pedido escrito, porque
entretanto aprendera a escrever.”
Nesta parte da narração, João calou-se, parecia não querer
continuar. O juiz mais idoso insistiu:
-Vá lá! E depois João?
Um pouco contrariado o pobre réu continuou:
“Nesta quarta vez o pai
natal olhou muito para mim e disse que sim. Deu-me instruções para ir na noite
de Natal a um local na floresta que também conhecia. Seria por volta da
meia-noite, hora em que ele andaria a distribuir brinquedos pela pequenada.
Fiquei muito feliz e à
hora marcada lá estava. Mas não houve prenda alguma.”
João voltou a calar-se e desta vez não mais falou!
O juiz insistiu! Voltou a insistir, mas nada!
Os três juízes saíram para deliberar. Quinze minutos depois
regressaram com a sentença.
O João foi dado oficialmente como doido. Seria enviado para
um manicómio onde tentariam que se curasse.
O nosso filósofo, sábio e louco, estava satisfeito. Assim o
rapaz pelo menos teria uma cama, agasalho e comida. Podia ser que até recuperasse.
O condenado partiu para o manicómio numa carruagem com
grades. No seu percurso a carroça celular passava junto do local, onde na noite
de Natal o falso pai natal marcou encontro com o miúdo João, ainda na altura um
rapaz saudável da mente.
Ao passar no local, as lágrimas, parecendo um rio, começaram
a deslizar pelas faces do rapaz.
Tinha sido ali o local onde o pai natal o tinha violado na
noite de Natal.
José Bray
Comeira, 7/12/2016
Dedicado a todas as crianças que sofreram sevícias!
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